quinta-feira, 30 de março de 2023

Bulas do terror

 Ruy Castro

O fim do ano chegou e, com ele, o prazo dado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para que todo medicamento vendido no Brasil passe a vir com duas bulas. Uma, dentro da caixa, em linguagem acessível ao leigo e em corpo e espaço adequados aos pacientes − os quais, apesar do nome, não têm paciência para ler a dita por causa da vista cansada. A outra, eletrônica, no site da Anvisa, na linguagem mais técnica possível, apenas para os médicos, e esses que se virem.

Pelo visto, a medida ainda não entrou em vigor. Outro dia, ao sair do banho num hotel em cidade estranha, dei uma estúpida topada com a canela na borda do azulejo do box. A perna inchou, ficou vermelha e, pelos dias seguintes, como o dodói não passasse, resolvi tomar providências. Bem à brasileira, uma amiga me examinou por telefone e receitou uma pomada. Fui à farmácia, comprei-a e apliquei. E só então li a bula.

“Este medicamento (fator de difusão enzimática)”, dizia o texto, “é composto de mucopolissacaridases com atividades condroitinásica e hialuronidásica, despolimerizando os mucopolissacarídeos (ácidos condroitino-sulfúrico e hialurônico) da substância fundamental do tecido conjuntivo, especialmente subcutâneo. A despolimerização da substância fundamental das trabéculas conjuntivas do tecido subcutâneo facilita as trocas metabólicas locais”.

A transcrição é literal. Pois li e entrei em pânico − imagine se os mucopolissacarídeos, ao despolimerizar as trabéculas conjuntivas, provocassem uma reação das atividades condroitinásica e hialuronidásica? O que seria de mim?

Por sorte, nada disso aconteceu − ou, quem sabe, aconteceu e não percebi − e o remédio logo começou a fazer efeito. Ótimo. Mas é aconselhável manter não só os remédios, mas também as bulas, como essa, fora do alcance das crianças. 

(Crônica do livro “A melancia quadrada”, de Ruy Castro)

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