domingo, 31 de julho de 2016

Uma mulher brasileira à antiga

Dia a dia*

Vera Clotilde Garcia Carneiro


O relógio despertara. Seis horas.
Paulinho chorando.
Levanto às pressas, chamo os dois mais velhos para o colégio. Corro para a cozinha, e enquanto esquento a mamadeira do Paulinho, chamo a empregada que dorme. Ligo o ferro para passar uma camisa para o Paulo que acabou de me dizer que precisava sair com a camisa social branca de listrinhas.
Paulinho continua chorando. A mamadeira aqueceu demais. Tem que esfriar.
Naná acordou. Quer os chinelos para ir ao banheiro fazer xixi. Grito para o Paulo atendê-la. Ele está tomando banho. Não ouve.
Maria levantou-se. Está aprontando o café. Deus conserve Maria.
Os dois maiores estão atrasados. A Kombi buzina. Dou-lhes um beijo apressado, alcanço a merenda pronta de véspera e corro para o faminto Paulinho.
Naná chora. Fez xixi na cama porque não achou os chinelos.
Dou a mamadeira para o Paulinho.
Dou os chinelos para Naná.
Dou a camisa para Paulo.
Eu, por minha vez, ganho um beijo apressado. Ele não vem almoçar.
Banho em Naná, banho em Paulinho.
Visto-os.
Entrego a casa virada para Maria e corro com dois ao supermercado, lavanderia, sapateiro e farmácia.
Às dez horas paro na pracinha. Os dois precisam de sol.
Às onze, de novo em casa. Trocar de roupa, almoçar, sesta.
Estico as pernas no sofá. A Kombi buzina.
Chegaram os colegiais. Novidades. Almoçamos. Ajudo-os nos temas. Aparto as brigas e acho as chuteiras. Hora do futebol.
Paulinho chorando. Fome.
Lembro-me que preciso ir ao laboratório hoje, sem falta.
Após as papinhas e fraldas da tarde, deixo-os com Maria e rumo ao laboratório. Ainda bem que tudo é perto e não preciso usar ônibus muito seguido.
Ao voltar, começo a catar peças de uniforme dos jogadores na porta. Alcanço as toalhas para os dois que estão no banho.
Já é noite, Paulinho chora de fome. Naná cabeceia de sono e Maria queimou o feijão do meio-dia.
Paulo chega cansado. Pergunta pelo resultado do exame.
Eu estou entre o choro e o riso.
O novo nenê chega em dezembro.

(Almanaque do Correio do Povo de 1981)

*Dia a dia de antigamente: 

1. Empregada doméstica que dormia no emprego;
2. Mulher que não trabalhava fora;
3. O marido era o único provedor,
4. Família com 4 filhos e esperando mais um.

Hoje:

As empregadas são diaristas, poucos podem contar com esses serviços;
As mulheres competem com os maridos;
Familias menores com filhos planejados.


sábado, 30 de julho de 2016

Mário Quintana 110 anos




“Que horas são?”

Comecei a escrever este poema
às 12h23min de 12 de agosto de 1974.
Os pesquisadores não querem outra vida.
Eles morrem por dados
– mal sabem que a vida é um incerto
e implacável jogo de dados...
E eu tanto que desejava que minha
biografia terminasse de súbito
simplesmente assim:
“Desaparecido na batalha de Itororó!’
(Desaparecido? Meu Deus,
quem sabe se ainda estarei vivo?!)

***

“Amigos não consultem os relógios
quando um dia eu me for de vossas vidas
em seus fúteis problemas tão perdidas
que até parecem mais uns necrológicos...
Porque o tempo é uma invenção da morte
não o conhece a vida – a verdadeira –
em que basta um momento de poesia
para nos dar a eternidade inteira”.


sexta-feira, 29 de julho de 2016

Uma história real do Rio Grande


(Noutro baile será pior)

Raul Annes Gonçalves


Estávamos atrasados, tínhamos perdido um tempo enorme, aquela tarde. Galopando uns potros. Éramos três gaúchos acostumados na dura lida com gado arisco e cavalhada chucra. Idade: beirava 21 anos. Estávamos prontos a dar peleia em defesa própria ou para salvaguardar algum indefeso.

Era lusco-fusco. Depois de havermos tomado um banho na sanga, já com roupas domingueiras montados em nossos cavalos de passeio rumávamos para um baile. Nos repechos íamos ao tranco, nos lançantes a trote largo e no plano metíamos galope.

Havia pressa, pois, o baile era com janta. Paga-se entrada, mas teria assado, leitão e café com rosquinhas.

Ao chegarmos ao local do baile, logo nos apresentamos ao dono da casa. Em seguida fomos convidados a desencilhar e soltar nossos cavalos no potreiro. Os arreios emalados e depositados em um quarto no galpão. O pessoal estava jantando ao ar livre, embaixo de uma ramada improvisada, com faróis dependurados nos esteios, que iluminavam com deficiência as compridos mesas ladeadas por compridos bancos. As risadas, conversa e gritos festivos da mocidade ali reunida, eram abafados pelos acordes de uma gaita que tocava uma rancheira. Logo nos entreveramos com aquela gente, tomando assento à mesa. Depois da janta, os bancos foram transportados para a sala, e colocados em fila e junto à parede onde teria lugar a dança.

