quinta-feira, 30 de março de 2023

A escrita à mão

 

(...) 

A história da escrita tem passagens lindas. Uma dela, narrada a mim (Ruy Castro) por uma amiga, conta como, por volta de 1855, os barqueiros que singravam o Sena* de madrugada, nos arrabaldes de Rouen,* se guiavam por uma luz de vela que, noite após noite, durante seis anos, saía da janela de uma casinha à margem o rio. Eles não podiam saber, mas aquela vela iluminava Flaubert,* escrevendo − à mão, claro − Madame Bovary.* 

(Final da crônica “A escrita à mão”, de Ruy Castro) 

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* O rio Sena (em francês: la Seine) é um rio do norte de França que banha a capital, Paris e que deságua no Oceano Atlântico. Tem uma extensão de 776 km. 

* Rouen: É a capital da Alta Normandia, à beira do Sena e importante porto comercial. 

* Gustave Flaubert: (Rouen, 12 de dezembro de 1821 – Croisset, 8 de maio de 1880) foi um escritor francês. Prosador importante, Flaubert marcou a literatura francesa pela profundidade de suas análises psicológicas, pelo seu senso de realidade, pela sua lucidez sobre o comportamento social, e pela força de seu estilo em grandes romances, tais como madame Bovary (1857). 

* Madame Bovary: É um romance de Gustave Flaubert. Chamado de “romance dos romances”, Madame Bovary é considerado pioneiro dentre os romances realistas, tornando-se famoso por sua originalidade. Posteriormente, levou à cunhagem do termo “bovarismo” na psicologia, em referência às características psicológicas da protagonista. Quando foi lançado, Flaubert foi levado a julgamento pela obra, despertando um grande interesse pelo romance. 

Bulas do terror

 Ruy Castro

O fim do ano chegou e, com ele, o prazo dado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para que todo medicamento vendido no Brasil passe a vir com duas bulas. Uma, dentro da caixa, em linguagem acessível ao leigo e em corpo e espaço adequados aos pacientes − os quais, apesar do nome, não têm paciência para ler a dita por causa da vista cansada. A outra, eletrônica, no site da Anvisa, na linguagem mais técnica possível, apenas para os médicos, e esses que se virem.

Pelo visto, a medida ainda não entrou em vigor. Outro dia, ao sair do banho num hotel em cidade estranha, dei uma estúpida topada com a canela na borda do azulejo do box. A perna inchou, ficou vermelha e, pelos dias seguintes, como o dodói não passasse, resolvi tomar providências. Bem à brasileira, uma amiga me examinou por telefone e receitou uma pomada. Fui à farmácia, comprei-a e apliquei. E só então li a bula.

“Este medicamento (fator de difusão enzimática)”, dizia o texto, “é composto de mucopolissacaridases com atividades condroitinásica e hialuronidásica, despolimerizando os mucopolissacarídeos (ácidos condroitino-sulfúrico e hialurônico) da substância fundamental do tecido conjuntivo, especialmente subcutâneo. A despolimerização da substância fundamental das trabéculas conjuntivas do tecido subcutâneo facilita as trocas metabólicas locais”.

A transcrição é literal. Pois li e entrei em pânico − imagine se os mucopolissacarídeos, ao despolimerizar as trabéculas conjuntivas, provocassem uma reação das atividades condroitinásica e hialuronidásica? O que seria de mim?

Por sorte, nada disso aconteceu − ou, quem sabe, aconteceu e não percebi − e o remédio logo começou a fazer efeito. Ótimo. Mas é aconselhável manter não só os remédios, mas também as bulas, como essa, fora do alcance das crianças. 

(Crônica do livro “A melancia quadrada”, de Ruy Castro)

Como criar um filho(a) inútil

 Mário Corso

Para criar um filho inútil, você terá que ser muito útil. É preciso seguir corretamente alguns passos. Parece fácil, mas requer dedicação, ninguém nasce inútil, torna-se inútil. 

Começaremos com o espírito que perpassa a empreitada. Existe uma tendência natural de os filhos acreditarem que seríamos mais ricos e poderosos do que somos. Se você conseguir manter essa ilusão, é meio caminho andado.  Ele vai sentir-se como um futuro herdeiro. 

Mantenha-o livre de tarefas dentro de casa. Ele não deve fazer nada. A magia das roupas faz parte do treino. Quando esparramadas pelo chão, devem aparecer limpas e arrumadas no armário. Tudo na casa é assunto dos pais ou dos empregados. 

A etiqueta à mesa está ultrapassada, ele pode sair da mesa para voltar ao videogame, ou ainda comer sozinho no quarto. Isso instala a magia da louça: agora suja sobre a mesa, aparecerá limpa e no mesmo lugar na refeição seguinte. Só devem ser familiares a ele a geladeira e a despensa de alimentos prontos. Vai que ele tente uma receita, pode descobrir que nada é fácil. 

Na escola, caso a direção o chame, fique ao lado dele. Se conseguir boas notas, não elogie o esforço, chame-o de gênio. Instale uma visão pragmática, estudar só para a prova e o vestibular. Isso garante que ele não se apaixonará pelo saber: Igual, o dinheiro pode lhe dar um diploma. 

