domingo, 5 de março de 2023

O pescador e o executivo

 Alcy Cheuiche*

Dez anos suados em São Paulo me fizeram um connaisseur em matéria de executivos. Até na praia, disfarçado de banhista ou pescador, sou capaz de identificar o cujo e sair correndo de perto. Como aconteceu outro dia comigo, aqui em Atlântida Sul.

O executivo contumaz, mesmo de calção, respira e transpira como se estivesse de gravata. Cada pessoa que lhe apresentam é uma nova chance de negócios. O brilho do olhar, o equilíbrio do aperto de mão, o meio sorriso herdado dos chefes norte-americanos, são características patognomônicas. Alguns deles, nem na praia conseguem separar-se do laptop. Outros são esportivos, queimados de sol, até letrados, mas não resistem à comichão de relatar seus feitos no business world ao primeiro incauto. O tom de voz é confessional, as pessoas que mencionam estão na crista da onda. A onda que deveriam estar furando com um bom mergulho, em vez de nos encher o saco.

É um desses executivos empedernidos o personagem principal da parábola que vou narrar.

O referido marketing manager foi passar as férias numa praia do litoral paulista. Depois de dormir três dias seguidos, acordou com vontade de pescar. A manhã era convidativa. Céu azul, nenhum vento, mar quebrando preguiçoso contra a praia e os rochedos. O executivo tomou do seu caniço importado, ajustou o molinete, verificou a linha, o anzol, as iscas coloridas, untadas por um feromônio infalível, e partiu para a pesca. Conseguiu um ponto vantajoso nas rochas e espalhou o material, bem ordenado, em torno da sua cadeira de lona. Findo os preparativos, lançou a linha à água, calçou o caniço em moderno dispositivo e ficou à espera dos peixes.

Passada uma hora de frustração, surgiu ao lado do executivo um pescador caiçara, morador das redondezas. Estava armado de um caniço de taquara do mato, mal e mal aparado à faca. A linha era de barbante e o anzol parecia um simples arame torcido. Era um homem moreno, baixinho, de tipo indígena e idade indefinível.

O pescador catou por ali mesmo um caramujo, quebrou-o com uma pedra e prendeu o recheio gosmento no anzol. A linha era curta e sem chumbada. Já no primeiro lance, boiou um pouco e afundou de repente. Sob o olhar atônito do executivo, o caiçara firmou o caniço, cansou o peixe e puxou-o de mansinho para cima das rochas. Era um peixe arredondado, de escamas brilhantes. Um quilo e meio, no mínimo.

O pescador catou outro caramujo e repetiu a operação. Em meia hora, pescou mais dois lindos peixes e guardou-os junto com o primeiro no velho saco de lona, manchado de óleo. A linha do executivo continuava parada e murcha como o próprio dono. 

Posto o saco no ombro, o pescador sorriu cortesmente e se foi por uma trilha que subia o morro. O executivo quebrou caramujos, guardou a isca artificial, jogou a linha mais perto, e nada de peixe. Cansado, voltou para o hotel e para o scotch.

Na outra manhã, repetiu-se o fato. Mas, desta vez, o executivo resolveu abordar o pescador que, com mais três lindos peixes, preparava-se para ir embora.

− Já vai? Por que não tira mais um peixe?

O homenzinho estranhou a pergunta.

− Pra quê? Já tenho o que chegue pra o almoço e a janta da minha gente.

− Se tirasse outros peixes, poderia vendê-los no mercado.

− Não carece, não senhor. Quando preciso, troco um ou dois destes na feira por açúcar ou café. O resto nós colhe na rocinha.

O executivo não desistiu.

− Se vendesse mais peixes, poderia ganhar um bom dinheiro. Comprar um refrigerador. Até mesmo abrir uma peixaria.

− Pra que uma peixaria, meu senhor?

− Para ter lucro e comprar um caminhão frigorífico. Contratar pescadores. Vender peixe para a capital. Até exportar.

O pescador olhava o executivo como hipnotizado. O homem estava na fase de investir na bolsa, em commodities. Nesta altura, o pescador já era proprietário de uma firma organizada, com gerentes, secretárias, marketing plan, cash flow, advertising até na televisão.

− Está vendo só? Tudo isso você pode ganhar se for mais ambicioso... Mas se conforma em tirar três peixes e vai-se embora. Um desperdício de tempo e de dinheiro.

O caiçara olhou pela primeira vez nos olhos do executivo e perguntou:

− E o que qu’eu ia fazê com toda essa dinheirama?

− Ora, o que quisesse. Do que mais gostar. Poderia até deixar um bom gerente-adjunto cuidando dos negócios e vir pescar, bem sossegado, como eu, nesta praia. 

Sem dizer mais nada, o pescador enrolou a linha no caniço, botou o saco no ombro e foi-se embora. Mas saiu olhando de soslaio, cuidando as costas, de medo que aquele doido varrido lhe atirasse uma pedra. 

* Escritor 

(Do jornal Correio do Povo, março de 2023)

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