Pelos moços, ficamos sabendo que um tal de Ica, brigado com a noiva, havia sentenciado que naquele baile dançaria com a moça, quer queira quer não. Soubemos, também, que o tal gaúcho era quebra; já havia esbofeteado uma moça por não querer dançar. Todo mundo comentava, com receio, o perigo se o maleva aparecesse e a moça o rejeitasse.

O baile iniciou-se com grande entusiasmo. Lá pelas tantas apareceu o temido gaúcho. Assomou no limiar da porta de chapéu na mão. Cumprimentou a todos com um aceno de mão e braço e, por sua própria conta, tomou acento na sala. O silêncio logo tomou conta daquela gente alegre e feliz. O gaiteiro fez uma pausa, fechando a gaita. O ambiente parecia tomar jeito de velório; ninguém falava, só trocavam olhares. O intruso de vez em vez passava a mão no bigode e olhava para a dita moça. Esta, tímida e insegura de si mesma, não resistindo àquela situação, levantou-se com propósito de abandonar a sala. Mas, rápido, um dos nossos companheiros, conhecendo a intenção da moça, embargou-lhe os passos, solicitando a honra de dançar a primeira marca. E ali ficou, de pé, ao lado da trêmula jovem, tal qual um guardião. Ou melhor ainda, como um macho pronto a defender uma fêmea.

O gaúcho maleva não gostou daquilo. Viu que a moça tinha um defensor. Porém, em seu rosto, estampou-se um riso de mofa, de escárnio. Parecia antegozar da fama de sua valentia perante aquela rapaziada imberbe e indecisa. O ambiente tornou-se de suspensão. Algo iria acontecer.

O atrevido gaúcho levantou-se, e, com andar macio, gingando os ombros, dirigiu-se para o gaiteiro pedindo que tocasse alguma coisa, no que logo foi obedecido.

No caminhar notamos que o gaúcho trazia oculta, por dentro da bombacha, ao correr da perna, uma adaga.

Assim que o gaiteiro floreou uma marca, o gaúcho dirigiu-se para o par que se aprontava para dançar, e disse em tom imperativo:

– Cavalheiro, esta moça é comprometida.

Apesar do susto estampado no lindo rosto da moça, esta, ao sentir-se segura sob o olhar firme de seu par, respondeu:

‒ Já estive, mas agora sou livre.

Ao que contestou o gaúcho entre dentes:

– É o que veremos.

Nós que já estávamos de olho naquela cena, sentimos que era hora de agir.

Rápido nos acercamos do trio em difícil situação, e colocando-nos um de cada lado do maleva, lhe falamos baixo no ouvido:

– Amigo, vamos lá fora que temos algo para te fazer mudar de palpite.

E sem dar trégua, o tiramos calçado, como capão para consumo, porta a fora, sob a admiração e aprovação de todos.

Lá fora o gaúcho virou bicho e quis dar rodeio. Boleou a anca e puxou pela adaga.

Mas o desgraçado foi sem sorte, nós éramos três...

No final tivemos de ajudá-lo a montar a cavalo e sair estrada afora com esta advertência:

– Se não te portares direito, em outro baile será pior. Terás a sorte do porco que já foi cachaço.

*****

(Do Almanaque do Correio do Povo de 1977)

Glossário:

Chucra: bravia, gado não domesticado, animal ainda não domado.

Peleia: briga.

Repechos: encostas, aclives, subidas.

Lançantes: declives fortes num cerro ou numa coxilha.

Entreveramos: misturamos.

Emalar: enrolar para guardar alguma coisa.

Quebra: diz-se do cavalo caborteiro e perigoso, pessoa sempre pronta para uma briga.

Maleva: genioso, rancoroso.

Marca: nome que se dá a qualquer música tocada nos bailes de campanha, geralmente por gaiteiro isolado.

Adaga: faca comprida e fina tipo punhal de dois gumes.

Capão: cordeiro castrado.

Cachaço: reprodutor.


Os bichos da minha terra

(Aos Garotos de Bagé)

Adail Bittencourt

Sinto saudade dos bichos
Que habitam a minha terra.
Do touro chucro berrando
Pelas encostas da serra.

Do cavalo soberano,
Das ovelhas em rebanhos,
Da capivara malandra
Soltando gritos estranhos.

Do filósofo jumento
Que é intruso na manada,
A tocar saxofone
Para saudar a alvorada.

O notívago zorrilho,
O negrinho zombeteiro,
Que à noite caça os insetos
E fabrica água de cheiro...

Do lagarto sem-vergonha,
É comilão e guloso,
Que guasqueia a lexiguana
Pra comer mel saboroso;

Da mão-pelada matreira,
Colega do graxaim,
Que pra caçar as marrecas
Se arrasta pelo capim;

Da sorrateira raposa,
Que dorme durante o dia
E, na calada da noite,
Nos galinheiro se enfia;

Da lebre arisca, nervosa,
Saltitando pelo chão,
Entrando sem cerimônia,
Na lavoura de feijão.

Do tico-tico filante
Que anda sempre aos casais,
Rebuscando pelas eiras
O restolho dos cereais;

Da seriema arrebitada,
Barômetro original,
Em suas longas cantilenas
Anunciando o temporal;

Do quero-quero, o peãozito,
Que trabalha sem salário,
Cuidando todos os campos
Com zelo extraordinário;

Do alegre joão-de-barro
Que tira o barro do chão
Para erguer seu edifício
No esteio do galpão;

Da calhandra encantadora
E gatuna dos varais,
Que rouba a graxa do charque
 E vai cantar madrigais;

Posso afirmar a vocês
Que nem um bicho esqueci
Como é grande a variedade,
Não falo em todos aqui.