Cuidado com os esportes.  Se ele apegar-se a uma prática e perseguir melhores performances, pode desenvolver a perseverança e a tolerância à frustração. A qualquer mínima queixa, troque de esporte. O mesmo vale para música. 

Eles seguem o exemplo, se você não ler nada, ele vai achar desnecessário. Se você só tiver olhos para o celular, ele fará o mesmo. 

Fique de olho na sociabilidade, ele pode descobrir que nem todo mundo é seu fã. 

Dê tudo para seu filho, atenda a seus caprichos. Você finge ser rico, esteja à altura. 

É provável que seu filho atraia uma pessoa tão inútil como ele e a traga para morar em casa. Possivelmente, farão um filho sem pensar e você terá a alegria de um neto, ou mais, em casa. 

Sustentar todo este povo é um incentivo para seguir trabalhando. Adeus à vagabundagem da aposentadoria. Você se sentirá útil e produtivo até o fim os seus dias. 

Você deve estar pensando: mas e depois que eu partir? Sossegue, você não estará aqui para ver. E, com todos esses gastos, conseguirá tornar seu filho um herdeiro, de dívidas. 

(Do jornal Zero Hora, março de 2023)

quarta-feira, 29 de março de 2023

À beira-mar

 Stanislaw Ponte Preta

Por que será que tem gente que vive se metendo com o que os outros estão fazendo? Pode haver coisa mais ingênua do que um menininho brincando com areia, na beira da praia? Não pode, né? Pois estávamos nós deitados a doirar a pele para endoidar mulher, sob o sol de Copacabana, em decúbito ventral (não o sol, mas nós) a ler “Maravilhas da Biologia”, do coleguinha cientista Benedict Knox Ston, quando um camarada se meteu com uma criança, que brincava com a areia. 

Interrompemos a leitura para ouvir a conversa. O menininho já estava com um balde desses de matéria plástica cheio de areia, quando o sujeito intrometido chegou e perguntou o que é que o menininho ia fazer com aquela areia. 

O menininho fungou, o que é muito natural, pois todo menininho que vai na praia funga, e explicou pro cara que ia jogar a areia num casal que estava numa barraca lá adiante. E apontou para a barraca. 

Nós olhamos, assim como olhou o cara que perguntava ao menininho. Lá, na barraca distante, a gente só conseguia ver pares de pernas ao sol. O resto estava escondido pela sombra, por trás da barraca. Eram dois pares, dizíamos, um de pernas femininas, o que se notava pela graça da linha, e outro masculino, o que se notava pela abundante vegetação capilar, se nos permitem o termo. 

− Eu vou jogar a areia naquele casal por causa de que eles estão se abraçando e se beijando muito − explicou o menininho, dando outra fungada. 

O intrometido sorriu complacente e veio com lição de moral. 

− Não faça isso, meu filho − disse ele (e depois viemos a saber que o menino era seu vizinho de apartamento). Passou a mão pela cabeça do garotinho e prosseguiu: 

− Deixe o casal em paz. Você ainda é pequeno e não entende dessas coisas, mas é muito feio ir jogar areia em cima dos outros. 

O menininho olhou pro cara muito espantado e ainda insistiu: 

− Deixa eu jogar neles. 

O camarada fez menção de lhe tirar o balde da mão e foi mais incisivo: 

− Não senhor. Deixe o casal namorar em paz. Não vai jogar areia não. 

O menininho então deixou que ele esvaziasse o balde e disse: 

Tá certo. Eu só ia jogar areia neles por causa do senhor. 

− Por minha causa? Estranhou o chato. − Mas que casal é aquele? 

− O homem eu não sei − respondeu o menininho. − Mas a mulher é a sua. 

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Do livro “O gol do padre & outras crônicas”. Ática: 1997. Stanislaw Ponte Preta.*.

*Pseudônimo do cronista Sérgio Porto.

segunda-feira, 27 de março de 2023

Meu avô

 Miguel M. Abrahão*

Foi com meu avô que aprendi a contar histórias.

Ele me ensinou muitas coisas:
Me deu esperança e desejo.
Me disse que a vida não era para ser justa e sim vivida.
Preparou-me, com lições sobre o mundo,
Permitiu a distinção entre o bem e o mal... 

E vovô foi quem sempre escutou todos os meus sonhos.

Aquele que, na minha infância, por ter tempo e paciência,

falava realmente comigo.

E nos falávamos sempre em um dia sim e em outro também,

mesmo que o ânimo não lhe fosse favorável... 

Vovô falava e eu aprendia. Eu falava e ele me ouvia...

Assim, nunca ficamos sem palavras ou histórias para contar um para o outro...

Em verdade, sem ele, não sei quem ou o que EU seria!

Mas de uma coisa eu tenho certeza:

Eu não seria EU! 

Pois meu avô sempre foi meu melhor amigo,

meu guia, meu herói, meu orgulho.

E sabia que nada neste mundo, nem mesmo a vida ou a morte, poderia nos separar.

Seus conselhos permanecem irretocáveis,

e me permitem saber sobre as coisas certas, sejam elas a fazer ou a dizer! 

Vovô fez o melhor e foi o melhor que poderia ser.
Seu legado será eterno em minha vida.
Ele foi um modelo.
O meu modelo!... 

