segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Hino de Duran

 Do musical “Ópera do malandro”* 

Chico Buarque´

Se tu falas muitas palavras sutis
E gostas de senhas, sussurros, ardis,
A lei tem ouvidos pra te delatar,
Nas pedras do teu próprio lar.

Se trazes no bolso a contravenção,
Muambas, baganas e nem um tostão,
A lei te vigia, bandido infeliz,
Com seus olhos de raio X.
 

Se vives nas sombras, frequentas porões.
Se tramas assaltos ou revoluções,
A lei te procura, amanhã de manhã,
Com seu faro de Doberman.
 

E se definitivamente a sociedade
Só te tem desprezo e horror
E mesmo nas galeras
És nocivo, és um estorvo, és um tumor.
A lei fecha o livro, te pregam na cruz,
Depois chamam os urubus.
 

E se pensas que burlas as normas penais,
Insuflas, agitas e gritas demais.
A lei logo vai te abraçar, infrator,
Com seus braços de estivador.
 

Se pensas que pensas,

Estás redondamente enganado

E como já disse o doutor Eiras,

Vem chegando aí,

Junto com o delegado,

Pra te levar... 

P.S. A gravação dessa música esta na internet na voz do autor: Chico Buarque

* Ópera do Malandro é uma peça musical escrita por Chico Buarque de Holanda, que estreia em 1978, em meio à ditadura civil-militar e com sua primeira montagem dirigida por Luís Antônio Martinez Corrêa (irmão de Zé Celso).

O musical foi inspirado na peça de Bertolt Brecht e Kurt Weill, Ópera dos três vinténs (1928). O texto alemão, no entanto é uma paródia da obra do inglês John Gay, Ópera dos mendigos (1728). 

Na versão de Chico Buarque, a história se passa na Lapa, famoso bairro boêmio do Rio que, nos anos 40, entra em processo de decadência. Malandros, prostitutas, contrabandistas, policiais desonestos e empresários inescrupulosos compõem a trama. Chico identifica suas personagens às de John Gay, inclusive por meio de um diálogo recheado de vulgarismo do dia-a-dia, e usa da estrutura dramática de Brecht para adaptar uma ópera, de acordo com o cenário político e social brasileiro. 

******* 

“Hino de Duran”, composição de Chico Buarque que faz uma dura crítica ao uso das leis pelo Estado para patrulhar e reprimir a sociedade, especialmente nas suas camadas mais pobres. Composta em plena Ditadura Militar no ano de 1978, a obra integra o famoso musical “Ópera do Malandro”, e foi gravada no ano seguinte pelo próprio Chico em parceria com o conjunto A Cor do Som, no disco homônimo que reuniu as músicas da peça. 

(Do programa Todas as Vozes: Rádio Nacional – Brasília) 

Duran é o tipo de empregador que transforma o empregado em um simples número, na qual qualquer tipo de relação humana desaparece, (...) 

Um cafetão chamado Duran se disfarça de vendedor de sucesso. Vitória era uma madame que também vivia da venda do próprio corpo. Sua filha, Teresinha, se apaixonou por um cidadão de classe alta, Max Overseas, um homem que vivia da corrupção em cumplicidade com o delegado Chaves. As outras personagens são as prostitutas , apresentadas como vendedoras em uma loja de roupas, e a travesti promíscua Geni, frequentemente atacada com pedras; as pessoas costumavam dizer que ela era “útil” por causa disso.A ação da peça se passa na década de 1940; seu tema: proibição do jogo, prostituição e contrabando. Em seguida, mostra um contexto semelhante ao terceiro milênio, com pirataria e outras atividades do mercado negro. 

“Destemor acima de tudo”

 Antônio Maria

Estava espanado na cama, morto de fome, sem um tostão no paletó que eu via sobre o espaldar na cadeira. Era o ano de 1941, quando este gordo cronista pesava menos cinquenta quilos e cinquenta remorsos. 

Morávamos no edifício Andraus e acreditávamos num sol de praia que nos dava a pigmentação necessária à dignidade de um moço de Copacabana. Passava do meio-dia, o banho de mar tinha sido muito agradável, mas dele só restava aquela fome sem remédio, sem ter onde matar, ali, nas redondezas do Posto 5. O jeito era fechar os olhos e pedir a Deus umas horas de sono para o santo esquecimento da nossa pobreza. Pensei em vender o canário-do-império, comprado na véspera pelo meu companheiro de apartamento. Ou seria mais fácil comê-lo frito? Enquanto rejeitava essas duas soluções, entrou de quarto adentro um cheiro de comida gostosa que, de tão ativo, devia ser um assado de novilha rondando a minha miséria. Levantei-me num pulo e abri a porta. 