(Do Almanaque do Correio do Povo de 1972)

Vocabulário da Bolsa de Valores



Ação: títulos de propriedade de uma companhia, negociáveis, representativos de uma fração do capital. O dono de ações de uma empresa é seu acionista e, portanto, dono da empresa na razão direta da participação de suas ações no capital da firma.

Ação ao Portador: título que não traz escrito o nome do seu proprietário, pertencendo, portanto, a quem o tiver em seu poder.

Ação Nominativa: título que traz escrito o nome do seu proprietário. Sua venda é registrada em livro especial da sociedade que o emitiu.

Ação Ordinária: proporciona participação no lucro da companhia e dá direito a voto. Sua participação nos lucros só se dá depois de terem as ações preferenciais recebido sua parte.

Ação Preferencial: em geral não dá direito a voto, mas tem preferência no recebimento de dividendos, mesmo quando estes são limitados a uma taxa máxima prefixada nos estatutos da empresa.

Ágio: importância que o comprador paga a mais sobre o valor nominal de um título.

Ativo: soma de todos os valores e bens de uma companhia, inclusive os direitos suscetíveis de avaliação.

Balanço: demonstrativo contábil, levantado ao fim de cada exercício social, do estado patrimonial e da situação econômica-financeira de uma empresa.

Blue-Chip: anglicismo que designa a ação de grande procura em virtude de sua alta rentabilidade e liquidez.

Bolsa de Valores: lugar onde os corretores de valores, se reúnem, a horas certas, para realizar as negociações encomendadas pelos seus clientes. Somente as sociedades corretoras, membros da Bolsa de Valores, podem ali negociar, através de seus representantes ou operadores. Exerce, também, por delegação do Governo, ação fiscalizadora no mercado de capitais.

Bonificação: ação distribuída gratuitamente (filhotes) aos acionistas, em decorrência de elevação de capital efetuada pelo aproveitamento de reservas ou lucros retidos pela companhia.

Capital Aberto: (Sociedade) – Sociedade Anônima que tem suas ações distribuídas entre elevado número de acionistas e de acordo com normas estabelecidas por lei.

Capital de Giro: numerário que uma empresa deve manter para atender às necessidades diárias, tais como aquisição de matérias-primas, pagamentos de salários, impostos etc.

Caução: depósito de títulos ou valores realizados junto ao credor para garantia da liquidação de uma dívida.

Certificado de Compra de Ações: comprovante emitido por entidade financeira correspondente ao depósito efetuado na compra de ações nos termos de Decreto-Lei 157.

Cotação: preço oferecido no mercado de bolsa para compra ou venda de ações.

Debêntures: títulos de renda fixa, emitidos com autorização do Banco Central – por uma sociedade anônima, com prazo certo de resgate, contra garantia do ativo dessa sociedade.

Direito de Subscrição: o direito reservado aos acionistas de subscrever novas ações da sociedade, na proporção das já possuídas, direito que pode, entretanto, ser negociado.

Financeiras: sociedades de crédito, financiamento e investimento que se dedicam especialmente a financiamento ao consumidor pelo sistema de aceite cambial.

Fundo Mútuo: conjunto de recursos administrados por uma sociedade ou banco de investimento que os aplica em carteira de títulos ou valores mobiliários, distribuídos depois aos cotistas, proporcionalmente, aos resultados de tais aplicações.

Índice: valor numérico que retrata a oscilação do mercado mobiliário, baseado na média das cotações de um grupo de ações que o represente.

Letra de Câmbio: título de crédito pelo qual uma pessoa ordena a outra o pagamento de determinada importância em dinheiro em lugar e tempo prefixados. No mercado financeiro, é gerada por aceite de sociedades financeiras ou bancos de investimento e colocada junto ao público investidor.

Letra do Tesouro: título de emissão governamental, vencendo taxas de juros convencionais.

Letra Imobiliária: título de promessa de pagamento, emitido pelo banco Nacional da Habitação* ou por sociedade de crédito imobiliário, vencendo juros e correção monetária. Nominal ou ao portador.

Liquidez: grau de negociabilidade de uma ação ou título. Determina sua possibilidade de ser transformado.

Obrigação Reajustável do Tesouro: título emitido pelo Governo Federal que vence juros e cujos valores de emissão são periodicamente acrescidos da correção monetária fixada pelas autoridades governamentais.

Par: valor idêntico ao oficial ou nominal, pago na compra de títulos, moedas ou obrigações.

Prazo de Subscrição: período para subscrição preferencial de ações pelos já acionistas, em sociedade anônimas.

Pregão: declaração, pelo corretor, das condições em que vende ou compra certos títulos. O local onde se desenvolvem as negociações das bolsas.

Título ao Portador: título emitido sem identificação do beneficiado e livremente negociável.

Valor Nominal: valor inscrito em cada ação ou cota em que se divide o capital de uma empresa.

Zangão: pessoa sem matrícula como corretora de fundos públicos, mas que realiza operações fora do âmbito das bolsas.