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* Miguel M. Abrahão (São Paulo, 25 de janeiro de 1961) é escritor, dramaturgo e professor de História em colégios particulares e cursos pré-vestibulares do Rio de Janeiro. Possui em seu currículo extensa obra publicada por diversas editoras, facilmente encontrada em sebos ou livrarias, abordando diversos gêneros: romances, infanto-juvenis, teatro e obras científicas na área de História. Muitas de suas peças já foram levadas aos palcos e continuam a ser encenadas por companhias teatrais de todo o país.

Saiba dizer não

 Dicas às mulheres (e homens) para dizer “Não”

A lição mais importante a aprender é saber avaliar quando você quer dizer “não” em vez de “sim”. Em algumas situações, você quer atender ao pedido, mas não tem tempo; em outras, quer ajudar, mas não sabe como... No entanto, muitas vezes você quer se livrar daquilo e acaba concordando, dizendo “sim” em vez de “não”. Os lembretes a seguir vão ajudar você a avaliar sua postura e podem ser úteis para livrá-la de muitas dores de cabeça. 

► Muitas vezes começamos a dizer “não” sem força interna e ele acaba virando um “sim” − que nos leva a um profundo vazio, tristeza e culpa. Quando for usar seu “não", esteja bem consciente do que você quer, está vivendo ou fazendo. 

► Seja firme e educada, porém não fique na defensiva. Essa postura vai transmitir um sinal de que você gostaria de atender ao pedido, mas que não mudará de ideia, muito menos se for pressionada. Ficar na defensiva refletirá insegurança, e, provavelmente, continuarão a insistir com você. 

► Quando decidir dedicar um tempo para pensar no assunto, dizendo que vai responder mais tarde, seja bem direta e não prometa nada. Se levar a pessoa a pensar que receberá um “sim” mais tarde, o desapontamento será enorme se vier um “não”. 

► Lembre-se de que a sua felicidade é mais importante e que nunca você conseguirá agradar a todo mundo. 

► Você não vai deixar de ser a pessoa bacana que é só porque disse “não”. Tranquilize-se! 

► Se alguém pedir uma explicação para sua recusa, lembre-se de que você não deve explicações a ninguém sobre esse tipo de questão. É perfeitamente aceitável uma recusa educada do tipo “Desculpe, mas estou muito ocupada” ou “Hoje não posso...”. 

► Aprenda a ouvir. Quanto mais ouvir o que s pessoas têm a lhe dizer, mais segura você se sentirá de dizer “não”. Se você não deixar seu interlocutor falar, poderá ficar numa situação fragilizada, mostrando impaciência e desinteresse, e, assim, abrirá espaço para que a pessoa volte a insistir no assunto. 

► Se você tem de dizer “não” para uma pessoa, demonstre e expresse que a valoriza. Isso é importante. Faz bem para todos os envolvidos. 

► Evite trocar o “não” pelo silêncio. Algumas pessoas entram num silêncio absoluto porque não querem dizer “não” ou entrar em conflito. Essa não é uma forma saudável de lidar com seus limites e possibilidades. 

► Reuniões de família, um encontro, um favor... Seja o que for, a escolha sempre será sua.

Frases elegantes e educadas 

A seguir, um resumo de frases que podem servir para diversas situações, bastando adaptá-las conforme a circunstancia: 

● Agora não é possível, mais tarde pode ser. 

● Não sou a pessoa mais indicada para esse trabalho. 

● Não tenho tempo na minha agenda hoje. 

● Não posso, mas indicarei alguém que pode. 

● Tenho outro compromisso. 

● Estou no meio de diversos projetos e não consigo arranjar tempo. 

● Surgiram muitas coisas novas de repente e preciso organizá-las. 

● Prefiro recusar a fazer um trabalho medíocre. 

● Não posso, mas ficaria feliz em ajudar de outra forma. 

● Já aprendi que esse não é o meu forte. 

● Não tenho nenhuma experiência nisso, portanto não posso ajudá-la. 

● Não me sinto à vontade com esse trabalho. 

● O mais simples e direto de todos, quando realmente não tiver mais jeito: “Não, obrigada”. 

Do livro: “52 boas maneiras para dizer não”

Melhoramentos

domingo, 26 de março de 2023

A intuição

 

(...) 

A intuição precisa ser mais acessada em nossas decisões, porque consiste em ouvir a própria voz interior, respeitar a nossa essência. 

Ela conhece o que é bom ou que é ruim em nossa vida. É a proteção da nossa verdade pessoal, um aviso da nossa alma sobre aonde devemos ir ou o que devemos fazer. Ela é que escolhe os nossos amigos de acordo com a nossa sensibilidade, ou os nossos amores, de acordo com as nossas fragilidades. 

Não tem a ver com profecia ou com leitura do futuro, mas com predisposição a ser feliz ou triste. É, acima de tudo, a interpretação da nossa natureza, dos nossos limites e quereres. São palpites, ecos da mente, que levam em conta nossas experiências anteriores e que vêm à tona para evitar a repetição de mágoas. 

A intuição é a cicatriz de uma ferida, que previne um novo sangramento. Tanto que às vezes não ouvimos a nossa intuição ou a interrompemos quando ela está falando, e nos maltratamos vivendo situações adversas ou suportando companhias prejudiciais à saúde emocional. 

Que sejamos mais plateia de nossa intuição, (...). Ela é poliglota de nossas dores. 

