segunda-feira, 30 de maio de 2022

David, tem uma última coisa que queria te contar

 Kelly Matos

Querido David, 

Te escrevo para contar como estamos desde que nos despedimos de ti. Foi no sábado, tu ficaste sabendo? Não sei se aí onde tu estás pega o 4G. Sabe como são as coisas, às vezes demora para conectar. Sim, eu sei, a tecnologia não é o teu forte. Tudo isso eu sei. Mas, lembras que o Geder ensinou a usar o equipamento da rádio lá em Boston? Então, eu acho que vai dar certo. 

De repente, se tu já tiveres feito amizade, podes pedir para alguém a senha do Wi-Fi. Ah, para. Lembrei que tu podes pedir ajuda ao Magro Lima. Esse aí manja tudo. Vai lá e pede para ele. Não te mixa. 

Mas volta aqui que quero te contar como foi. Tu não vais acreditar. 

Primeiro que eu cheguei junto com a Martha Medeiros. Era bem cedo, tipo umas oito e pouco da manhã. Mas nós não fomos as primeiras. Antes, o Duda Garbi já tinha chegado, e ele deixou uma camisa do Grêmio bem ali em cima, para todo mundo ver. O Régis adorou. Ajeitou a camisa assim esticada e deixou ali, bem juntinho de ti. 

Davidzinho, desculpa, mas eu não consegui impedir. Agora todo mundo sabe que tu és gremista. Tu achas que eu deveria ter levado uma camisa do Inter para dar uma disfarçada? O Regis e o Bernardo riram quando eu sugeri. Ah, vai que alguém acreditasse, sei lá. Mas acho que nem daria. O Bernardo disse que não ia deixar. 

Bom, mas em nome da imparcialidade, eu estava lá! E não só eu: o Sóbis, o Guerrinha, o Potter e o Fernando Carvalho. É que o Duda foi esperto e chegou bem antes. Esse Duda! O Nelson adorou. 

Sim, o Nelson. Essa eu tenho que te contar! O Nelson foi na tua despedida também. Aliás, a família inteira. Foi o Nelson, o Duda, o Beto, filho do Nelson, e também o Pedrinho Sirotsky. Todos eles. E pior: chegaram bem na hora que eu estava tomando um chope cremoso. É, ali do teu lado. Eu não sabia onde me enfiar. Imagina eu no meio da capela, com um copo daqueles de boteco na mão, enquanto a família Sirotsky chegava. 

Aí, eu tentei disfarçar, botei o copo para trás, assim, na hora que o Nelson se aproximou. E olha isso: o Nelson chamou o garçom para trazer mais um chope. JURO. Sério. Foi bem assim. Como assim, chope? É chope. Tinha chope na tua despedida. 

Eu vou pedir para te enviarem as fotos que o Botega fez. Enquanto isso eu descrevo: um garçom andava para lá e para cá, com uma bandeja, e servia chope ali mesmo na capela. Servia enquanto as pessoas chegavam perto de ti. Não é para rir. É sério. O Nelson pegou um copo da bandeja, levantou em tua homenagem e fez sinal para eu brindar. Sério, David, olha o que tu me aprontas até depois de ir embora. 

Estava todo mundo lá. O Adelor, a Nádia, o Degô, o Zé Pedro, o Ivan, a Neca, o Ademar, a Marcella. O Jones, o Serginho, o Léo, o Diogo, o Maurício, o Marcelo, o Chuchu, o Renatinho, aquele canalha (era assim que tu chamava, né?). A turma da produção fez uma fila: Larissa, Lisioca, Pancot, Yuri. Da época de Boston: a Greice, o Edward, o Rafael, a Gabriella, a Ana Paula. São alguns que eu consegui ver. 

Quem mais? Ah, David, eu não sei os nomes todos. Estava toda a equipe da Gaúcha: o Zé, o Gabardo, o Lucianinho, a Andressa, o Diori, o Augusto, o Nilson... eu vou esquecer alguém e aí tu vai me arranjar encrenca. O PG tava também, o Cauê, o Rocca, o Tici, o Perrone. A Pri, lembrei! A Pri veio de Londres, desceu no Rio e já embarcou direto para Porto Alegre. Sim, tudo isso por tua causa. 

Quem organizou? Tua família e a Marta. Não, não a Medeiros. A Marta Gleich. Ela estava firme, que nem uma rocha. Até buscar tuas roupas, auxiliando a Marcinha, ela foi. Nessas horas, tem que ter alguém assim, que nem a Marta. Ela não descuidou de nada, nenhum segundo. 

O tempo? Ah, estava chovendo. Compreensível, né. Foi como se a cidade chorasse a tua partida. 

A tua família ficou ali, ao teu lado, o tempo todo. Bernardo ficou te fazendo carinho. A Marcinha ficava junto com ele, era bonito e emocionante de ver. O Regis, essa parte é curiosa, todo mundo ficou impressionado com o quanto ele é parecido contigo. A esposa dele cuidou tanto da tua despedida, David. A Silvia também não saiu de perto. Ela estava emocionada. A Cris, a Noca, a família toda. Não tinha como ser diferente. Como eu te disse, Porto Alegre chorou. 

Ah, tem uma última coisa que eu queria te contar. 

No final, a gente atravessou a rua para fazer a despedida mesmo, ali no espaço da Santa Casa. O Tiago Boff foi até lá − ele estava reportando tudo cuidadosamente para a rádio − e observou que tu ficarias bem pertinho do Teixeirinha. Eu achei bonito. E achei que tu ias gostar de saber. 

Mas não era sobre isso a última coisa. A última coisa foi uma coisa que o Bernardo disse. Quando todo mundo já tinha ido embora, era quase três da tarde, estávamos caminhando eu, a Marcinha, o Regis, a esposa dele e o Bernardo. A gente ia na direção da Oscar Pereira, de volta, porque os carros estavam estacionados onde havia sido a cerimônia anterior. 

E aí o Bernardo, bem calmo, falou sobre a morte. Ele disse que quando a pessoa morre de algo inesperado, como num acidente de carro, ou de avião, a pessoa sofre a dor ali naquela hora. Mas quando é um caso de uma doença que se arrasta, como o teu câncer, a morte não é dor. É alívio. Não um alívio para nós que ficamos, ele disse. Nós sofremos e a gente ainda vai sofrer. Mas para o meu pai, ele completou, a morte não é uma dor. Para o meu pai, a morte é um alívio. 