(Do Almanaque do Correio do Povo de 1973)

*Cremos que o BNH exista com outros propósitos e com outra denominação.



terça-feira, 26 de julho de 2016

Uma Carta de Einstein ao Ano 6939



Em 1939*, o Dr. Albert Einstein sumarizou os tempos modernos em uma carta ao povo no ano 6939 da era cristã, a qual foi colocada na Cápsula do Tempo e enterrada no local onde se realizou a Feira Mundial de Nova York.

Dizia o seguinte:

A nossa época é rica em espíritos inventivos, cujas invenções poderiam facilitar as nossas vidas consideravelmente. Atravessamos os mares pela força motriz, utilizando também a força motriz para aliviar a humanidade de quaisquer trabalhos musculares cansativos. No entanto, a produção e a distribuição de comodidades é inteiramente desorganizada, de modo que todo mundo vive no temor de ser eliminado do ciclo econômico. Outrossim, homens que vivem em diferentes países matam-se uns aos outros em intervalos regulares, e como resultado todos aqueles que pensam no futuro vivem assustados. Isto se deve ao fato de que a inteligência e o caráter das massas são incomparavelmente inferiores à inteligência e ao caráter dos poucos que contribuem com algo de valioso para a comunidade. Espero que a posteridade leia essas declarações com um sentimento de orgulho e superioridade justificada”.

*Carta que seria lida 5000 anos após o ano de 1939, ano que começaria a 2ª Guerra Mundial.


Carreta Velha

Lourdes Martins Resende


Desenho de FCarlos reproduzindo uma foto de Lunara

Gemes, carreta velha, nas quebradas,
Vais gingando, sentida, dolorida!
Tu que sempre viveste esquecida,
Nessa viagem sem fim pelas estradas!

Invejável que és! Trazes contigo
A firmeza de seres companheira
Do velho carreteiro, o bom amigo
Que te adorou a vida inteira!

Ginga carreta heroica, em teus lamentos
Cheios de soluços e de amarguras,
Desafoga tua dor ao léu dos ventos.

E tu, carreteiro triste e solitário,
Revivendo tuas negras desventuras,
Vai seguindo em paz o teu fadário!
       
(Do Almanaque do Correio do Povo de 1968)
                
Carreta: veículo rústico, todo feito de madeira, de duas todas, puxado por uma, duas ou mais juntas de boi, podendo ter uma cobertura de palha ou de madeira, abaulada ou em forma de telhado, para abrigar a carga e os passageiros.

Carreteiro: o encarregado de conduzir a carreta.



segunda-feira, 25 de julho de 2016

Vocabulário Político para Principiantes



A linguagem usada nem sempre é acessível ao público. Palavras e expressões empregadas não correspondem ao sentido dado pelo dicionário. Um grupo estudantes, em reunião, proporcionou a oportunidade de um esclarecimento deste vocabulário estudantil. Apesar de algumas discordâncias, foi possível encontrar um ponto comum. Eis o resultado obtido.

Arrocho salarial: atual política econômica ditada pelo governo.

Autocracia: é a forma técnica que existe para definir o atual estágio do Brasil.

Burguesia: classe social que possui os meios de produção em suas mãos.

Capitalismo: sistema econômico baseado no acúmulo de capital.

Comissões Parietais: formadas por professores e alunos responsáveis pela reformulação dos currículos. Sua função será de reger os destinos das faculdades ou Universidade.

Diálogo: tática usada pelos estudantes (ou operários) para obrigar o governo a fazer concessões.

Ditadura: concentração do poder político e econômico numa classe dominante. Sistema de opressão.

Elitização do Ensino: restrição do ensino às classes dominadas.

Imperialismo: etapa superior ao capitalismo que oprime os povos. Aumento de mercados do país dominante.

Integração: processo pelo qual estudante se integra na luta contra a classe dominante.

Lei da Rolha: amordaçamento da liberdade de imprensa.

Lutas Específicas: luta de determinado curso ou faculdade.

Massa: conjunto de determinada camada da população com baixo nível de consciência revolucionária.

Fundações: transformação dos colégios e universidades em entidades financiadas e dirigidas por grupos econômicos particulares.

Opressão: dominação pela força.

Proletariado: classe social que pelo papel desempenhado no processo de produção é a única capaz de solucionar as condições as condições do capitalismo.

Posições: existem duas no movimento estudantil: contra ou favor.

Reacionário: indivíduo que se opõe às mudanças e inovações sociais – antissocialista.

Repressão; maneira da ditadura ou regime fascista de impedir manifestações públicas.

Socialismo: sistema econômico e social onde não existe propriedade dos bens de produção.

UNE: União Nacional dos Estudantes é a única entidade nacional dos estudantes. Encarregada de dirigir as lutas estudantis num plano nacional.

(Do Almanaque do Correio do Povo de 1969)



O Peixe-Símbolo do Cristianismo



Nos séculos em que se fizeram as cruzadas entre os guerreiros que andavam e mesmo moravam longos anos da Terra Santa, houve o costume de usarem pratos de cerâmica, em que se via um peixe gravado. Era o sinal dos cristãos. Já de longe havia alguém notado que as letras da palavra peixe em grego eram simplesmente as iniciais da frase grega: Jesus Cristo Filho de Deus Salvador. E com isso o peixe ficou como um símbolo do cristianismo nascente. A palavra grega é I-CH-T-Y-S, hoje encontrada em termos da língua portuguesa como ictiologia.

