segunda-feira, 20 de março de 2023

O literal

 João Alberto Soares

Não, ele não era louco. Apenas entendia e fazia as coisas ao pé da letra. Ou melhor, literalmente. Letra, para ele, não tinha pé. 

Fora assim desde pequeno. No jardim da Infância reclamava muito de que no tal Jardim da Infância não tinha nenhum jardim. A mãe tentava explicar: 

− Meu filho, jardim é um modo de falar. 

− Não, mãe. Jardim é um lugar cheio de flores. 

No adiantava. Se o ensinavam que as palavras tinham este ou aquele significado, por que as pessoas teimavam em falar e entender de outra maneira? Respondia às críticas com este argumento. 

No quinto ano primário teve sua primeira experiência dolorosa. Andava mal no colégio. O pai chamou-o para uma conversa: 

− Filho, sua mãe me disse que você anda pelas caronas no colégio. 

− Como? 

− Soube que você andou obtendo notas um pouco baixas no colégio. 

− Ah, é. 

− Você precisa estudar mais, meu filho. 

− Sim, pai. 

− Você precisa se atirar de cabeça nos livros. 

Dito e feito. Meia hora depois foi preciso levá-lo às pressas ao pronto-socorro com um enorme galo na cabeça. 

Outro dia estavam todos na sala vendo televisão. Como achasse que o pessoal na tevê não estava dizendo coisa com coisa, ele ligou o rádio e ficou ouvindo música. A mãe pediu para baixasse o rádio. Ele atendeu na hora: pegou o rádio de cima da mesinha e colocou-o no chão, sob o sofá. 

Não, não é de rir. Não foram poucos os mal-entendidos na sua vida. Teve aquele do aniversario de quinze anos, quando convidou uma menina para dançar: 

− Que bom que você me tirou. 

− O que é que eu tirei? 

− Tirar pra dançar. 

− Ah. 

− É que todas as outras queriam dar um tirinho em você. 

− Tiro? Em mim? 

Disse isto e saiu como uma bala, correndo como quem corre de tiroteio. 

Certa vez ia entrando no supermercado para fazer umas comprinhas. Uma mulher que ia saindo segurou-o pelo braço e disse dramaticamente: 

− Cuidado! Eles estão arrancando os olhos da cara! 

Foi o que bastou. Deu meia-volta e só parou de correr em casa. 

A última vez que o vi foi quando resolveu aprender violino. Como não se desse muito bem com as notas no papel, após algumas aulas o professor aconselhou-o a tocar de ouvido. Foi parar no médico com a orelha sangrando. 

Depois disso me perdi dele. Alguém me disse que ele estava trabalhando em Brasília. Como salva-vidas no mar de bobagens que é a política brasileira. 

(Do livro “De Quatro”, Editora Globo)

P.S. Esse livro pode ser encontrado nos sebos do centro de Porto Alegre. O meu exemplar consegui num sebo da Rua dos Andradas (Rua da Praia), quase defronte à Casa de Cultura Mário Quintana. 


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