Num Natal, já faz alguns anos,
Chico Anysio escreveu um texto e pensou em usá-lo na TV Globo. Acabou não
fazendo isso. O texto permaneceu inédito e agora é publicado com exclusividade
pelo O GLOBO. Trata-se de um texto autobiográfico, em que o humorista − que
morreu na sexta-feira passada, (23 de março de
2012) aos 80 anos −
relembra o menino que um dia foi.
Apesar do tom melancólico e
triste, há uma passagem bem-humorada, quando ele diz que o mundo pode ser um
inferno ou uma badalação, dependendo se ele é visto pelo escritor e dramaturgo
Nelson Rodrigues ou pelo novelista Gilberto Braga.
O texto mostra o Chico Anysio já
adulto procurando pelo Chico Anysio ainda criança, um menino de 11 anos, comum,
tímido, com grandes olhos, “desproporcionais ao tamanho do rosto”.
Nessa busca, ele relembra um amor
não correspondido, os brinquedos de infância, as roupas de época, os sentimentos
de então. Um autorretrato revelador e inédito de um grande gênio do humor
nacional. Leia abaixo o texto:
O menino
Por Chico Anysio
↑
(Chico Anysio aos 11 anos)
Vou fazer um apelo. É o caso de
um menino desaparecido.
Ele tem 11 anos, mas parece
menos; pesa 30 quilos, mas parece menos; é brasileiro, mas parece menos.
É um menino normal, ou seja:
subnutrido, desses milhares de meninos que não pediram pra nascer; ao
contrário: nasceram pra pedir.
Calado demais pra sua idade,
sofrido demais pra sua idade, com idade demais pra sua idade. É, como a
maioria, um desses meninos de 11 anos que ainda não tiveram infância.
Parece ser menor carente, mas, se
é, não sabe disso. Nunca esteve na Febem, portanto, não teve tempo de aprender
a ser criança-problema. Anda descalço por amor à bola.
Suas roupas são de segunda mão,
seus livros são de segunda mão e tem a desconfiança de que a sua própria
história alguém já viveu antes.
Do amor não correspondido pela
professora, descobriu que viver dói. Viveu cada verso de “Romeu e Julieta”, sem
nunca ter lido a história.
Foi Dom Quixote sem precisar de
Cervantes e sabe, por intuição, que o mundo pode ser um inferno ou uma
badalação, dependendo se ele é visto pelo Nelson Rodrigues ou pelo Gilberto
Braga.
De seu, tinha uma árvore, um
estilingue zero quilômetro e um pássaro preto que cantava no dedo e dormia em
seu quarto.
Tímido até a ousadia, seus
silêncios grita nos cantos da casa e seus prantos eram goteiras no telhado de
sua alma.
Trajava, na ocasião em que
desapareceu, uns olhos pretos muito assustados e eu não digo isso pra ser
original: é que a primeira coisa que chama a atenção no menino são os grandes
olhos, desproporcionais ao tamanho do rosto.
Mas usava calças curtas de caroá,
suspensórios de elástico, camisa branca e um estranho boné que, embora seguro
pelas orelhas, teimava em tombar pro nariz.
Foi visto pela última vez com uma
pipa na mão, mas é de todo improvável que a pipa o tenha empinado. Se bem que,
sonhador de jeito que ele é, não duvido nada.
Sequestrado, não foi, porque é um
menino que nasceu sem resgate.
Como vocês veem, é um menino
comum, desses que desaparecem às dezenas todos os dias.
Mas se alguém souber de alguma
notícia, me procure, por favor, porque... ou eu encontro de novo esse menino
que um dia eu fui, ou eu não sei o que vai ser de mim.
Chico Anysio (Professor Raimundo) por William
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