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P.S. Parte da crônica de Carpinejar intitulada “A intuição jamais será penetra”, no jornal Zero Hora, de 25 março de 2023.

A melhor polícia do mundo

 

E, naquele dia ensolarado, numa cidade neutra da Europa, ia ser realizado o teste definitivo para constatar qual seria a melhor polícia do planeta. 

Os finalistas seriam as três mais eficientes polícias do mundo, que era o FBI, a Scotland Yard e, por incrível que pareça, a PM de um estado brasileiro. 

O teste final consistia no seguinte: um coelho branco seria solto numa densa floresta impenetrável europeia. Cada policia, usando seus melhores métodos de investigação e abordagem, teria que achá-lo e trazê-lo de volta. Quem fizesse isso em menor tempo, seria o vencedor. Soltaram o coelho e, por sorteio, o FBI foi designado para tentar primeiro. 

Usando fotos de satélite, análise de DNA dos pelos encontrados, um cerco gigantesco foi armado na floresta, com dez helicópteros e cem agentes de elite. 

O coelho foi capturado em 16 horas e 14 minutos. 

Soltaram o coelho novamente e lá foi a Scotland Yard na sua vez. 

Usando analistas de comportamento animal, psicólogos, estudiosos da psique coelhista, agentes com óculos de visão noturna e um batalhão antibombas, armaram uma armadilha com uma coelha no cio usando um passaporte irlandês falso e uma cenoura com um sonífero poderoso. 

Capturaram o coelho em 14 horas, o que arrancou reações de espanto da comissão julgadora internacional. 

Mais uma vez soltaram o coelho e a valorosa PM brasileira foi mostrar serviço. 

Saíram numa veraneio antiga, com para-lamas cheios de barro, quatro pneus carecas e um pedaço de fio amarrado à tampa traseira, com três policiais com mais de meio corpo para fora das janelas da perua, batendo nas portas com revólveres 38 em punho e em alta velocidade, adentraram na floresta. Retornaram em vinte minutos, deixando atônitos os juízes, o FBI e a Scotland Yard. 

Abriram a caçamba do camburão e lá dentro estava um javali assustadíssimo, cheio de hematomas, encolhido, que gritava:


− Confesso: Eu sou um coelho!... Eu juro que sou um coelho!

Do livro: “As melhores piadas que circulam na internet”,

Compiladas e organizadas por Luiz Aviz

sábado, 25 de março de 2023

Morte em vida de Bernardo

 Carpinejar

Foto da internet 

Mesmo se houver 10 julgamentos de Leandro Boldrini, jamais traremos de volta Bernardo. É uma ferida sem cauterização. 

O júri pode ser anulado quantas vezes quiserem por problemas técnicos, pode ser refeito, pode aumentar em ou diminuir a pena, mas o que está em questão é o quanto uma criança sofreu à luz do sol. O quanto a omissão é criminosa. O quanto a covardia diante da vulnerabilidade da infância  é ultrajante. 

Bernardo, se estivesse vivo, estaria completando 20 anos, e talvez pudesse hoje se defender do pai e da madrasta, ironicamente médico e enfermeira. Talvez pudesse salvar sua eterna criança de 11 anos. 

Mas, na época da tragédia, não teve chance nenhuma, misericórdia nenhuma. Porque vivia a fachada intocável, em Três Passos (RS), de filho do doutor da cidade. Ninguém creditava piamente nele. Sua morte foi a tardia confirmação de sua sinceridade. Como o doutor que cuida dos seus pacientes não seria capaz de cuidar do seu filho? 

Por mais que pedisse ajuda, não seria levado a sério a ponto de ser encaminhado para a adoção de outro lar. 

Desmerecemos o que as crianças sentem como se fossem fantasias da carência. Damos mais crédito a um adulto do que a uma criança. 

Bernardo foi jogado emocionalmente fora, naquele mau exemplo de pai que nega o filho do relacionamento anterior para valorizar como único filho o do romance atual. O maior entrave é que sua mãe já se encontrava falecida, e não contava com um segundo e natural paradeiro para fugir dos requintes da rejeição. 

Ele não tinha chave de casa, não tinha para onde ir, não tinha roupa adequada para o inverno, andava de chinelo no meio do frio, ficava sem almoço, comendo de favor nos vizinhos, “preso” na rua na maior parte do dia. Estava proibido de brincar com a irmã e falar com a madrasta. 

Que vida miserável dada a ele! Ainda pior do que a sua morte ignominiosa foi o jeito que havia sido  condenado a viver. 

Era magrinho com seus 30 quilos, um menino mendigo à custa das sobras da família. 

Só era lembrado no momento de tomar os remédios receitados pelo pai, prescritos caseiramente, sem nenhum acompanhamento terapêutico. 

Pelos vídeos familiares, torna-se evidente a intenção de enlouquecê-lo. 

Existem imagens de Bernardo chorando, correndo, fugindo, sendo seguido pela câmera no maior desespero e clamando para que parassem de filmar, tendo a sua tristeza questionada, o seu psicológico torturado, para que ele soltasse algum palavrão, fizesse um desatino ou demonstrasse um comportamento violento. 