Diz a história que, anteriormente aos anos DCCC, antes do século II e das Cruzadas, o bispo Clemente de Alexandria recomendava aos cristãos usar a imagem de um peixe em carimbos e sinetes. E foi também reproduzido em vidro, pedra ou metal para usar em correntes ao pescoço. Em túmulos antigos era gravado o peixe sobre uma âncora, significando “Esperança em Deus”, visto que a âncora era o símbolo universal da esperança. Anéis, amuletos, pedras semipreciosas eram ornamentos onde se gravava o peixe simbólico da religião que teve pescadores como primeiros apóstolos.

(Do Almanaque do Correio do Povo de 1969)


P.S. É muito comum vermos na traseira de automóveis, circulando pela cidade, o símbolo acima, indicando que ali vai um cristão, uma pessoa temente a Deus.




domingo, 24 de julho de 2016

A curiosa origem do nome Brasil


Fernando Sampaio




Como todos sabem, a origem da palavra Brasil está relacionada com o nome da madeira de tintura usada na Idade Média para tingir de vermelho os tecidos.

Ocorre que há, também, outra raiz que concorreu poderosamente para a definitiva consagração do nome Brasil para a nossa terra.

Os antigos celtas tinham lendas sobre a existência de ilhas ou até um verdadeiro continente do outro lado do Atlântico, que eles chamavam de “terra prometida da bem-aventurança” e outras variações, ou seja, exatamente, ilhas “bresail” ou “brasail”, que quer dizer “bem-aventurança”.

Gustavo Barroso, escrevendo em 1941 o seu “O Brasil na lenda e na cartografia antiga”, mostrou pela análise dos mapas correntes na Idade Média que ilhas chamadas “brasil” ou com variantes, eram marcadas nos mapas como existindo no lado de cá do Atlântico, segundo o influxo das lendas célticas.

Com a descoberta das ilhas americanas por Colombo, que realmente não chegou na sua primeira viagem ao continente americano, e a sucessiva descoberta de outras ilhas nas Antilhas, logo surgiu a ideia de associar-se uma certa “Ilha de Vera Cruz”, de onde se extraía o pau-brasil ou também chamado “verzino”, “berzino” ou “berzil” com a lenda celta e é desta associação muito forte que vingou o nome de “brasil” e não nenhum nome religioso para o Brasil, como – aliás – não cansavam de lamentar os cronistas religiosos da época, dizendo que o diabo andara alterando o nome da “terra de Santa Cruz” para o nome pagão (celta) “bresail”.

Mapas Antigos

Assim, as lendas irlandesas e a língua gaélica vieram marcar o nome de um país americano muito depois que surgiu a primeira ilha encantada designada por este nome em um mapa, o que se diz, foi em 1339, no mapa de Dulcert.

O nome Brasil consta, portanto, nos mapas muito antes da própria descoberta do Brasil e, mesmo que aqui não tivesse sido descoberto o “pau-brasil”, é quase certo que este nome seria cogitado para o País.

Brasil já foi nome, também, das ilhas que correspondem aos Açores. Depois ficou reservado a uma destas ilhas, a Terceira. Depois da ocupação do arquipélago pelos portugueses, pelo século XV, restou apenas a lembrança no “Monte Brasil” e na “Ponta Brasil”, próximos à cidade de Angra.

No Monte Brasil localiza-se, atualmente, o que resta do forte mandado construir originalmente por Felipe II em 1591, chamado “São João” (J. Vidago – A ilha do Brasil, Lisboa, 1938).

Embora este nome tenha desaparecido das ilhas ocupadas pelos portugueses, ainda permaneceu por muito tempo nos mapas.

A Rocha Brasil

Inclusive há o caso curioso da rocha Brasil, uma rocha que se eleva sobre as ondas na costa da Irlanda, perigosa para a navegação. O nome dessa elevação rochosa é tudo o que restou nos mapas de navegação entre 1853 e 1856, da velha lenda irlandesa. Segundo as cartas marítimas daqueles anos, as últimas que fazem referência a este nome, ela se encontrava a 51 graus 10 minutos Norte e 15 graus 50 minutos Oeste.

Portanto, a palavra Brasil deve-se a duas origens. Por um lado a velha palavra gaélica “bresail” ou “brasail” (bem-aventurança) e pelo outro a também antiga palavra “bracil”, “berzino", etc. (que permanece no inglês em brazier que quer dizer brasileiro ou no francês braise que são brasas, portanto, cor de fogo para a tinta obtida da madeira).

(Do Almanaque do Correio do Povo de 1982)



sábado, 23 de julho de 2016

Como começar uma coleção de vinhos



Beber uma garrafa de vinho é, acima de tudo, uma experiência. A prática e o conhecimento vêm com o tempo, e vontade e curiosidade são os principais pontos de partida de quem quer começar neste mundo. Selecionamos algumas dicas para começar uma adega em casa.

→ Tenha sempre um vinho branco, ao menos dois vinhos tintos e dois espumantes em casa. Todos os tipos de vinho vão bem do aperitivo ao prato principal, tudo depende do que agrada o paladar. Que tal um vinho tinto com petiscos, um vinho branco com queijos e um espumante para o prato principal? O importante é dar o primeiro passo.