Sério, David. Foi ele que disse isso, assim, de pronto. 

Eu engoli o choro. 

E pensei: a fruta não cai longe do pé. 

******* 

(Do jornal Zero Hora, 30 de maio de 2022)

P.S. “Seus livros, tenho certeza, continuarão sendo lidos. É assim que a arte triunfa sobre a morte permanecendo”. 

Sergius Gonzaga

domingo, 29 de maio de 2022

Os contadores de histórias

 J.J. Camargo* 

“A vida não é a que a gente viveu,

e sim a que a gente recorda,

e como recorda para contá-la.” 

(Gabriel García Márquez em Vivir para Contarla, 2003)

Os contadores de histórias constituem uma categoria à parte na cultura dos povos de todas as épocas. Nos primórdios, eles foram os veiculadores orais do conhecimento, quando não havia outra forma de divulgação, e por isso eram festejados. Depois, quando a escrita surgiu e se disseminou, eles passaram a ser vistos como diferentes, com inegável tendência a serem diminuídos aos olhos críticos de seus pares mais intelectualizados, mas ainda assim com um público numeroso e fiel. 

O livro mais famoso da cultura ibérica, Don Quixote de la Mancha (1605), revelou em Miguel de Cervantes um dos primeiros representantes dessa categoria original e criativa. Na era moderna, o mais famoso dos contadores de histórias foi certamente Gabriel Garcia Marquez (1927-2014), que, de tão excepcional, quebrou o círculo hermético da alta erudição e ganhou o Nobel da Literatura em 1982. No seu Não Vim Fazer um Discurso, que é uma espécie de biografia através de alguns dos seus discursos mais importantes, ele diz isso, explicitamente: “Não me peçam para falar de literatura porque eu não entendo disso. Eu sou apenas um contador de histórias”. 

No Brasil contemporâneo, provavelmente ninguém divertiu mais se divertindo com as histórias que contava do que Ariano Suassuna (1927-2014), que admitia que importava muito pouco se a história era ou não verdadeira, desde que ela fosse boa. A maioria dessas histórias não estão escritas, e o YouTube é o fiel depositário dessa cultura que não pode se perder. Seria uma pena se os nossos netos fossem privados de rir, por exemplo, do causo de mulher antipática que foi à casa dele, e na chegada anunciou que viera lhe dizer uma coisa que ele não ia gostar. E ele se antecipou: “Pois então, não diga!”. Mas não adiantou. Ela estava determinada e, confirmando que ele era do signo de gêmeos, perguntou: “Você sabia que dizem que as pessoas de gêmeos têm duas caras?”. E ele respondeu “E a senhora acha que se eu tivesse duas caras eu iria usar esta daqui?”. E todos riam, e ele ria mais do que todos. 

Para quem gosta de boas histórias, a internet oferece acesso a verdadeiras preciosidades, muitas das quais, por mérito, viralizaram na rede. 

Selecionei duas para compartilhar: 

“O major do exército americano Robert Whiting, um senhor de 83 anos, chegou a Paris de avião. Na alfândega francesa, demorou alguns minutos para localizar seu passaporte na bagagem de mão. O funcionário da alfândega, sarcasticamente, o repreendeu: “Se o senhor já esteve na França, devia saber que mostrar o passaporte é obrigatório e devia tê-lo pronto para apresentá-lo”. O velho major, constrangido, disse: “A última vez que estive aqui, não precisei mostrá-lo”. O funcionário da alfândega, já com a voz mais alta, disse: “Impossível. Os americanos sempre precisam mostrar seus passaportes à chegada à França!”. Então o major Whiting lançou um olhar longo e duro aos franceses e explicou em voz baixa: “Bem, quando cheguei à praia de Omaha Beach, no Dia D, em 1944, para ajudar a libertar este país, não consegui encontrar um único francês para mostrar-lhe meu passaporte.”

“Quando emigrou para os EUA, Albert Einstein lecionou na Universidade de Princeton. Um dia, saindo de New Jersey de trem, foi abordado pelo cobrador e não conseguia encontrar o tíquete. Foi prontamente identificado pelo cobrador, que lhe disse: “Não se preocupe, eu já o reconheci”, e foi adiante. Quando ia passar para o vagão seguinte, olhou para trás e viu o professor ajoelhado, procurando algo embaixo do banco. Voltou e repetiu: “Professor, eu já lhe disse para não se preocupar com o tíquete, porque eu sei quem o senhor é!”. E Einstein teria respondido: “Obrigado, mas eu também sei quem sou, mas preciso muito descobrir para onde eu estou indo!” 

(Do caderno Vida, de Zero Hora, maio de 2022) 

*J.J. Camargo é cirurgião torácico da Santa Casa de Porto Alegre e membro titular da Academia Nacional de Medicina. jjcamargo.vida@gmail.com

sábado, 28 de maio de 2022

Telefone público

 Cleiton Leal

O orelhão de telefone

tem a voz do povo

e a inércia e solidão da rua,

é mais um esquecido

que ninguém ouve.

Um objeto projetado

para ouvir e falar

tudo que está errado... 

O orelhão de telefone

presta atenção na fome

do pedestre sem lar,

da injustiça que assume

a violência de cada lugar. 

O orelhão de telefone

é o passado diante do futuro.

Ele ouve a fúria dos homens

e o choro das mulheres,

tenta discar o número

porque todos os celulares

estão ocupados filmando...

os olhares da vida artificial. 

O orelhão de telefone

é um psicólogo social.

A escuta coletiva dos excluídos. 

(Do Almanaque Gaúcho de Zero Hora) 

sexta-feira, 27 de maio de 2022

Quando quis morrer*

 David Coimbra 

Eu quis morrer. Não se trata de figura de linguagem, estou falando sério: queria não existir mais. Refiro-me a esse tempo em que passei sofrendo. Alguém me acusará de estar sendo dramático a fim de justificar para o leitor a minha ausência. Em parte é verdade, porque sei que devo explicações. Muita gente, mas muita gente mesmo, mandou e-mail e mensagens perguntando por mim, e não respondi, porque me sentia fraco demais. 