Por que um pai filmaria o filho em prantos se não para documentar o seu desequilíbrio? O comum é registrar o filho rindo, dançando, feliz, no colo, divertindo-se na piscina, jogando bola no gramado: cenas típicas e saudáveis da saudade do amor. Bernardo se via imensamente excluído e, simultaneamente, exposto ao escárnio, obrigado a se trancar no guarda-roupa para obter uma mínima privacidade para a sua dor. 

Como todos os recursos e maus-tratos não surtiram efeito para estigmatizá-lo de desequilibrado, encomendou-se o homicídio secreto, para que ele não incomodasse mais ninguém com a sua doçura dentro da sua residência. 

É o crime mais chocante do Rio Grande do Sul. Será sempre brutal e inexplicável pelos laços de sangue envolvidos, por mais que o tempo passe, por mais que o réu saia do banco e da sala por não aguentar enxergar o que ele mesmo fez. 

Pela primeira vez, no júri, forçosamente, Leandro está dando atenção para Bernardo. 

(Crônica do jornal Zero Hora, 23 de março de 2023)

Foto acima da internet 

O Caso Bernardo Boldrini (também chamado de Caso do Menino Bernardo) refere-se ao assassinato do menino brasileiro Bernardo Uglione Boldrini (Santa Maria, 6 de setembro de 2002 − Frederico Westphalen,  4 de abril de 2014), de onze anos de idade, ocorrido em 4 de abril de 2014, por meio de  superdosagem do medicamento Midazolan, que lhe foi dado pela madrasta, Graciele Ugulini. 

O corpo de Bernardo foi encontrado 10 dias depois, no dia 14 de abril de 2014, numa cova feita num matagal, no interior de Frederico Westphalen. Foram acusados e condenados pelo crime o pai Leandro Boldrini, a madrasta, Graciele Ugulini, a amiga dela, Edelvânia Wirganovicz e o irmão desta, Evandro Wirganovicz. 

Em maio de 2014, a Lei Bernardo, chamada pela imprensa de Lei da Palmada, foi sancionada em sua homenagem. O caso foi listado pelo Brasil Online, Estado de S. Paulo e a revista Veja ao lado de outros crimes que chocaram o Brasil.

quinta-feira, 23 de março de 2023

O Pingo e a Pinga

 (Sampaulo − chargista)

Quando a chuva pinga no meu pago

E pela estrada eu venho no meu pingo,

Me apeio à procura de algum gringo

Dono de bolicho, quero um trago! 

Bebo pura a pinga, mas não pago

E boto uma peleia com o gringo.

Sai cara a pinga, mas nem um pingo

De dinheiro na guaiaca eu trago! 

E enquanto ele grita: − “Paga a pinga!”

Eu pego pela goela o pobre gringo

E, despacito, despacito, o apago. 

Depois, na garupa, levo a gringa,

Que vai pingando o pranto no meu pingo,

E eu, fedendo a pinga, pelo pago...

Pequenas histórias

 

Livro motivacional 

Um homem entra na livraria e pergunta ao atendente: 

− Você tem algum livro de assunto motivacional? 

− Sim, temos. Ele está no final daquele corredor, na terceira prateleira à direita − orienta o vendedor. 

E o sujeito se espanta: 

− Nossa, não tem um livro mais perto não? 

Lição de casa 

O menino está fazendo a lição de casa de português, quando tem uma dúvida e pergunta para o pai: 

− Papai, tô com uma dúvida na minha lição. 

− Fala, filho. 

− Burrice, se acentua? 

− Com o passar dos anos, sim. 

Memória fantástica 

Minha memória é espantosa. Guarda direitinho tudo o que aprendi no Colégio Souza Lobo, ou Souza Gonçalves, ou Lobo de Souza ou qualquer coisa assim.* 

E têm mais coisas que agora não lembro mais. 

*Essa parte é do Michele Caetano 

Esposos e Esposas 

A apetitosa senhora explica ao encanador que estava usando aquele tentador baby doll preto em homenagem a seu amado marido que havia partido... Havia partido pela manhã para uma rápida viagem de negócios. 

O marido furioso, chegando em casa e encontrando a mulher na cama com outro: 

− O que é que vocês estão fazendo? 

A mulher, virando-se para o outro, diz: 

− Viu? Eu não lhe disse que ele era burro! 

Queixa da esposa 

A mulher se queixava, quase em prantos, à sua empregada: 

− Oh, Maria, acho que meu marido está me enganando com a secretária! 

− Não acredito! A senhora está dizendo isso pra me deixar com ciúmes. 

Cabelos brancos 

Um dia, uma menina estava sentada observando sua mãe lavar os pratos na cozinha. De repente, percebeu que sua mãe tinha vários cabelos brancos que sobressaíam entre a sua cabeleira escura. 

Olhou para sua mãe e lhe perguntou: 

− Por que você tem tantos cabelos brancos, mamãe? 

A mãe respondeu: 

− Bom, cada vez que você faz algo de ruim e me faz chorar ou me faz ficar triste, um de meus cabelos fica branco. 

A menina digeriu esta revelação por alguns instantes e logo disse: 

− Mãe, por que todos os cabelos de minha avó estão brancos? 

O erro 

Se a Maria é casada com o Joaquim, mas dorme com o Manoel, o que ocorre é um erro de português. 