Ao lado, no 29, o mensageiro da pensão acabava de deixar uma marmita de razoável gabarito, rescendendo carne feita no torresmo. Lembrei-me de coisas honestas e sagradas − minha mãe e a fita azul da Congregação Mariana −, mas lembrei-me muito mais de mim, um andarilho, um coitado, a quem a Comissão de Inquérito do céu jamais negaria perdão por crime de gula. Tirei a tampa da primeira panelinha e dei com três fatias de carne assada (dessas que são escuras e tomam todo o gosto do molho) ao lado de um purê sem importância e de uma folha de alface própria para canário. Não perdi mais tempo. Revi a solidão do corredor, meti a mão e ia tirando as três fatias quando a porta se abriu. 

Agachado, humilhadíssimo, vi primeiro os pés da moça; depois, os tornozelos, os joelhos, as coxas e, finalmente, a sunga amarela. Estávamos, agora, frente a frente. Os olhos dela (verdes), indignados. Os meus (marrons mesmo), suplicantes. Ela cheia de razão e eu, apenas, com fome. O silêncio demorava, quando ela o quebrou: “Faça o favor de me dizer seu nome”. Respondi, com a maior dignidade deste mundo, disposto a todos os males que porventura caíssem sobre minha culpa: “Fernando Lobo*, minha senhora”. 

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“Vento vadio: as crônicas de Antônio Maria”

Organização de Guilherme Tauil

* Amigo pernambucano que morava no mesmo apartamento com Antonio Maria.

Antônio Maria Araújo de Morais (Recife, 17 de março, de 1921 − Rio de Janeiro, 15 de outubro de 1964) foi um cronista e compositor brasileiro. Muito além, foi o primeiro "multimídia" brasileiro, destacando-se também como locutor esportivo, jornalista, apresentador, produtor, diretor de rádio e televisão e, finalmente, boêmio. É considerado um dos reis do samba-canção, tendo também composto polcas, frevos, marchinhas de carnaval, valsas e sambas. Morto prematuramente aos 43 anos, foi uma das figuras mais marcantes das noites cariocas nas décadas de 1950 e 1960.

domingo, 27 de fevereiro de 2022

Como uma onda

 Lulu Santos e Nelson Motta

Nada do que foi será

de novo do jeito

que já foi um dia.

Tudo passa,

tudo sempre passará... 

A vida vem em ondas,

como um mar,

num indo e vindo

infinito... 

Tudo o que se vê não é

igual ao que a gente

viu há um segundo,

tudo muda o tempo todo

no mundo. 

Não adianta fugir,

nem mentir pra si mesmo,

agora,

há tanta vida lá fora,

aqui dentro,

sempre... 

Como uma onda no mar,

Como uma onda no mar,

Como uma onda no mar,

Como uma onda no mar. 

Análise Histórica

“Como uma Onda (Zen-Surfismo)” é uma canção brasileira gravada por Lulu Santos em 1983, composta pelo próprio Lulu Santos e pelo jornalista e escritor Nelson Motta para a trilha sonora do filme Garota Dourada, de Antônio Calmon. A canção obteve bastante sucesso em todo o país no início da década de 1980, e continua a ser executada nos shows do cantor.

Segundo Nelson Motta, que considera a canção um “bolero moderno”, a letra teria sido inspirada por Jorge Luis Borges e pelo livro A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen, do filósofo alemão Eugen Herrigel, e refletiu a contradição pessoal vivida pelo compositor na época, dividido entre a filosofia zen e os excessos das drogas no Rio de Janeiro da época (onde o próprio Motta era proprietário de uma importante casa noturna, Noites Cariocas, localizada no Pão de Açúcar).

A canção foi incluída no álbum O Ritmo do Momento, de 1983.

Lulu Santos e Nelson Motta - foto de André Muzzel

sábado, 26 de fevereiro de 2022

Bromil*

 (Olavo Bilac) 

Anos 20 

Dalmir Reis Jr. 

O xarope Bromil, lançado pelo laboratório de Daudt de Oliveira no início do século 20, tornou-se conhecido como o “amigo do peito”, graças aos testemunhais do poeta Olavo Bilac. Em anúncios publicados em jornais e revistas entre 1906 e 1916, a pedido do também poeta Felipe Oliveira, proprietário do laboratório, Bilac exaltava as melhoras de sua bronquite graças ao medicamento. 