Foi exatamente essa reunião da fraqueza com as dores e com o mal-estar, todos agindo de forma permanente, que me tirou a vontade de viver. 

Agora chegamos a uma parte importante: não deixei de amar a vida. Amo viver, amo a vida e sempre amarei. Mas não estava sendo recíproco. Então, de que adianta estar vivo se não posso fazer nada do que gosto? Uma vida repleta de dor, incômodos e humilhações? Era isso que havia para mim? Não, não, preferia uma morte rápida e suave. 

Só que eu não iria resolver esse problema com minhas próprias mãos. Não podia. Seria péssimo para a vida de pessoas que amo. Mesmo que esteja ausente, você tem responsabilidades, afinal. Assim, o que resta a fazer numa situação dessas? 

Resistir. 

Gemer, chorar, desesperar-se às vezes, mas resistir. 

Não vou aborrecer o leitor detalhando todos os males por que passei. Conto apenas que houve um momento em que fechei a porta do quarto, me encolhi na cama e de lá não saí por dois dias e duas noites. Não comia, não tomava banho, não olhava o celular, não fazia nada além de dormir em posição fetal. No final da tarde do terceiro dia é que me levantei e tentei comer algo. 

Mas agora estou melhor. Cheio de traumas de guerra, todo lanhado e escalavrado, com algumas dores ainda, mas melhor. 

Um dos traumas que carrego é o medo de que tudo se repita. Nós somos prisioneiros do nosso corpo, eis a verdade. Os grandes sofrimentos, bem como os grandes prazeres, constituem uma camada extra da nossa personalidade. Estão localizados no corpo, mas afetam a mente. Ao mesmo tempo, aquele feixe de dores não me pertence, é algo separado do meu ser. Eu, neste instante, sou quem pede a Deus, a Jesus, a Nossa Senhora, a todos os santos e médicos que me tirem a dor. 

E é então que surge a solidão. A nossa imensa, incontornável solidão. Porque ninguém pode ajudá-lo. O médico já receitou o remédio e é preciso esperar algumas semanas para que funcione. Sua mulher, sua irmã e seu filho o enchem de carinhos, os amigos querem estar junto, até pessoas desconhecidas rezam por você. E você? Você se lamenta porque não há como se livrar do Mal. Não há consolo. Você está sozinho, preso em um corpo que o tortura sem cessar. 

Só que, no fim das contas, aquele movimento gigantesco das pessoas que o amam faz efeito. Meu amigo Glauco cozinha seus pratos deliciosos e eu começo a voltar a gostar de comida, e ganho força. O médico, André Fay, luta até nos finais de semana para achar o tratamento ideal. Minha mulher, a Marcinha, e minha irmã, a Silvia, cuidam tanto de mim que me sinto seguro. A Marta Gleich, diretora da RBS, e o Nelson Sirotsky contêm minha ansiedade em voltar a trabalhar e me garantem respaldo. O Rafael, do Espeto de Ouro, manda um churrasco para alegrar meu domingo, enquanto a Grace e o Edward enviam uma cesta repleta de guloseimas. O Potter leva meu filho ao show do Maroon 5, e leva com gosto, não por dever. A Kelly deixa aqui acepipes para o café da manhã e o Admar traz um vinho delicado como ele. E mais outros tantos, tantos, que seria impossível citá-los em uma página só. Então, talvez eu não estivesse tão sozinho... Fora da prisão do meu corpo, havia um exército a ajudar.  

Isso fez bem. Estou de pé, enfim. Meio esfarrapado, mas de pé. Vamos em frente de cabeça erguida. Com um leve tremor ao pensar no futuro. Mas o futuro não é coisa para se pensar. O que existe é o presente e, se o presente pode ser sorvido integralmente, a vida passa a ser boa. E ela é. A vida é boa**. 

*   A última crônica de David Coimbra, 16 de maio de 2022 

** A última frase do escritor Machado de Assis antes de morrer.

Morre, aos 60 anos, o jornalista David Coimbra

O jornalista David Coimbra morreu nesta sexta-feira (27.05.2022), aos 60 anos, em Porto Alegre. Ele estava internado desde domingo (22.05.2022) no Hospital Moinhos de Vento para tratar um câncer no rim descoberto em 2013. David deixa a esposa, Márcia, e o filho, Bernardo, de 13 anos. 

Desde 2013, o jornalista transitava entre Boston, nos Estados Unidos, e o Brasil, para realizar tratamento experimental contra a doença. O câncer foi tema do último livro de David Coimbra, "Hoje eu venci o câncer", lançado em 2018, no qual o jornalista relata como descobriu e quais métodos o ajudaram no tratamento. 

Nascido em Porto Alegre, em 1962, David cresceu no bairro IAPI, cenário de muitas de suas crônicas. 

Formado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), David Coimbra trabalhou como assessor de imprensa da Livraria e Editora Sulina antes de dar início à carreira de repórter e editor, sob a qual fez carreira em jornais como Correio do Povo, Diário Catarinense, Jornal da Manhã, Jornal NH e Jornal de Santa Catarina, além das rádios Eldorado e Guaíba e da RCE TV.

P.S. “Seus livros, tenho certeza, continuarão sendo lidos. É assim que a arte triunfa sobre a morte permanecendo”. 

Sergius Gonzaga

quinta-feira, 26 de maio de 2022

Essa tem que pensar...

 

Numa reunião de cientistas, aparece subitamente uma fada. Ela diz para um deles: 

− O senhor sempre foi uma pessoa muito sensível e humana e fui encarregada de lhe ofertar um dos três poderes a seguir: saúde perfeita com grande longevidade, riqueza imensa ou sabedoria infinita.  

O cientista escolhe imediatamente: “sabedoria infinita”. A fada dá-lhe um toque com a varinha de condão e desaparece. 

Todos olham assombrados para o ungido, esperado uma reação. Ele para, olha em volta e declara: 

− Eu devia ter escolhido “riqueza imensa”.