→ Comece pelas uvas clássicas, como a Chardonnay, uma variedade branca. Embora sua origem seja na França, ela é produzida em diversos países do mundo, inclusive no Brasil. É uma das uvas mais usadas na produção de vinhos brancos e espumantes. Isso significa que são rótulos mais fáceis de serem encontrados. Na hora de escolher o estilo, opte por vinhos mais jovens, pois têm aroma mais frutado. Os rótulos dessa variedade vão bem como aperitivos e também podem acompanhar pratos mais leves. Também é uma boa escolha para uma noite de queijos e vinhos.

→ Das variedades tintas, que tal apostar nas clássicas Pinot Noir e Cabernet Sauvignon? Os rótulos produzidos com Pinot são mais leves e frutados, ideais para começar a provar os vinhos mais secos. Em contrapartida, o Cabernet Sauvignon, uma das variedades mais produzidas do mundo, dá origem, geralmente, a vinhos mais intensos, e funciona ainda melhor quando acompanhado. Mas não precisa se prender somente a um jantar mais elaborado. Invista também nos petiscos como um queijo ou até um pão. Já o Pinot pode ser a estrela de um happy hour com os amigos.

→ Entre os espumantes, a escolha está mais ligada ao método de produção do que ao tipo de uva. Tenha sempre na manga um Charmat e um Champenoise. O primeiro é normalmente um espumante mais leve, para experimentar em um dia na piscina, no brunch ou até mesmo em um almoço de domingo, pois é mais leve e refrescante. Já os espumantes produzidos no estilo Champenoise têm sabores mais persistentes e complexos, por isso combinam com pratos mais elaborados.

→ Na hora de guardar, se você ainda não tem uma adega climatizada, procure rótulos com garrafas mais escuras para evitar a entrada de luz. Escolha lugares onde você possa controlar a umidade e a temperatura para guardar as garrafas.

→ Agora é só se aventurar nos rótulos e descobrir seus favoritos.


(De wine.com.br – Em Zero Hora)




sexta-feira, 22 de julho de 2016

Pipa Carioca



Meu caronista de oito anos nunca tinha visto uma pandorga de perto. Inspirado por algum desenho de televisão, creio, me perguntou outro dia:

‒ Tu sabes fazer pandorga?

Respondi de pronto:

‒ Sabia.

Até porque não havia internet e televisão quando eu tinha a idade dele. Fazíamos muitos dos nossos brinquedos: os carrinhos de madeira, a manivela para brincar de arquinho (que consistia em empurrar uma rodinha qualquer pela terra, impedindo que ela se desequilibrasse), os apetrechos do jogo de taco (o próprio bastão e as casinhas), os revólveres de madeira para o bangue-bangue de mentirinha. Os piões e as bolitas de gude não fabricávamos, pois requeriam mais indústrias do que dispúnhamos os nossos quintais, mas as regras das disputas eram de nossa lavra, acordadas entre todos e muitas vezes alteradas durante a competição.

Pandorga exigia mais engenho. Encontrar taquaras não era difícil na periferia onde eu morava. Depois, cortar as varetas e afinar até que se tornassem leves o suficiente para voar e resistentes para suportar o vento. Mais difícil era encontrar o papel adequado. Seda ou celofane, os melhores, eram raríssimos. Na maioria das vezes, usávamos papel de pão mesmo. Naquele tempo, o pão não vinha em sacos de supermercado. Vinha enrolado em papel branco.

Cortadas as varetas, amarravam-se em forma de cruz e puxava-se uma linha em volta da armação. Então, colocava-se sobre o papel para cortá-lo do tamanho certo, deixando-se a margem para colar em torno da linha – de preferência com cola feita com farinha de trigo ou polvilho e água. Furava-se cuidadosamente o espaço para a guia, onde seria amarrada a linha, e fazia-se mais uma guia pequena na outra extremidade, para a cauda da pandorga, que era feita invariavelmente de tiras de roupas velhas.

Nesse devaneio, prometi ao menino, sem muita certeza de cumprir, que iria conseguir uma pandorga para ele.

Pois não é que no dia seguinte encontrei um homem vendendo pipas. Era um senhor já de idade avançada, carioca da gema, que veio passar frio por aqui por razões que nem quis perguntar quando começou a me contar sua epopeia. Escolhi uma colorida, em forma de triângulo, com a vara central arqueada e aquele espaço vazio que os fazedores de pipa deixam na parte superior. Bem diferente das minhas pandorgas de antigamente.

O menino adorou. Agora, só falta conferir se sobe, se funciona com roncador e, principalmente, se dá para mandar um telegrama pela linha. Quero endereçá-lo ao país da infância.

(Nílson Souza no jornal Zero Hora)

Pequenos contos de Carlos Drummond de Andrade



A bailarina

A profissão de bufarinheiro está regulamentada; contudo, ninguém mais a exerce, por falta de bufarinhas. Passaram a vender sorvetes e sucos de fruta, e são conhecidos como ambulantes.

Conheci o último bufarinheiro de verdade, e comprei dele um espelhinho que tinha no lado oposto uma bailarina nua. Que mulher! Sorria para mim como prometendo coisas, mas eu era pequeno, e não sabia que coisas fossem. Perturbava-me.

Um dia quebrei o espelho, mas a bailarina ficou intacta. Só que não sorria mais para mim. Era um cromo como outro qualquer. Procurei o bufarinheiro, que não estava mais na cidade, e provavelmente teria mudado de profissão. Até hoje não sei qual era o mágico: se o bufarinheiro, se o espelho.