Depois, o Bromil foi exaltado por outro poeta. Bastos Tigre (criador do slogan “Se é Bayer, é bom”) foi contratado pelo laboratório e publicou na revista Dom Quixote, de 1918 a 1920, em capítulos, as Bromilíadas, uma paródia de Os Lusíadas, de Luís de Camões. Eram 1102 estrofes contendo 8.816 versos decassílabos com estrofação sempre na oitava rima. Sucesso de público e crítica, as Bromilíadas começavam assim:

Os homens de pulmões martirizados

Que, de uma simples tosse renitente,

Por contínuos acessos torturados

Passaram inda além da febre ardente;

Em perigos de vida atormentados,

Mais de quanto é capaz um pobre doente,

Entre vários remédios encontraram,

O Bromil que eles tanto sublimaram.

 

E também as memórias gloriosas

Dos doutores que o foram receitando,

Com fé no seu império e milagrosas

Curas foram nos clientes operando;

E os que o Bromil por formas misteriosas

Vive da lei da morte libertando,

Cantando espalharei por toda a parte

Se a tanto me ajudar engenho e arte. 

 *A marca hoje é do laboratório EMS. 

(Do Blog Propagandas Históricas.com.br)

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

O Caderno

Toquinho

Sou eu que vou seguir você
Do primeiro rabisco
Até o bê-a-bá.
Em todos os desenhos
Coloridos vou estar.
A casa, a montanha,
Duas nuvens no céu
E um Sol a sorrir no papel.
 

Sou eu que vou ser seu colega,
Seus problemas ajudar a resolver.
Te acompanhar nas provas
Bimestrais, você vai ver.
Serei, de você, confidente fiel,
Se seu pranto molhar meu papel.
 

Sou eu que vou ser seu amigo,
Vou lhe dar abrigo,
Se você quiser,
Quando surgirem
Seus primeiros raios de mulher.
A vida se abrirá
Num feroz carrossel
E você vai rasgar meu papel.
 

O que está escrito em mim,
Comigo ficará guardado
Se lhe dá prazer.
A vida segue sempre em frente
O que se há de fazer.
 

Só peço a você
Um favor, se puder,
Não me esqueça
Num canto qualquer. 


quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

Não era bem louco

 

No consultório de um afamado psiquiatra, ouvimos, sem querer, o seguinte diálogo entre o psicanalista e seu novo cliente: 

− Que faz o senhor com respeito à sua vida social? 

− Quase nada. 

− Não costuma pescar acompanhado de uma garota? 

− Nunca. 

− Não costuma passear acompanhado de uma ou outra garota? 

− Bem... às vezes... 

− Não gosta de dançar com uma bela moça, tomar um vinho, abraçá-la e beijá-la. 

− Bem que eu gostaria... 

− E por que não faz isso? 

− Porque minha mulher não deixa e vive me controlando. É por isso que ando doido! 

(Historinha adaptada do Almanhaque do Barão de Itararé)


quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

Biu Doido

Biu* Doido era o doido oficial de São José do Egito. O grande sonho de Biu Doido era ter um relógio. Terminou conseguindo um, velho e quebrado. Era, mais, uma casca de relógio, do que um relógio mesmo. Os desocupados da rua divertiam-se perguntando-lhe as horas e ouvindo, em troca da pergunta, uma enfiada de desaforos e pornografias. 

Um dia, chegou um delegado novo em São José. Fardado de tenente, foi aconselhado a perguntar as horas a Biu Doido. Perguntou. Biu Doido olhou-o de cima a baixo e, vendo-o fardado, conteve-se a custo e disse: 

− Eu só não lhe dou uma resposta, porque sei que o senhor é novato, aqui. Todo mundo, em São José do Egito, sabe que meu relógio não trabalha. 

− Não trabalha?—espantou-se o tenente. E comentou: 

− Então, não adianta! 

Biu Doido, sereno, apresentou a contrapartida vantajosa do seu relógio: 

− Não adianta, mas também não atrasa! 

Ariano Suassuna em:

“A Pensão de Dona Berta e Outras Histórias para Jovens” 

E quem é Biu Doido?

Um andarilho das ruas de São José do Egito, Severino Cassiano, conhecido de todos por Biu Doido e que na verdade não era sempre doido, tinha seus momentos de plena lucidez e era nesses momentos que Biu se revelava com suas respostas inesperadas e que jamais alguém imaginaria que pudesse sair de sua boca. O poeta popular de São José do Egito, Arlindo Lopes, transformou algumas destas respostas geniais de Biu doido em poesia: 

Certa vez Biu se apresentou,

Surpreendendo os demais.

Usando duas gravatas,

Uma na frente e outra atrás,

E dizendo achar pouco,

Que se ele fosse louco,

Usaria outras mais. 

Egito de Zé Clementino,

Já foi falando sorrindo:

Biu usou duas gravatas

Pensando ficar mais lindo.