Homeschooling:

 mais um delírio bolsonarista 

Por Jéferson Tenório 

Dias atrás, a Câmara dos deputados aprovou o texto-base do projeto de lei que regulamenta a prática do ensino domiciliar (homeschooling). O projeto altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) para admitir o ensino domiciliar na Educação Básica (pré-escola, Ensino Fundamental e Médio). A educação domiciliar é uma das prioridades do presidente Jair Bolsonaro. Na verdade, o texto tende a ser mais um ataque aos docentes do que necessariamente uma proposta para a educação brasileira. 

O argumento para a implantação do ensino domiciliar tem a ver com a ideologia bolsonarista de que é preciso “proteger” os filhos de professores doutrinadores, protegê-los das pautas esquerdistas. Querem proteger os filhos de discussão sobre gênero, sobre educação sexual, sobre racismo, sobre feminismo, sobre igualdade e todas as pautas que fazem parte de uma sociedade que precisa mudar a mentalidade para ser mais justa e menos excludente. 

Num ponto, os bolsonaristas têm razão: professores são doutrinadores. É claro que os professores querem influenciar seus alunos. Não há obviedade maior. Eu mesmo fui um desses. Levei para a sala de aula do Ensino Médio textos e discussões que me pareciam pertinentes: de Michel Foucault a Judith Butler e Angela Davis. Discutíamos assuntos polêmicos e difíceis. E não vejo nada de errado nisso, muito pelo contrário. A doutrina, segundo o dicionário, “é um conjunto coerente de ideias fundamentais a serem transmitidas, ensinadas” ou “conjunto das ideias básicas contidas num sistema filosófico, político, religioso, econômico”. Nessa concepção, os professores são aqueles que trabalham com determinados saberes e conceitos básicos a serem ensinados, debatidos e avaliados. 

A visão equivocada do governo Bolsonaro sobre o ensino vai além do conservadorismo, passa por um profundo desconhecimento do que significa aprendizado. Desconsidera a importância do processo de sociabilidade no ambiente escolar. Quem defende o estudo domiciliar não faz ideia do que significa dedicar-se integralmente à educação dos filhos. 

Se de fato os professores fossem doutrinadores poderosos, influenciadores natos, certamente teríamos um país melhor, com menos preconceito, com pessoas exercendo o bom senso e a gentileza. Se os professores fossem tão eficientes em suas doutrinas ideológicas como dizem os bolsonaristas, o Brasil não teria um governo fascista. Ainda assim, um viva aos professores doutrinadores. Não parem. 

(Do jornal Zero Hora, maio de 2022)



quarta-feira, 25 de maio de 2022

Cuidado ao encontrar velhos amigos de escola

 

Outro dia, eu estava no Mercado Público quando vi, no final de um corredor, um amigo da época da escola que eu não encontrava há séculos. Feliz com o reencontro, aproximei-me, já falando alto: 

- Oswaldo, sua bichona! Quanto tempo! 

E fui com a mão estendida para cumprimentá-lo. Percebi que Oswaldo me reconheceu, mas, antes mesmo que eu pudesse chegar perto dele, só vi o meu braço sendo algemado. 

Você vai pra delegacia! – disse o PM que costuma frequentar o mercado. 

Sem entender nada, perguntei: 

- Mas o que foi que eu fiz? 

- Homofobia! Bichona é pejorativo, o correto seria chamá-lo de “homossexual”. 

Nessa hora, antes mesmo de eu me defender, Oswaldo interferiu tentando argumentar: 

- Que é isso, meu amigo, o “quatro-olhos” aí é meu amigo antigo do tempo de escola, a gente se trata assim, na camaradagem mesmo! 

- Ah, então você estudou vários anos com ele. e sempre se trataram assim? 

- Isso, autoridade, é coisa de criança! 

E nessa hora, o policial já colocou a outra ponta da algema no Oswaldo: 

- Então, você está detido também! 

Aí, foi minha vez de intervir: 

- Mas, meu Deus! O que foi que ele fez? 

- Bullying! Chamando-o de “quatro-olhos” por vários anos durante o tempo de escola. 

Oswaldo, então, se desesperou: 

− Que é isso, seu policial! A gente é amigo de infância! Tem amigo que eu não perdi o contato até hoje. Vim aqui comprar umas carnes para churrasco com outro camarada que pode confirmar tudo! 

E nessa hora, eu vi Jairzinho “Pé-de-pato” chegando perto da gente com dois quilos de alcatra na mão. Eu, já vendo o circo armado, nem mencionei o “Pé-de-pato” pra não piorar as coisas, mas ele, sem entender nada, ao ver Oswaldo algemado, já chegou falando: 

- Que porra é essa, negão! O que tu aprontou aí? 

Aí, então, não teve jeito, fomos os três parar na delegacia, e hoje estamos respondendo processo por homofobia, bullying e racismo. 

Moral da história: 

Nos dias de hoje, é muito perigoso reencontrar velhos amigos!

terça-feira, 24 de maio de 2022

Na hora de escolher uma companhia

 Fabrício Carpinejar

Definir um amor é como escolher uma casa para morar. 

Temos que ver onde bate o sol, qual a incidência da luz, onde secaremos as roupas, qual a proximidade do endereço dos nossos amigos e da família. 

Temos que conferir se o bairro é barulhento, se é perigoso, se podemos passear livremente de noite. 

Se o condomínio permite cachorro, se os vizinhos não são desagradáveis, desaforados e festeiros. 

Cada detalhe fará diferença em sua vida. É necessário pensar na localização para manter o seu emprego, para continuar trabalhando, para não ser sustentado por ninguém. 

Verifique se há um mercado, uma padaria, uma farmácia por perto, se não terá que se deslocar todo dia para muito longe com o objetivo de atender às necessidades básicas. 

Se desfrutará de elevador para as conversas, ou se enfrentará a subida de vários vãos de escada para iniciar qualquer assunto. Se a comunicação pelo prédio é fácil ou penosa. 

Se o quarto é antecedido de um corredor da educação, de uma preliminar de sedução e de enamoramento. Nada de atalhos, de relacionamentos impulsivos e violentos. 

Se contará com área de lazer para resgatar a sua infância ou emprestar a sua infância para os filhos. 

Se há uma porta para visitas, para acolher o círculo de afetos, e outra de fundos, para fugir discretamente da confusão. 