A origem 

O pai de um garoto de pouca inteligência, no interior paulista, diante do filho rebelde, adverte-o: 

− Filho, você não é estudioso, é desobediente, mal-educado, implicante, bate nos seus colegas menores, ofende as meninas da escola, passa-os para trás nos jogos e nas brincadeiras. O que você quer ser quando crescer? Um militar, para ser expulso da tropa, ou um político sacana? 

O elefante e a formiga 

História 1 

Iam um elefante e uma formiga correndo lado a lado. A certa altura a formiga olha para trás e diz: 

− Já viste a poeirada que estamos fazendo? 

História 2 

Estava uma formiga no cinema vendo um filme pacatamente, quando um enorme elefante sentou-se à frente dela. 

Arreliada com a situação, levantou-se e foi sentar-se na fila à frente, diante do paquiderme. Deixou-se estar ali um bocado e depois, com um sorriso trocista, olhou para trás e disse: 

− Atrapalha, não é mesmo? 

O sabido 

Comprei, pela internet, um livro com o seguinte título: 

Como não cair em golpes”, até paguei adiantado. 

Já se passaram 90 dias e ainda não recebi o livro... 

Acredite se quiser! 

No começo deste ano, o pintor Frinó Batista pulou do vigésimo andar de um edifico no centro da cidade de Madrid. Bateu num toldo que estava aberto no décimo sétimo, depois aliviou sua queda num mastro que estava colocado no décimo quinto e seguiu furando catorze toldos, que foram aparando seu tombo até o chão, onde caiu, por coincidência, numa poltrona que estava sendo limpa, absolutamente sem um arranhão e completamente morto.*

 *Esse texto é do Jô Soares. 

Constatação 

Por trás de um grande homem, há sempre alguém que não sai na foto. 

O convite 

Marido chega em casa, no final de uma sexta-feira, e faz o convite à esposa: 

− Vamos sair hoje? 

Ela, entusiasmada: 

− Claro, tô louca pra sair! 

Ele: 

− Tá com fome? 

Ela: 

− Bastante. 

Ele: 

− Então vai na cozinha e prepara algo pra comer.

E por último: 

Existem três tipos de pessoas: as que sabem contar e as que não sabem.

terça-feira, 21 de março de 2023

A mãe e os três irmãos ricos

 

Três irmãos competiram para ver quem mais agradava à mãe idosa. 

O primeiro comprou uma mansão para ela; o segundo deu-lhe uma Mercedes. O terceiro lembrou-se da dificuldade da mãe, quase cega, em ler a Bíblia, portanto, comprou um papagaio treinado para recitar versículos bíblicos. 

Na primeira reunião com os filhos, ela comenta com eles os presentes recebidos. 

− Jorge, você comprou uma casa grande demais só para mim. É enorme para uma pessoa que mora sozinha. Júlio, eu nunca saio e nem sei mais dirigir, então aquele carro é inútil. Pedro, você é o único que entende do que sua mãe realmente gosta: aquele franguinho de penas verdes estava uma delícia! 



.A felicidade tão perto e tão longe...

 Até pensei 

Chico Buarque

Junto à minha rua havia um bosque,
Que um muro alto proibia.
Lá todo balão caía,
Toda maçã nascia,

E o dono do bosque nem via. 

Do lado de lá tanta aventura,
E eu a espreitar na noite escura,
A dedilhar essa modinha.
A felicidade morava tão vizinha,

Que, de tolo, até pensei que fosse minha. 

Junto a mim morava a minha amada,
Com olhos claros como o dia.
Lá o meu olhar vivia,
De sonho e fantasia,
A dona dos olhos nem via.
 

Do lado de lá tanta aventura,
E eu a esperar pela ternura,
Que enganar nunca me vinha.
Eu andava pobre,
Tão pobre de carinho,

Que, de tolo,
Até pensei que fosses minha.
 

Toda a dor da vida
Me ensinou essa modinha,
Que, de tolo,
Até pensei que fosse minha...

segunda-feira, 20 de março de 2023

O literal

 João Alberto Soares

Não, ele não era louco. Apenas entendia e fazia as coisas ao pé da letra. Ou melhor, literalmente. Letra, para ele, não tinha pé. 

Fora assim desde pequeno. No jardim da Infância reclamava muito de que no tal Jardim da Infância não tinha nenhum jardim. A mãe tentava explicar: 

− Meu filho, jardim é um modo de falar. 

− Não, mãe. Jardim é um lugar cheio de flores. 

No adiantava. Se o ensinavam que as palavras tinham este ou aquele significado, por que as pessoas teimavam em falar e entender de outra maneira? Respondia às críticas com este argumento. 

No quinto ano primário teve sua primeira experiência dolorosa. Andava mal no colégio. O pai chamou-o para uma conversa: 

− Filho, sua mãe me disse que você anda pelas caronas no colégio. 

− Como? 

− Soube que você andou obtendo notas um pouco baixas no colégio. 

− Ah, é. 

− Você precisa estudar mais, meu filho. 

− Sim, pai. 

− Você precisa se atirar de cabeça nos livros. 

Dito e feito. Meia hora depois foi preciso levá-lo às pressas ao pronto-socorro com um enorme galo na cabeça. 

Outro dia estavam todos na sala vendo televisão. Como achasse que o pessoal na tevê não estava dizendo coisa com coisa, ele ligou o rádio e ficou ouvindo música. A mãe pediu para baixasse o rádio. Ele atendeu na hora: pegou o rádio de cima da mesinha e colocou-o no chão, sob o sofá. 