Egito vou lhe dizer:

Fiz isso pra ninguém saber

Se tô chegando ou saindo. 

Histórias de Biu Doido 

Dizem que um certo dia uma mulher ia passando em uma rua de São José, e Biu estava subindo em um poste e ela parou e perguntou a Biu: 

− Biu! O que você está fazendo trepado no poste? E sem pausa Biu respondeu: 

− Vou chupar manga! 

E a mulher intrigada falou: 

− Mas, Biu, isso aí é um poste, não é um pé de manga não! 

Ligeiramente Biu disse: 

− Mas a manga tá no meu bolso. 

(Do blog de Paulo Robério − Poeta Pajeuzeiro)

Inserido no Blog Sertão Poeta 

Severino Cassiano Pereira, Mestre Bio (ou Biu) Doido, dono de tantas histórias, já é falecido, morreu com mais de noventa anos em São José do Egito-PE, suas proezas estarão sempre na lembrança daqueles que conviveram com ele e repassadas às futuras gerações. Ou seja, não há de morrer nunca! 

* Em algumas narrativas grafam Bio e, em outras, Biu. 

Mais historinhas de Biu Doido 

Certa vez, Biu Doido pegou uma vareta, amarou nela um barbante e o colocou numa bacia cheia d’água. Alguém passou por ele e perguntou: 

− Biu, o que você esta fazendo? 

− Pois num vê? Estou pescando! 

− Mas no barbante não tem anzol! 

− E na bacia tem peixe? 

******* 

Um dia, um amigo perguntou a Biu o que era bom para coceira. Biu respondeu na hora. 

− O bom é ter unhas grandes

******* 

Certa vez em uma farra, cercado por muita gente, Biu doido fazia rir aquele povo presente. Alguém, perguntou, com ironia 

− Biu, já plantou muita melancia? 

Biu respondeu 

− Não, só a semente. 


P.S. Severino Cassiano Pereira viveu 91 anos, nasceu em 15 de maio de 1910 e faleceu em 19 de agosto de 2001.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Nem tudo é fácil

 

É difícil fazer alguém feliz, assim como é fácil fazer alguém triste. 

É difícil dizer eu te amo, assim como é fácil não dizer nada. 

É difícil valorizar um amor, assim como é fácil perdê-lo para sempre. 

É difícil agradecer pelo dia de hoje, assim como é fácil viver mais um dia. 

É difícil enxergar o que a vida traz de bom, assim como é fácil fechar os olhos e atravessar a rua. 

É difícil se convencer de que se é feliz, assim como é fácil achar que sempre falta algo. 

É difícil fazer alguém sorrir, assim como é fácil fazer chorar. 

É difícil colocar-se no lugar de alguém, assim como é fácil olhar para o próprio umbigo. 

Se você errou, peça desculpas… 

É difícil pedir perdão? Mas quem disse que é fácil ser perdoado? 

Se alguém errou com você, perdoa-o… 

É difícil perdoar? Mas quem disse que é fácil se arrepender? 

Se você sente algo, diga… 

É difícil se abrir? Mas quem disse que é fácil encontrar alguém que queira escutar? 

Se alguém reclama de você, ouça… 

É difícil ouvir certas coisas? Mas quem disse que é fácil ouvir você? 

Se alguém te ama, ame-o… 

É difícil entregar-se? Mas quem disse que é fácil ser feliz? 

Nem tudo é fácil na vida. Mas com certeza nada é impossível… 

Precisamos acreditar, ter fé e lutar para que não apenas sonhemos,

Mas também tornemos todos esses desejos, realidade!!! 

“Nem tudo é fácil”, uma bela crônica poética atribuída a Cecília Meireles, mas não podemos precisar. Encontramos o texto publicado em dois livros: O Narrador, Uma Experiência de Vida – de Jobert Aparecido Pereira e Fragmentos da Valiosa Palavra – de Ely Damasceno. O primeiro não faz menção de autoria e a segunda, diz ser de Cecília Meireles. O mais correto dizer que o poema é de autor desconhecido, por não ter o estilo poético de Cecília Meireles. 

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

Uma bela crônica de Bruna Lombardi

 Abismos e asas 

Bruna Lombardi

Imagem da internet 

Uma amiga me ligou desesperada dizendo que não conseguia dormir direito e sentia uma crise de ansiedade por não saber o que vai acontecer. 

Estamos todos confusos e perplexos diante de uma realidade que muda a cada dia, num misto de falta de perspectiva e de esperança, e a tentativa de compreender que caminho seguir num mundo que parecia de um jeito e foi ficando de outro… Mas pensando bem, alguma vez na vida a gente soube o que ia acontecer? Não, claro que não. 