Se há varanda para olhar a movimentação da rua e espiar as estrelas. Se há um banheiro a mais, para não ouvir reclamações de sua bagunça ou de sua demora. 

Se há uma tendência para socialização, uma churrasqueira ou um salão de festas para soprar as tortas de aniversário, para nunca esquecer de comemorar os seus renascimentos. 

Se a casa é arejada, se não tem cheiro de mofo e de ácaro, odor de preconceitos, nem ambientes fechados e claustrofóbicos ideologicamente. É importante que apresente muitas janelas para ampliar os seus pontos de vista e perspectivas dos inúmeros lados da vida. 

Investigue se não resta nenhum ex vivendo de favor dentro de um quartinho, de um coração. Ou se a construção não é assombrada de fantasmas, oriundos de um trauma e de um recalque. 

Identifique se desfrutará, além dos territórios comuns do casal, de um esconderijo somente para você, para a sua privacidade de pensamento, para formar uma biblioteca ou um escritório, para fechar a porta e cuidar do seu amor-próprio. 

Se poderá mexer na terra em algum canteiro e decorar cantos com vasos de suas flores e plantas prediletas. 

Analise qual o tamanho da cozinha, se dispõe de uma mesinha para o café da manhã e espaço para coexistência de alimentações distintas. 

Conhecer um amor é como decidir-se por uma nova morada. Não faça financiamento para o seu sofrimento. 

(Crônica do jornal Zero Hora, 19 de maio de 2022)

Das Duras Descobertas

 Fraga

Pessoas com peso na consciência deixam pegadas tão comuns quanto as outras. 

É mais fácil reconhecer um mau-caráter quando ele não se parece com a gente. 

A principal característica dos desalmados é que eles não escondem o que sentem na alma. 

Depois que morrem, os cínicos são chamados só de defuntos. 

Na ponta da língua e na ponta do pé − aí é que estão os mais rápidos reflexos dos estúpidos. 

Certos políticos e certos imbecis me confundem, de tanta coisa que têm em comum. 

Todo homem tem seu preço não quer dizer que todo homem tem valor. 

Cego, cego mesmo, é o sujeito que não vê um palmo atrás do nariz. 

O pior lado de um cara chato é aquele virado pra nós. 

Para certos indivíduos serem burros completos só lhes falta um pouco mais de Q.I. 

Oportunista − um sujeito que agarra com as duas mãos as oportunidades dos outros. 

Todo homem, no íntimo, tem muita fibra. Pelo menos é o que tem provado a dissecação de cadáveres. 

Quando você discute com um imbecil, pode ter certeza de que são dois. 

Gente nasce a toda hora. Ser humano, não. 

Sou cético, sim, mas só com aquilo em que não acredito.


 Do livro Punidos Venceremos, de Fraga

P.S. Livro encontrado em vários “sebos” de Porto Alegre (o Beco dos livros, na Rua da Praia, possui vários)

segunda-feira, 23 de maio de 2022

A compra e rifa do cavalo

 

Com sérios problemas financeiros, um catarina vendeu seu cavalo por R$ 1.000,00 a um gaúcho, que concordou em receber o animal somente no dia seguinte. No dia combinado, o catarina chegou para o gaúcho e disse: 

Catarina − O cavalo morreu.

Gaúcho  − Morreu?

Catarina − Morreu!

Gaúcho  − Mas bah, tchê, então me devolve o dinheiro.

Catarina − Já gastei.

Gaúcho  − Então me devolve o cavalo morto mesmo.

Catarina − Mas o que tu vais fazer com um bicho morto?

Gaúcho  − Irei rifar, tchê!

Catarina − Um cavalo morto? Quem vai querer?

Gaúcho  − É só eu não falar que ele morreu! 

Um mês depois, os dois se encontram e o Catarina, que vendeu o cavalo, pergunta: 

Catarina − E aí, parceiro, e o cavalo morto?

Gaúcho  − Rifei. Vendi 500 bilhetes a dois pilas cada e faturei 998 reais.

Catarina − E ninguém reclamou?

Gaúcho  − Só o homem que ganhou.

Catarina − E o que tu fizeste?

Gaúcho  − Devolvi os dois pilas pra ele! 

Declaração dos Direitos Desumanos

 Fraga*

Esta versão atualizada da Declaração Universal dos Direitos do Homem é a propósito de um original muito conhecido da boca pra fora e que andou circulando nas mãos de um sorridente presidente americano, que o exibiu como modelo de teoria e até como cunha em negociações internacionais. Omiti alguns artigos apenas por falta de espaço e não, como fazem certos países, por falta de interesse neles. 

Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direito. Mas não podem morrer assim. 

Todo homem tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidas na Declaração original, desde que esteja disposto a correr o risco. 

Ninguém será mantido em escravidão ou servidão. A não ser por vínculo empregatício. 

Ninguém será submetido à tortura nem a tratamento ou castigo cruel que não possa aguentar. 

Todos são iguais perante a lei. Isto é, todos tremem. 

Todo homem tem direito à vida, à liberdade e à segurança. Sem exageros. 

Todo homem tem direito a receber remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais: mercurocromo, gaze, esparadrapo... 

Ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado, salvo honrosas exceções. 

Todo homem tem direito a um julgamento justo e imparcial de vez em quando. 

Todo homem é inocente até prova em contrário, forjada ou não. 

Todo homem tem direito à vida privada e à proteção. Nem que para isso tenha que ir parar numa cela. 

Todo homem, quando perseguido, tem direito a procurar asilo em outros países que perseguem menos. 

Todo homem tem direito a uma nacionalidade, embora isso não lhe traga direito algum. 

Todo homem tem direito à propriedade ou, pelo menos, ao aluguel dela. 

Todo homem tem direito à liberdade de pensamento. Mas que isso não lhe suba à cabeça. 

Todo homem tem direito à liberdade de expressão. Corporal, bem entendido. 

Todo homem tem direito ao trabalho, mesmo que não queira. 

Todo homem tem direito à instrução. Inclusive quem ensina. 

Todo homem tem direito de participar do governo do seu país. De preferência votando ou sendo votado. 

(Publicado originalmente em 1979, em parceria com o querido e saudoso amigo Carlos Carvalho, escritor e dramaturgo.)