Não, não é de rir. Não foram poucos os mal-entendidos na sua vida. Teve aquele do aniversario de quinze anos, quando convidou uma menina para dançar: 

− Que bom que você me tirou. 

− O que é que eu tirei? 

− Tirar pra dançar. 

− Ah. 

− É que todas as outras queriam dar um tirinho em você. 

− Tiro? Em mim? 

Disse isto e saiu como uma bala, correndo como quem corre de tiroteio. 

Certa vez ia entrando no supermercado para fazer umas comprinhas. Uma mulher que ia saindo segurou-o pelo braço e disse dramaticamente: 

− Cuidado! Eles estão arrancando os olhos da cara! 

Foi o que bastou. Deu meia-volta e só parou de correr em casa. 

A última vez que o vi foi quando resolveu aprender violino. Como não se desse muito bem com as notas no papel, após algumas aulas o professor aconselhou-o a tocar de ouvido. Foi parar no médico com a orelha sangrando. 

Depois disso me perdi dele. Alguém me disse que ele estava trabalhando em Brasília. Como salva-vidas no mar de bobagens que é a política brasileira. 

(Do livro “De Quatro”, Editora Globo)

P.S. Esse livro pode ser encontrado nos sebos do centro de Porto Alegre. O meu exemplar consegui num sebo da Rua dos Andradas (Rua da Praia), quase defronte à Casa de Cultura Mário Quintana. 


Sou professor

 John W. Schlatter

Sou professor. Nasci no momento exato em que uma pergunta saltou da boca de uma criança. Fui muitas pessoas em muitos lugares.  Sou Sócrates, estimulando a juventude de Atenas a descobrir novas ideias através de perguntas. Sou Anne Sullivan, extraindo os segredos do universo da mão estendida de Helen Keller. Sou Esopo e Hans Christian Andersen, revelando a verdade através de inúmeras histórias. Sou Marva Collins, lutando pelo direito de toda a criança à Educação. Sou Mary McCloud Bethune, construindo uma grande universidade para meu povo, utilizando caixotes de laranja como escrivaninhas. Sou Bel Kauffman, lutando para colocar em prática o Up Down Staircase. Os nomes daqueles que praticaram minha profissão soam como um corredor da fama para a humanidade... Booker T. Washington, Buda, Confúcio, Ralph Waldo Emerson, Leo Buscaglia, Moisés e Jesus. 

Sou também aqueles cujos nomes foram há muito esquecidos, mas cujas lições e o caráter serão sempre lembrados nas realizações de seus alunos. 

Tenho chorado de alegria nos casamentos de ex-alunos, gargalhado de júbilo no nascimento de seus filhos e permanecido com a cabeça baixa de pesar e confusão ao lado de suas sepulturas cavadas cedo demais, para corpos jovens demais. 

Ao longo de cada dia tenho sido solicitado como ator, amigo, enfermeiro e médico, treinador, descobridor de artigos perdidos, como o que empresta dinheiro, como motorista de táxi, psicólogo, pai substituto, vendedor, político e mantenedor da fé. 

A despeito de mapas, gráficos, fórmulas, verbos, histórias e livros, não tenho tido, na verdade, nada o que ensinar, pois meus alunos têm apenas a si próprios para aprender, e eu sei que é preciso o mundo inteiro para dizer a alguém quem ele é. 

Sou um paradoxo.

É quando falo alto que escuto mais.

Minhas maiores dádivas estão no que desejo receber agradecido de meus alunos. 

Riqueza material não é um dos meus objetivos, mas sou um caçador de tesouros em tempo integral, em minha busca de novas oportunidades para que meus alunos usem seus talentos e em minha procura constante desses talentos que, às vezes, permanecem encobertos pela autoderrota. 

Sou o mais afortunado entre todos os que labutam. A um médico é permitido conduzir a vida num mágico momento. A mim, é permitido ver que a vida renasce a cada dia com novas perguntas, ideias e amizades.

Um arquiteto sabe que, se construir com cuidado, sua estrutura poderá permanecer por séculos. Um professor sabe que, se construir com amor e verdade, o que construir durará para sempre. 

Sou um guerreiro, batalhando diariamente contra a pressão dos colegas, o negativismo, o medo, o conformismo, o preconceito, a ignorância e a apatia. 

Mas tenho grandes aliados: Inteligência, Curiosidade, Apoio paterno, Individualidade, Criatividade, Fé, Amor e Riso, todos correm a tomar meu partido com apoio indômito. (...) 

E assim, tenho um passado rico em memórias. Tenho um presente de desafios, aventuras e divertimento, porque a mim é permitido passar meus dias com o futuro.

Sou professor... e agradeço a Deus por isso todos os dias. 


Um diálogo possível

 Michele Caetano

Tudo começou num esbarrão. 

1 − (Paz na Terra) Desculpe... 

2 − (Boa Vontade Entre os Homens) Tudo em paz, não esquenta... 

1 − Espera. Conheço você de algum lugar... 

2 − Não estive lá, mas sou a BOA VONTADE ENTRE OS HOMENS. E você? 

1 − Eu sou a PAZ NA TERRA. 

2 − Ah! Estranha que nem eu. 

1 − Mas bem mais falada que você. 