Mesmo com todas as previsões e expectativas, com nossos sonhos e desejos, o futuro sempre foi desconhecido pra nós. Sempre será. Isso não mudou. Vivemos sempre apenas o momento presente, e sabe Deus o que vai acontecer amanhã. 

A vida é tecida de incertezas. A única certeza que temos diante de nós é que vamos lidar com o desconhecido. Temos que aprender a nos adaptar e não deixar que cada instante nos coloque num estado de suspensão. 

Quando estamos em suspenso, é como se a gente prendesse a respiração. Tudo paralisa e a gente não consegue agir. 

Perdemos a fé, nos deixamos invadir pela dúvida, e o medo nos domina. E é assim que a gente se desconecta de nós mesmos e perde o fio da esperança. 

A vida é aquilo que passa enquanto a gente faz planos, dizia John Lennon. A vida não tem rascunho, não tem ensaio, cada minuto é uma estreia, dizia Bernard Shaw. Aconteça o que acontecer, seguimos fazendo planos, inventamos novos desejos e possibilidades. 

Fazemos orações, renovamos promessas e sonhos… e a vida continua nos surpreendendo com o inesperado e acontecendo do jeito que ela quer. 

A gente muda o que pode mudar e aprende a aceitar o que está fora do nosso poder. Precisamos abraçar o mistério, a surpresa de cada virada, cada movimento, sem deixar que os vendavais de visões negativas nos arrastar e derrubem. 

Tem um poema meu que diz: 

“Você pode me empurrar pro precipício
Não me importo com isso
… eu adoro voar” 

No meu livro Clímax, tem uma poesia que começa assim: “Crio asas no abismo e sobrevoo devagar e distraída…”. 

E tem também uma frase no meu livro Jogo da Felicidade: “Se tirarem seu chão, invente asas”. 

Esse tema foi sempre presente, a ideia de reagir, resistir, de criar asas à beira do abismo me acompanha desde sempre. 

Aconteça o que acontecer, por mais impossível que pareça, sempre se acha uma saída. Seja por instinto, intuição, lógica ou razão, seja por um milagre, a gente sempre acha uma solução. 

Carrego a certeza que mesmo quando nos sentimos ilhados, sozinhos, isolados, abandonados, mesmo quando parece que não há horizonte no céu escuro, nós vamos achar um caminho. Porque sempre existe um caminho. 

Sou uma incorrigível otimista, e pensar positivo me dá coragem. Perguntei para minha amiga em quantas beiras de abismo ela já pisou. Um monte, ela me disse. Pois é, e estamos aqui. 

Na hora, sempre aparece coragem ou sorte, sei lá. Mas sem coragem, a sorte passa por nós e não a vemos. 

Na hora, sempre aparecem asas que a gente nem sabia que tinha. 

Abismos existem para que a gente aprenda a sobrevoar. 

(Do caderno Vida, de Zero Hora, fevereiro de 2022)

Yoko Ono e os Beatles

 Yoko Ono não acabou com os Beatles.

Ela os salvou deles mesmos 

Eduardo Bueno*

Caricatura da Internet

A história é bem conhecida. Em novembro do ano da graça de 1966, o beatle John, ex-aluno da Faculdade de Artes de Liverpool e no auge da fama, foi convidado para ver uma exposição na Indica Gallery, em Londres. John Dunbar, marido da cantora Marianne Faithfull, era o dono do pedaço e disse para Lennon que a exposição Pinturas e Objetos Não Terminados, de uma artista japonesa de vanguarda, iria lhe agradar. Lennon levou fé na indicação e foi à galeria antes da abertura da mostra. Ao entrar, a primeira coisa que viu foi uma maçã à venda por 200 libras. “Quem a comprar, poderá vê-la apodrecer diante de seus olhos”, dizia a legenda. Ele adorou a ironia da peça e seguiu vistoriando a mostra.

No meio da sala, havia uma escada de madeira, dessas que se pode comprar em ferragens. Acima dela, um pequeno quadrado de lona preta estava suspenso no teto e dele pendia uma lupa estilo Sherlock Holmes. Lennon galgou degrau por degrau, chegou ao topo, pegou a lupa e num pedaço de papel colado na lona leu, em letras minúsculas, a palavra “Sim”. “Se ali estivesse escrito ‘Não’, ou ‘Dane-se’, eu teria ido embora na mesma hora. Mas era ‘Sim’ e eu gostei”. A seguir o beatle se aproximou de um quadro em branco na parede. Era o projeto Hammer and Nail Art (a arte do martelo e do prego), no qual a artista convidava os visitantes a “colaborarem com a criação martelando um prego nela”. Lennon cravou o seu.