(Do livro Punidos Venceremos) 

* Fraga. Jornalista e humorista, editor de antologias e curador de exposições de humor. Colunista do jornal Extra Classe.

domingo, 22 de maio de 2022

Hino à Proclamação da República

 Letra: Medeiros e Albuquerque (1867-1934)

Música: Leopoldo Augusto Miguez (1850-1902)

Proclamação da República-Benedito Calixto-1993

Seja um pálio de luz desdobrado.
Sob a larga amplidão destes céus
Este canto rebel que o passado
Vem remir dos mais torpes labéus!
Seja um hino de glória que fale
De esperança, de um novo porvir!
Com visões de triunfos embale
Quem por ele lutando surgir!

Liberdade! Liberdade!

Abre as asas sobre nós!
Das lutas na tempestade
Dá que ouçamos tua voz!

Nós nem cremos que escravos outrora
Tenha havido em tão nobre País…
Hoje o rubro lampejo da aurora
Acha irmãos, não tiranos hostis.
Somos todos iguais! Ao futuro
Saberemos, unidos, levar
Nosso augusto estandarte que, puro,
Brilha, avante, da Pátria no altar!
 

Liberdade! Liberdade!... 

Abre as asas sobre nós!
Das lutas na tempestade
Dá que ouçamos tua voz!

Se é mister que de peitos valentes
Haja sangue em nosso pendão,
Sangue vivo do herói Tiradentes
Batizou este audaz pavilhão!
Mensageiros de paz, paz queremos,
É de amor nossa força e poder
Mas da guerra nos transes supremos
Heis de ver-nos lutar e vencer!
 

Liberdade! Liberdade!... 

Abre as asas sobre nós!
Das lutas na tempestade
Dá que ouçamos tua voz!

Do Ipiranga é preciso que o brado
Seja um grito soberbo de fé!
O Brasil já surgiu libertado,
Sobre as púrpuras régias de pé.
Eia, pois, brasileiros avante!
Verdes louros colhamos louçãos!
Livre terra de livres irmãos!
 

Liberdade! Liberdade!...

Abre as asas sobre nós!
Das lutas na tempestade
Dá que ouçamos tua voz!

Histórico 

Movimento político-militar que acaba com o Brasil imperial e instaura no país uma República federativa. A Proclamação da República é feita pelo Marechal Deodoro da Fonseca no dia 15 de novembro de 1889, no Rio de Janeiro. 

O último abalo da monarquia é o fim da escravidão, em 13 de maio de 1888. O império perde o apoio de escravocratas, que aderem à República. Liderados pelos republicanos “históricos”, civis e militares, conspiram contra o império. Comandante de prestígio, o Marechal Deodoro da Fonseca é convidado para comandar o golpe. 

A 15 de novembro de 1889, no Rio de Janeiro, à frente de suas tropas, o militar proclama a República. O antigo regime não resiste, mas também não há euforia popular. Dom Pedro II e a família real embarcam para Portugal dois dias depois. Deodoro da Fonseca assume a chefia do novo governo. 

Vocabulário 

Audaz: corajoso
Augusto: majestoso
Aurora: nascer do sol
Brado: grito
Estandarte: bandeira
Hostis: inimigos
Labéus: desonras
Lampejo: clarão
Louçãos: vistosos
Louros: glórias
Mister: necessário
Outrora: em outro tempo
Ovante: triunfante, jubiloso, vitorioso
Pálio: manto
Pendão: bandeira
Porvir: tempo futuro
Púrpuras: vermelhos-escuros
Rebel: revoltoso
Régias: reais
Remir: redimir
Rubro: vermelho
Soberbo: orgulhoso
Tiranos: governantes cruéis
Torpes: repugnantes
Transes supremos: momentos decisivos

Campereada

 Alma andante de tropeiro 

Paulo Mendes

O mundo, meus amigos, gira, gira e gira, roda, roda e roda, passam os dias, as noites, meses e anos, mas continua sempre igual. Minto? Não, não minto, o senhor e a senhora sabem disso. O que muda somos nós, o nosso corpo, às vezes, nossos pensamentos. Tenho a impressão de que nunca mudei, apesar de tantos anos já terem se passado desde aqueles longínquos anos em que fui bolicheiro na Vila Rica. Parece que foi ontem. Havia tardes que seu Neto, o tropeiro, passava pelo bolicho, ele e seu filho, um tal de Pelado, um guri que havia ficado careca precocemente, e que ele criara como filho desde pequeno. O Pelado fora “cria enjeitada”, os pais o abandonaram dentro de uma caixa de papelão na porta de um colégio de freiras. O caso ganhou repercussão e seu Neto se apiedou e se apresentou para assumir a criança. Era um homem conhecido, pobre, mas honesto e trabalhador. O juiz homologou a adoção. 

Apeavam, atavam os cavalos nos cinamomos e entravam na bodega. Eu os esperava na porta, faceiro, pois eram alegres e brincalhões. Seu Neto pedia um aperitivo de canha, um copo pequeno e o filho, um guaraná. Eu os servia e ficávamos conversando, os dois me contando suas aventuras com as tropas que costumavam repontar para a “Charqueada”, como chamávamos o frigorífico. Muito tempo atrás era mesmo uma charqueada, mas ficara o costume e o nome. Viviam juntos, os dois, pelos caminhos ermos do Planalto, pelos corredores sem fim, dia e noite. Seu Neto tinha uma casinha simples no arrabalde da Vila Rica, onde morava a esposa, dona Antônia. O casal de filhos já adultos, tinha batido as asas, “se foram” como dizia, para outros pagos, ganhar a vida. O tropeiro fora morar na cidade justamente para que os filhos pudessem estudar “e não passar os sacrifícios de um tropeiro”. 