A beleza total

A beleza de Gertrudes fascinava todo mundo e a própria Gertrudes. Os espelhos pasmavam diante de seu rosto, recusando-se a refletir as pessoas da casa e muito menos as visitas. Não ousavam abranger o corpo inteiro de Gertrudes. Era impossível, de tão belo, e o espelho do banheiro, que se atreveu a isto, partiu-se em mil estilhaços.

A moça já não podia sair à rua, pois os veículos paravam à revelia dos condutores, e estes, por sua vez, perdiam toda capacidade de ação. Houve um engarrafamento monstro, que durou uma semana, embora Gertrudes houvesse voltado logo para casa.

O Senado aprovou lei de emergência, proibindo Gertrudes de chegar à janela. A moça vivia confinada num salão em que só penetrava sua mãe, pois o mordomo se suicidara com uma foto de Gertrudes sobre o peito.

Gertrudes não podia fazer nada. Nascera assim, este era o seu destino fatal: a extrema beleza. E era feliz, sabendo-se incomparável. Por falta de ar puro, acabou sem condições de vida, e um dia cerrou os olhos para sempre. Sua beleza saiu do corpo e ficou pairando, imortal. O corpo já então enfezado de Gertrudes foi recolhido ao jazigo, e a beleza de Gertrudes continuou cintilando no salão fechado a sete chaves.

Abotoaduras

O maior fabricante de abotoaduras de punho fechou a indústria depois de convencer-se de que é infinitamente reduzido o número de camisas de manga comprida, à disposição da humanidade. E, mais, que os exemplares deste gênero, ainda existentes, são providos de botões, dispensando abotoaduras.

‒ Trabalhei a vida inteira no setor ‒ lastimava-se ‒ e almejava legar a meus filhos a tradição das abotoaduras de punho, como requinte terminal de uma camisa digna desse nome. Os fatos ergueram-se contra mim. Não posso mais produzir abotoaduras de punho para camisas sem punho ou de punho abastardado por míseros botões de plástico.

Concluiu que é o fim da civilização, e ia enforcar-se numa camisa esporte, estampada, quando esta, movida por vento súbito, saiu pelos ares, qual bandeira solta. E era tão bonito o esvoaçar do pano bigarreado, tão graciosas as evoluções, que o homem resolveu desistir da morte e aplicar sua fortuna em uma indústria colossal de camisas de manga curta.

Desta água não beberás

‒ Por que Demétrio não se casa? Era a indagação geral! Demétrio namorava, noivava, não casava. Sete dias antes do casamento, olha aí Demétrio fugindo. As versões eram múltiplas. A noiva é que o despedira. Tiveram uma briga feia. Gênios incompatíveis. Mal secreto. Intrigas.

Demétrio continuava a namorar, noivar e não casar. Não lhe faltavam noivas, pois era agradável, tinha status. Quanto mais se desmanchavam seus projetos de casamento, mais apareciam mulheres dispostas ao desafio, exclamando:

‒ A mim ele não deixa na porta do Mosteiro de São Bento.

Deixava. E quanto mais deixava, mais seu prestígio crescia. Concluiu-se que era sua maneira de afirmar-se. Então Livaniuska decidiu enfrentá-lo. Noivou com ele e, uma semana antes do casamento, deu-lhe o fora solene. Demétrio quis reagir, explicou à repórter social que ele é que tomara a iniciativa, mas a mentira foi patente. Livaniuska foi contratada como atriz por uma emissora de TV e ficou célebre. Daí por diante ela repetiu a carreira de Demétrio, noivando e desmanchando com inúmeros cavalheiros. No fim de cinco anos, Livaniuska e Demétrio casaram-se para sempre, como era fácil de prever, mas ninguém previu.

A opinião em palácio

O Rei fartou-se de reinar sozinho e decidiu partilhar o poder com a Opinião Pública.

‒ Chamem a Opinião Pública ‒ ordenou aos serviçais.

Eles percorreram as praças da cidade e não a encontraram. Havia muito que a Opinião Pública deixara de frequentar lugares públicos. Recolhera-se ao Beco sem Saída, onde, furtivamente, abria só um olho, isso mesmo lá de vez em quando.

Descoberta, afinal, depois de muitas buscas, ela consentiu em comparecer ao Palácio Real, onde Sua Majestade, acariciando-lhe docemente o queixo, lhe disse:

‒ Preciso de ti.

A Opinião, muda como entrara, muda se conservou. Perdera o uso da palavra ou preferia não exercitá-lo. O Rei insistia, oferecendo-lhe sequilhos e perguntando o que ela pensava disso e daquilo, se acreditava em discos voadores, horóscopos, correção monetária, essas coisas. E outras. A Opinião Pública abanava a cabeça: não tinha opinião.

‒ Vou te obrigar a ter opinião ‒ disse o Rei, zangado. ‒ Meus especialistas te dirão o que deves pensar e manifestar. Não posso mais reinar sem o teu concurso. Instruída devidamente sobre todas as matérias, e tendo assimilado o que é preciso achar sobre cada uma em particular e sobre a problemática geral, tu me serás indispensável.

E virando-se para os serviçais:

‒ Levem esta senhora para o Curso Intensivo de Conceitos Oficiais. E que ela só volte aqui depois de decorar bem as apostilas.

Contos plausíveis de Carlos Drummond de Andrade




Um Direito do Pampa


J. A. Pio de Almeida


A presença da Polícia no rincão do Ibirocai foi inovação introduzida na primeira década do governo de Getúlio Vargas.