John Dunbar então chamou a artista, que estava no fundo da sala ainda montando a mostra, e disse-lhe que deveria falar com John Lennon. Ela nunca tinha ouvido falar nele. Ele também nunca tinha ouvido falar em Yoko Ono. Tímida, circunspecta, toda vestida de preto, ela se aproximou e sem dizer uma só palavra, entregou-lhe um cartão que dizia: “Respire”. John Lennon cumpriu a ordem – e o resto é história. Naquele exato instante, John e Yoko estavam formando um dos casais mais lindos de todos os tempos. Ficaram juntos para sempre – até que o assassinato estúpido de Lennon os separasse.

O espetaculoso documentário Get Back, de Peter Jackson, com inacreditáveis oito horas de duração (baseado em quase 60 horas gravadas em 1971, em dois estúdios de Londres, um deles o da própria Apple), mostra a banda mais famosa de todos os tempos apodrecendo feito uma maçã e todo mundo comendo aquela torta de climão. Lançada no final de 2021, a obra encanta e atormenta quem quer que a assista. E, é claro, serviu para trazer à tona de novo a falácia de acordo com a qual Yoko Ono “acabou com os Beatles”.

Prefiro acreditar que Yoko Ono impediu os Beatles de se tornarem um pastiche deles mesmos. E hoje (18.02.2022), no dia em que ela completa 89 gloriosos anos, é uma boa hora para chamar pelo nome dela, no meio de um sonho no meio de uma nuvem, no meio da noite: “Oh, Yoko”.

Em Zero Hora, fevereiro de 2022.

* Eduardo Bueno (Peninha para os gaúchos) é autor de muitos livros, citamos alguns abaixo: 

Brasil: Terra à vista!

Brasil, uma História

Náufragos, Traficantes e Degredados

A Viagem do Descobrimento

Eduardo Galeano e a História

 

Eduardo Galeano por  Gonzalo Rodriguez

“Não existe história muda.

Por mais que a queimem,

por mais que a quebrem,

por mais que mintam,

a história humana se recusa a fechar a boca”.

Eduardo Galeano em “De pernas pro ar”

10 frases marcantes de Eduardo Galeano 

01. “Somos o que fazemos, mas somos, principalmente, o que fazemos para mudar o que somos.” 

02. “O corpo não é uma máquina como nos diz a ciência. Nem uma culpa como nos fez crer a religião. O corpo é uma festa.” 

03. “Não consigo dormir. Tenho uma mulher atravessada entre minhas pálpebras. Se pudesse, diria a ela que fosse embora; mas tenho uma mulher atravessada na garganta.” 

04. “Quando as palavras não são tão dignas quanto o silêncio, é melhor calar e esperar.” 

05. “A memória guardará o que valer a pena. A memória sabe de mim mais que eu; e ela não perde o que merece ser salvo.” 

06. “A primeira condição para modificar a realidade consiste em conhecê-la.” 

07. “A liberdade de eleições permite que você escolha o molho com o qual será devorado.” 

08. “Vivemos em plena cultura da aparência: o contrato de casamento importa mais que o amor, o funeral mais que o morto, as roupas mais do que o corpo e a missa mais do que Deus.” 

09. “São muitos os cidadãos que perdem a opinião por falta de uso.” 

10. “Devemos tomar consciência que os direitos da natureza e os direitos humanos, são dois nomes da mesma dignidade. E qualquer contradição é artificial.” 

(Do Blog da Gazeta do Povo)

domingo, 20 de fevereiro de 2022

São Valentim e o Amor

 Rogério Mengarda*

No Brasil, o Dia dos Namorados é comemorado no dia 12 de junho, juntamente com o dia de Santo Antônio, o “santo casamenteiro”. Porém, em diversos países da Europa, da América do Sul e nos Estados Unidos, o dia para “celebrar” o amor foi 14 de fevereiro, o Valentine’s Day. 

Você sabe quem foi São Valentim? 

Sempre tive alguma curiosidade em entender por que em alguns países o Dia dos Namorados é comemorado no dia de São Valentim. E você também tem essa curiosidade sobre a data? Trouxe aqui algumas informações. 

O bispo São Valentim viveu durante o Império Romano, no século 3 (tempo em que muitas guerras estavam acontecendo). Nessa época, o imperador Cláudio II proibiu o casamento porque achava que soldados solteiros eram melhores combatentes. Mas Valentim realizou muitas uniões de maneira discreta e secreta. 