O Pelado não quis estudar de jeito nenhum, preferiu seguir o ofício do pai, como se precisasse pagar um favor. No segundo ano primário, pediu para acompanhar o pai nas lides. “Esse guri nasceu pra viver comigo mesmo”, conformou-se o velho tropeiro e, assim, fizeram uma vida juntos. Um ajudando o outro. O velho, ensinando ao guri as artimanhas da atividade, o guri ensinando ao velho que ainda era possível ser guri de novo. E, apesar de parecer o contrário, o Pelado era flor de sabido. Gostava de ver as figuras em meus livros escolares que mostrava a ele nas horas em que seu Neto proseava com meu pai nas tardes domingueiras. Ele se animava , indagava o nome dos lugares, das cidades grandes, das imagens de botânica, de ciências e do corpo humano. Depois emudecia, mirava vazio e eu, sem saber o que fazer, guardava os livros e ficava sentado ao seu lado, solidário em seu mutismo campeiro. 

Seu Neto e o Pelado foram criaturas raras que conheci no tempo de bodegueiro. Foram felizes na culatra das tropas até serem engolidos pelo progresso e pelos caminhões boiadeiros. Seu Neto morreu de velho, sentado em frente da casa escutando Gildo de Freitas. O Pelado se empregou num aviário e aos finais de semana participa de rodeios. Na última vez que o vi, abraçou-me com os olhos encharcados e pediu: “Conte no jornal um pouco do que fizemos”. Conto sim, Pelado, porque jurei que faria isso e porque há muito me tornei um tropeiro das palavras. 

(Do Correio do Povo, 26 de dezembro de 2016)

sábado, 21 de maio de 2022

Velhas e lindas e livres

 Magali Moraes

Com que idade a gente fica velha? Dizem que o corpo humano começa a envelhecer a partir do momento em que se nasce. Mal comparando (e sendo bem racional), é como um carro 0 km, que já desvaloriza assim que sai da revenda. Pesquisadores mais otimistas afirmam que o organismo inicia o processo de envelhecimento aos 20-30 anos. Desesperador? Injusto? Quando a gente se dá conta, a coisa está rolando há muito tempo. E você com medo dos 40, 50, 60. 

Pra que se iludir? Seria menos estressante aceitar o fato e se preparar com antecedência. Pena que a sociedade insiste em cobrar a juventude eterna. Se é um processo fisiológico pelo qual todos nós passamos, não ter essa vivência significa sair de cena precocemente (o que não é uma boa opção). Alguns lidam melhor com o envelhecer, mas as mulheres sofrem mais pela pressão envolvida. Pensei duas vezes se colocava “velhas” lá no título. Que o choque da palavra sirva pra ativar o colágeno. 

Rugas adoram jogar na nossa cara a passagem do tempo. Marcas de expressão que vincam a pele são resultado de infinitos sorrisos, preocupações, boas e más experiências – basicamente o viver. Vem incluído no kit as paralelas na testa, o bigode chinês, as linhas de marionete (boca de ventríloquo), o código de barras ao redor da boca. Saudade de quando a gente só esperava os pés de galinha. Ah, se fosse apenas o rosto a revelar a quilometragem alta. Tem o pescoço plissado (inventei essa), manchas nas mãos, pele soltando do osso, dores nas juntas. 

Reformulando a pergunta inicial: com que idade a gente realmente fica velha? A idade do corpo ou da mente? Aí que o jogo vira. O emocional é tão poderoso quanto o condicionamento físico. Precisa de mais leveza, bom humor e menos paranoia pra transitar nessa fase da vida. Lembrando que jovens de alma idosa existem aos montes. Se sentir bem na própria pele (enrugada ou não) é uma baita vantagem competitiva. 

Já é notícia antiga que a população brasileira está envelhecendo. Sem tempo pra etarismo, gente. Podemos ser velhas e lindas, livres, sábias, gostosas, produtivas, orgulhosas da nossa trajetória. Com ou sem botox. De cabelo branco ou pintado. Buscar o que nos faz bem, começar projetos desafiadores, usar a roupa e a make que quisermos. Amar na idade que for. Ter vida social intensa ou preferir o sossego. Assumir que não temos mais paciência pra gente chata e escolher quem merece a nossa companhia (virou mantra, Manu). 

Se foi tranquilo pro Brad Pitt dizer que ele está velho e não aguenta mais gravações à noite (o vídeo circula na internet), pra cantora Adele deve ter sido libertador falar que ela não quer fazer hits pro Tik Tok. Que prefere criar músicas pra quem é da sua geração, “pessoas que estão no meu nível em termos da quantidade de anos que passamos na terra e as coisas que passamos”. Acho justo. 

******* 

(Do jornal Zero Hora, maio de 2022) 

Punidos venceremos

 Por Fraga*

Arte: Rafael Sica 

Num dia de junho, ao dar de cara com uma charge que era a sua cara, Bozonaro engrenou verbos reativos: emburreceu, emputeceu, enlouqueceu. 

Como não bastou gritar basta! pela nona vez, decidiu invocar a Lei de Segurança Nacional. Aquela mesma que, se o senhor não tá lembrado dá licença de alarmar: a da Ditadura. Lei que, na matilha das leis que ameaçavam as liberdades, era um pitbull hidrófobo contra o livre pensar. 

Mandou abrir investigação contra o autor. Onde se viu chargista ousar um perfeito retrato falado da presidência? Danação! Dias antes, ódio nos olhos por charges certeiras contra a violência policial, já interpelara na justiça outros 4 chargistas. Se pretos e pobres das periferias continuam na preferência para apanhar e serem mortos, nunca irão faltar charges. 

Bozonaro já não sabe o que fazer com o enxame de chargistas ao redor da sua estupidez. São Aroeiras, Laertes, Benetts, Montanaros, Mors, Santiagos, Vasques e Hals, entre outros ferrões. Eles esvoaçam pela mídia e redes à procura do néctar ácido da realidade, com o qual produzem a crítica que tanto azeda Bozonaro e mobiliza a opinião pública. Charge é serviço à sociedade. 

Aos zumbidos, Bozonaro até se faz de surdo. Ele mesmo é mais barulhento que qualquer abelheira. As últimas ferroadas é que doeram na alma do desalmado. Aroeira picou mais fundo, ao transformar a cruz vermelha dos hospitais invadidos numa suástica bozonazista. Enquanto o impeachment não vem, serve pichação gráfica. 

Ao apelar à Lei de Segurança Nacional, o inseguro chefe do Executivo (que nada executa pro bem do país) mexeu com o vespeiro todo: mais de 150 chargistas aferroaram esse crente da morte e descrente na ciência. Por incitar as viróticas invasões hospitalares, fez jus ao repúdio a traço. 