2 − Por uma meia dúzia. Não vejo vantagem. 

1 − E você que só fica na vontade. 

2 − Em compensação você é “persona non grata” em todo o mundo. 

1 − Mas você também não está em parte nenhuma, neném. 

2 − Cuidado, pombinha, que o Kadafi* te escuta. 

1 − Pode ser, porque de Oriente Médio você entende, né mesmo? 

2 − Que maldade, minha rola. Não foi você que o Begin* ganhou como prêmio? 

1 − Foi um engano dos homens de boa vontade, queridinha. 

2 − Me usaram como pretexto, paloma. Mas a intenção... 

1 − É só o que você tem, menina. Intenção. E o inferno está cheio de... 

2 − De homens que lutaram por você, colomba. A sua dialética e hipócrita. 

1 − Hipócrita é esta sua boa vontade, donzela. Porque a dialética é sua. 

2 − Minha? Não é por mim que vivem fazendo reuniões, conferências e outras babaquices que não levam a nada. 

1 − Mas você é o pretexto, boneca. 

2 − O pretexto é você, branquinha. 

1 − Você está fazendo jogo, minha preta. 

2 − Não faço jogo, peitudinha. Não me interessa. 

1 − É só o que te interessa, minha atriz, o jogo de interesses. 

2 − Logo quem falando. A menina mais volúvel a paróquia. 

1 − Aliás, de paróquia você também manja, não é, minha Marcinkus*? 

2 − Opa! Isso é com você, divina. Não é lá o seu ninho? 

1 − O meu ninho, santinha, é no mundo todo. 

2 − É. E por que você não pro Chile,** ou São Salvador,** ou Nicarágua?** 

1 − Isso é função sua, minha globe trotter. Primeiro a intenção, depois o gesto. 

2 − O primeiro trottoir é seu, minha columbiforme. 

1 − Em absoluto, juju. Primeiro o ovo. 

2 − Que disparate, minha penosa. Primeiro a galinha. 

1 − Falsa! 

2 − Interesseira!  

(Do livro “De Quatro”, Editora Globo, de 1983) 

* Muamar al-Kadafi, ditador que dominou a Líbia por 42 anos. 

* Menachem Begin primeiro ministro israelense, ganhador no Nobel da Paz, em 1978. 

* Paul Marcinkus, arcebispo norte-americano, conhecido pelo seu envolvimento num dos maiores escândalos financeiros do Vaticano. 

**. O Chile, São Salvador e a Nicarágua viviam, nos anos 1980, em brutais ditaduras. A Nicarágua vive até hoje...

sábado, 18 de março de 2023

Prêt-à-porter de Tafetá

Aldir Blanc e  Jão Bosco

Esta música de João Bosco e com letra de Aldir Blanc narra, com início meio e fim, à maneira carioca de dizer as coisas, uma cantada, com lances de recusa, e, finalmente, o encontro para o affair entre os personagens. 

Blanc utiliza-se de palavras francesas (com grafia incorreta) para sugerir os acontecimentos. Os sons das palavras estrangeiras dão o toque de malícia para entender a história, que, aparentemente, não quer dizer nada, mas diz tudo. Basta entendê-la. 

(O encontro) 

Pagode em Cocotá,
Vi a nega rebolá
Num preta-porter de tafetá.
Beijei meu patuá,
Ói, sambá, Ói, ulalá
Mé carrefour, o randevú vai começá.
 

(A recusa da abordagem) 

Além de me empurrá:
“Kes que sé, tamanduá?
Purquá jé suí du Zanzibar.”
 

(A cantada maliciosa) 

Aí, eu me criei: pas de bafo, mon bombom,
Pra que zangá?
Sou primo do Villegagnon.
Voalá e çavá, patati, patatá,
Boulevar, saravá, sou da Praça Mauá.
Dendê, matinê, padedê

Meu peticomitê, bambolê,
Encaçapo você.
 

(O encontro marcado e as perspectivas sacanas...) 

Taí, seu Mitterrand,
Marcamos pra amanhã em Paquetá,
Num flamboyant en fleur
Onde eu vou ter colher.

Pompadu? Zulu,
Manjei toá bocu!... 

P.S. Essa música está na internet, na voz do autor de música: João Bosco.

A letra da música contada 

Um pagode com música ao vivo em Cocotá, bairro da zona Norte do município do Rio de Janeiro, localizado na ilha do Governador. 

Um malandro avista uma linda mulata num vestido sensual, prêt-a-porter de tafetá, tecido muito antigo feito à base de fibra de seda ou material sintético. 

Para dar sorte e se dar bem na sua intenção de cortejar a moça, ele beija seu patuá, que é um amuleto muito utilizado por pessoas ligadas ao candomblé, e vai à luta. 

A moça, ao se sentir assediada por um desconhecido, empurra-o como defesa de seu corpo. O cara, então, resolve partir para uma conversação de malandro com boa lábia e se desculpando pela forma como ele a abordou, afinal ele é da Praça Mauá, que é uma praça situada no bairro do Centro, na zona portuária e boêmia da cidade do Rio de Janeiro. 

Depois de uma cantada muito convincente, eles resolvem se encontrar, no dia seguinte, na Ilha de Paquetá, à sobra de uma árvore, onde ele acha que irá se dar bem e comer algo muito íntimo e delicioso...