Até que um dia ele foi descoberto, preso e condenado à morte. Mesmo atrás das grades, o bispo recebeu cartas e flores de pessoas que acreditavam no amor e queriam agradecê-lo por realizar os seus casamentos. Ele era muito querido dentro daquela comunidade. 

Além disso, há outra história relacionada ainda com a prisão de Valentim. Durante o seu período encarcerado, conta a lenda que o bispo se apaixonou pela filha cega de um carcereiro e que, milagrosamente, ele lhe devolveu a visão. 

Antes da sua execução, Valentim escreveu uma mensagem de despedida na qual assinou como “Seu Namorado” ou “De seu Valentim”. O dia da sua execução (14 de fevereiro) tornou-se, muitos séculos depois, o dia de celebração do amor. 

******* 

*Rogério Mengarda é Doutorado e Especialista em Implantes Dentários. MB em Gestão de Clínicas e Hospitais. 

(Do caderno Vida, de Zero Hora, fevereiro de 2022)

sábado, 19 de fevereiro de 2022

Que enxerguemos a vida do próximo

 A vontade de sonhar 

Texto e foto de Alina Souza

Eu ainda sinto. Nem as envolventes imagens nas redes sociais do smartphone me distraem. Eu ainda olho a rua. As pessoas da rua. Todas têm em comum a vontade de fechar os olhos, desprender o peso de certas vivências, sonhar. Sei que a minha percepção não altera a realidade, porém seria um atestado de fracasso não sentir o outro. Eu me consideraria máquina, equipamento, e não aquela que aperta o botão e quer frear a fugacidade do instante. Se acontecesse algo que atingisse um ser humano na minha frente, eu reagiria, gritaria, jamais ficaria parada, intocada. Penso, por exemplo, em como um cidadão congolês foi espancado até a morte no Rio de Janeiro e houve gente que assistiu como se fosse um espetáculo. Infelizmente são inúmeros casos parecidos pelo mundo inteiro. Indivíduos morrendo à luz do dia, e a sociedade incólume, sem nenhum arrepio na alma. Temo ver alguém cair e a multidão indiferente passar por cima. Faço um apelo: Que enxerguemos a vida do próximo como enxergamos a nossa. Ali há também um corpo que sangra, uma mente que deseja, uma existência densa. 

(No Correio do Povo, fevereiro de 2022)

O congolês Moïse Kabagambe, de 24 anos, foi morto em 24 de janeiro de 2022 no Rio. Ele trabalhava por diárias em um quiosque na Barra da Tijuca, na Zona Oeste da cidade. 

Segundo a família, Moïse foi vítima de uma sequência de agressões após ter cobrado dois dias de pagamento atrasado. Seu corpo foi achado amarrado em uma escada. 

O vírus do amor

 A história que uniu a “moça do pé” e o “rapaz da voz”

Gilmar Fraga / Arte ZH 

Lígia tinha pés lindos. Não era uma mulher bonita. Também não era feia. Era, digamos, normal da cabeça às canelas. Mas, abaixo delas, a partir dos tornozelos, Lígia se tornava especial. Seus pés eram divinos, pés delicados e delgados, pés de pele macia e dedos graciosos, que subiam harmonicamente em deliciosa escadinha começando no comovente minguinho e terminando no meigo hálux, que o dedão de Lígia não podia levar esse nome grosseiro de “dedão”, era hálux. 

Os homens quando viam os pés de Lígia se encantavam. Aqueles pés sugeriam algo que eles não conseguiam identificar racionalmente, conseguiam apenas sentir. Eram pés cheios de malícia. Pés de pecado. 

Os pés de Lígia eram famosos na cidade. Já tinham sido fotografados em anúncio de revista, já tinham sido filmados em comercial de TV. Todos os homens com quem Lígia havia se relacionado, quando falavam nela, falavam de seus pés. 

Até o dia em que ela se aborreceu. Não suportava mais que as pessoas comentassem sobre seus pés. Ela era mais do que aquilo, ela tinha outras qualidades, ela não era só um pé (ou dois), ela era UMA MULHER, entende? Com sonhos. Com sentimentos. Uma mulher que se esforçou muito para ser quem era. Ela viera de uma família pobre e batalhara duro para crescer, para evoluir, para ocupar seu lugar no mundo. E agora só o que as pessoas falavam era em seus pés. Pé, pé, pé! Lígia passou a sentir ciúmes de seus próprios pés. Passou a odiá-los. 