O deprimente da república esquece o óbvio: só uma lei pode impedir charges contra desmandos de governantes e contra a violência policial – basta governar democraticamente e policiar sem truculência. De resto, os ataques de Bozonaro à democracia são mais virulentos que charges denunciadoras dos seus desatinos; e as canetas contra cassetetes, muitíssimo menos violentas que a própria PM. 

Bozonaro blefa em vão: não há como conter a inteligência ferina do humor. Nem como inibir centenas de artistas e coibir tantos espaços para manifestação. Tampouco censurar as artes da charge, do cartum, da tira, da caricatura. Ou decretar o uso exclusivo de nanquim rosa para suavizar a imagem do pior presidente que o Brasil já teve. 

Quanto menos democracia, mais chargistas e charges. 

Publicado em 15 de julho de 2020 

* Fraga é escritor, humorista, publicitário. Escreve mensalmente para o jornal Extra Classe.

sexta-feira, 20 de maio de 2022

Versinhos revisitados

 Por Fraga*

I

Batatinha quando nasce

esparrama pelo chão,

aí vem o intermediário

e começa a inflação. 

II

Atirei um limão verde

de pesado foi ao fundo.

E os peixinhos gritaram:

“Tem DDT, seu imundo!” 

III

Lá atrás daquele morro

corre água com  sabão.

Meu verso acabava em sexo

se não tivesse ´poluição. 

IV

Quando eu era pequeninho

minha mãe me dava leite.

E agora que eu sou grande

a carestia me dá porrete. 

V

Ciranda, cirandinha,

vamos todos cirandar.

Vamos dar a meia volta,

que a ordem é circular! 

VI

O anel que eu te dei

era falso e se quebrou.

O carnê que tô pagando

é de verdade e me ralou. 

VII

Eu fui no itororó

buscar água e não achei.

Encontrei só detergente

e de raiva eu espumei. 

VIII

Se essa rua fosse minha

eu mandava ladrilhar

com recibos de impostos

pra Prefeitura se lembrar. 

IX

Cassetete que bate-bate,

cassetete que já bateu.

Quem gosta dele é o PM,

quem detesta ele sou eu. 

X

Atirei um pau no gato,

mas o gato não morreu.

A Protetora indignou-se

com um animal como eu. 

XI

Se eu fosse um peixinho

e soubesse negociar,

enriquecia com o óleo

que há nas ondas do mar. 

XII

O cravo brigou com a rosa

debaixo duma sacada.

O prédio não foi tombado

e a história foi especulada. 

XIII

Marcha soldado,

cabeça de papel.

Se não marchar pra direita,

vai preso pro quartel.

 

* Do livro “Punidos venceremos.”

Poeta Fabrício Carpinejar responde

 Alexandre Frota com texto sobre Pernambuco

Poeta gaúcho escreveu em rede social texto que relembra qualidade cultural de Pernambuco em resposta a comentário polêmico do deputado eleito. 

Poeta, jornalista e escritor, Fabrício Carpinejar, se manifestou através da sua conta no instagram contra o comentário polêmico do deputado eleito Alexandre Frota. No texto, Carpinejar reafirma a qualidade cultural e artística presentes em figura icônicas que nasceram em Pernambuco para fazer alusão de forma irônica a forma pejorativo em que Frota respondeu a um seguidor no twitter nos últimos dias. 

Carpinejar é filho dos poetas Maria Carpi e Carlos Nejar e tem mais de 324 mil seguidores no instagram. A publicação do escritor foi curtida e aclamada, em uma hora, por mais de 4.500 pessoas. 

Relembre o caso

Ao postar, na última terça-feira (25.12.2018), afirmando que 'o Twitter é a rede que mais tem professores, estudiosos, cientistas e lacradores culturais', Frota foi surpreendido por um comentário: 'Também tem ator pornô que não paga a pensão do filho'. De forma pejorativa, respondeu: 'só podia ser de Pernambuco’. A publicação gerou uma repercussão negativa entre os usuários da rede. 

Confira o texto na íntegra: 

Só podia ser mesmo de Pernambuco

Fabrício Carpinejar

Só podia ser de Pernambuco a poesia geométrica de João Cabral, o teatro da vida real, a morte e vida severina. Só podia ser de Pernambuco o frevo, o maracatu, o Galo da Madrugada, a alegria ecumênica. Só podia ser de Pernambuco os bonecos de Olinda, o olhar oceânico do alto das igrejas e dos muros brancos. Só podia ser de Pernambuco a literatura de cordel, o raciocínio rápido do repente, a magia dos violeiros. Só podia ser de Pernambuco Manuel Bandeira e a Estrela da Manhã. Só podia ser de Pernambuco Nelson Rodrigues e o seu carinho pelos vira-latas mancos. Só podia ser de Pernambuco a infância misteriosa de Clarice Lispector, a descoberta da leitura. Só podia ser de Pernambuco Chico Science e o movimento manguebeat. Só podia ser de Pernambuco a cerâmica de Francisco Brennand e seus 1001 dias iluminados de esculturas e azulejos. Só podia ser de Pernambuco o modernismo de Cícero Dias, que já dizia em sua pintura: “Eu vi o mundo... ele começava no Recife”. Só podia ser de Pernambuco a pedagogia de Paulo Freire (do oprimido, da libertação, do compromisso, da autonomia e da solidariedade). Só podia ser de Pernambuco o cinema inovador de Kleber Mendonça Filho (“O Som ao Redor” e “Aquarius”) e de Cláudio Assis (“Amarelo Manga” e “Febre do Rato”). Só podia ser de Pernambuco a irreverência contagiante de Chacrinha. Só podia ser de Pernambuco a sociologia de Gilberto Freyre, profeta do multiculturalismo. Só podia ser de Pernambuco Vavá, o peito de aço, bicampeão mundial de futebol. Só podia ser de Pernambuco Luiz Gonzaga, o Rei do Baião. Só podia ser de Pernambuco o abolicionista Joaquim Nabuco. 

Tem razão. Só podia ser mesmo de Pernambuco, 

(Do Blog do Diário de Pernambuco)