Eu era guri e começava a ligar os fatos.

A Polícia passou a ser representada por um soldado da Brigada Militar, destacado fixo, que chegou “desovando leis”.

Uma delas foi só permitir bailes de campanha devidamente licenciados, conforme papelucho – a famosa “licença por escrito”.

Houve por lá um forrobodó* meio grande.

Eu sei que a rapaziada se ajuntou, discutiu o assunto, entre o pessoal uns primos meus, “já de bigode”, e a coisa ficou decidida:

‒ Baile continua como sempre foi, sem licença, nem escrita nem de boca. E vamos fazer um na casa do negro Graciliano, sábado.

Flor Araújo assumiu como cabeça, e quando a noite fechou, a gaita cordeona de oito baixos roncou.

O soldado, nem haviam os “bailarins” chegado na “polca da relação”, se apresentou em nome da ordem. Desceu, atou o “pingo” no parapeito e entrou sala adentro:

‒ Quem deu licença para isto?

‒ Fui eu aqui – respondeu o Flor, e continuou “floreando” uma música na cordeona, sentado a um canto da sala.

‒ Baile sem licença não sai, é ordem superior. Para a gaita.

‒ Amigo – respondeu o Flor – eu tenho licença... Puxou a prateada e concluiu: Está escrito aqui na folha da minha faca!

A autoridade nem chegou a esboçar o gesto que lhe seria próprio. Estava tudo combinado. A rapaziada fechou o cerco e num epa o soldado estava lá fora, com todo o respeito, no encontrão mas espremido – e nem pôde usar as armas.

Houve troca de “correios” nos dias seguintes, entre “as pessoas de responsabilidade” do rincão e um subdelegado que acumulava o cargo de subprefeito e que era caudilho entre o Guaçu-Boi e nosso rincão.

As licenças por escrito foram suspensas, os rapazes deixados em paz e a cordeona de oito baixos continuou, sábado aqui, sábado acolá, gemendo vanerões debaixo da noite de Deus. Um Direito do Pampa

(Do Almanaque do Correio do Povo de 1979)

* Da palavra forrobodó, diminuída para forro, deu origem a palavra forró.

quinta-feira, 21 de julho de 2016

Flores para o Maragato



A Revolução Federalista de 1893 criou um santo em Quaraí. Louvado até hoje como Maragato, Euzébio Pereira foi um dos muitos degolados pelos defensores do governo de Júlio de Castilhos no final do século passado. Condenado a ser mais um rebelde anônimo, virou mártir depois de protagonizar uma cena histórica.

Em agosto de 1894, ele e seus companheiros combatiam os pica-paus dentro de uma trincheira. Encurralados perto do córrego, os maragatos começavam a ficar desesperados ao imaginar o fio da espada no pescoço.

Para não condenar os amigos, que tinham muitos filhos, Euzébio – pai de uma menina ‒ pegou todas as armas e deu cobertura à retirada dos aliados. Em seguida, foi dominado e teve a garganta cortada.

Em retribuição à bravura do revolucionário, os companheiros de Euzébio trataram de proteger Alexandra Trindade, sua mulher, e a filha Delmira. O local onde o combatente foi morto nunca mais ficou sem flores. Por ironia, a rua onde tudo aconteceu acabou recebendo o nome do algoz do Maragato: Júlio de Castilhos.*

ZH, 4 de dezembro de 1996

* Para acabar com essa questão de ficar na rua Júlio de Castilhos, quebraram um beco por ali, que se chama agora Beco do Maragato.


Acima, túmulo do Maragato, abaixo, a placa do túmulo: 

Fotos de Roberto Cohen.


(Do Blog Página do Gaúcho)

Beco do Maragato

Dagoberto Mendes

Em minha terra, Quarai, berço de Cyro Martins, a sangrenta “guerra de 93” fez seus mártires e monumentos: o túmulo do “Maragato” é, até hoje, respeitado com certa religiosidade e dá nome oficial a uma ruazinha da cidade, com algumas casas pobres, geralmente de camponeses empurrados para o povo, tema do romancista da trilogia do “gaúcho a pé”; a ele, pois dedico estes versos, pobres e simples como aquela gente. 

No beco do maragato,
maragato degolaram...
Só ficou sua cabeça:
o corpo desapareceu!

Mas ficou preso à cabeça
pedaço de lenço rubro.

Maragato então virou
religião de gente pobre;
velas se lhe acenderam
por mãos que a noite ocultava.

Maragato virou lenda:
lenços vermelhos e fitas
e flores depositavam
homens e mulheres simples
junto à cruz, por oferenda.

Mas só a cruz restou plantada
no lugar onde a cabeça,
fora do corpo ficou
‒ para sempre separada...

Por piedade ou por promessa,
Um oratório ali foi feito.
(Picapau tira o chapéu,
se ali passa, por respeito!)

Muita moça solteirona
casamento agradeceu;
ao degolado do beco,
em apuros de honra ou jogo,
gente rica recorreu...

Contra doenças, contra pragas
de pessoas ou de bichos,
muita oferenda foi posta
à noite, junto do nicho.

Ninguém sabe o nome dele.
E quem soubesse calava
por juramento ou promessa,
pois quem reza por piedade,
ou por agradecimento,
o nome dele não sabe;
e se soubesse, calava!

(Do Almanaque do Correio do Povo de 1980)