O drama de Lígia era muito parecido com o de Gilson. Gilson não era um homem bonito, nem feio. Não era inteligente, nem burro. Não era alto, nem baixo. Nem gordo, nem magro. Gilson era em tudo mediano, a não ser na voz. A voz de Gilson era maviosa, profunda, macia como a pele dos pés de Lígia. Gilson, quando falava, enfeitiçava as mulheres. Não que dissesse algo especialmente interessante. Até porque nunca teve, de fato, algo interessante a dizer. Era o som da sua voz que mesmerizava o ouvinte. 

Uma vez, uma mulher pediu que ele lesse em voz alta a lista do súper. Sério. Estavam os dois sentados no sofá da casa dela, bebendo um vinho, e ela tirou a lista de compras do bolso e miou: 

“Pode ler pra mim? Em voz alta?” 

Ele primeiro vacilou, não ia fazer aquilo, era ridículo, mas os olhos dela suplicavam, e ele resolveu atender. Começou: 

“Um quilo de batatas... Sal... Feijão preto...” 

Enquanto ele falava, ela gemia baixinho: 

“Uh... Oh! Hmmm...” 

E ele seguiu em frente, a lista era grande. E ela gemendo sem parar, cada vez mais alto, até chegar ao mamão papaia, quando ela não aguentou mais, atirou a taça de vinho na parede e pulou sobre ele gritando: 

“Mamão papaia! Mamão papaia!” 

Foi uma noite de loucuras. Mas Gilson, como Lígia, começou a se irritar com aquilo. Porque, para as mulheres, não interessava o que ele sentia, não interessava o que ele pensava, não interessava nem o conteúdo do que ele falava, só interessava a sua voz. Elas não olhavam para o seu interior, nem para o seu exterior, elas só queriam as suas cordas vocais. 

“Eu sou um homem!”, gritava Gilson. “Eu não sou só um som!” 

Ele se sentia um três-em-um. Era horrível. 

Aí chegou a peste. Ambos, Lígia e Gilson, foram infectados pelo coronavírus. Nada grave, eles só sentiram um sintoma, cada um: Gilson foi atacado direto na garganta e Lígia sofreu o que é chamado de “pé de covid”. Gilson ficou rouco e Lígia teve os pés cobertos de feridas. E foi assim, nessa situação, na sala de espera do médico, que eles se encontraram pela primeira vez. Iniciaram a conversa, cada qual atrás da sua máscara, com observações sobre o tempo, depois sobre a pandemia, e a coisa foi evoluindo e evoluindo, até que se reconheceram: 

“Você é a moça do pé?” 

“E você é o rapaz da voz?” 

Eram, mas admitiram: 

“Eu agora fiquei rouco, não sou mais o rapaz da voz”. 

“E eu não sou mais a moça do pé”. 

E os dois se olharam e foram olhares cheios de significado e eles riram e, sem nem falar, simplesmente se abraçaram. Podiam se abraçar, estavam imunizados não só da doença como de seus próprios predicados. Para eles, o corona não foi mau. Para eles, o corona foi o vírus do amor. 

******* 

(Em Zero Hora, julho de 2020)

Tempo Perdido

 Renato Russo

Todos os dias, quando acordo,

Não tenho mais o tempo que passou,

Mas tenho muito tempo,

Temos todo o tempo do mundo. 

Todos os dias, antes de dormir,

Lembro e esqueço como foi o dia:

Sempre em frente,

Não temos tempo a perder. 

Nosso suor sagrado é bem mais belo

Que esse sangue amargo,

E tão sério,

E selvagem,

Selvagem, selvagem... 

Veja o sol dessa manhã tão cinza:

A tempestade, que chega,

É da cor dos teus olhos castanhos.

Então, me abraça forte e me diz, mais uma vez,

Que já estamos distantes de tudo:

Temos nosso próprio tempo. 

Não tenho medo do escuro,

Mas deixe as luzes acesas agora.

O que foi escondido é o que se escondeu,

E o que foi prometido, ninguém prometeu. 

Nem foi tempo perdido,

Somos tão jovens!

Tão jovens! Tão jovens... 

******* 

A música “Tempo Perdido”, da autoria de Renato Russo, foi divulgada em 1986, no disco “Dois”, o segundo da banda Legião Urbana. Trata-se de uma reflexão acerca da passagem inevitável do tempo e da condição efêmera da vida. Apesar do título, a mensagem da música é a de que sempre podemos mudar nossas prioridades e nossos modos de viver, de que devemos nos dedicar ao que realmente é importante para nós. 

Renato Russo, nome artístico de Renato Manfredini Júnior, foi um cantor e compositor brasileiro, célebre por ter sido o vocalista e fundador da banda de rock Legião Urbana. Nasceu a 27 de março de 1960 (Rio de Janeiro, Brasil); morreu em 11 de outubro de1996 (Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil). 

P.S. Escute essa música na internet na voz do autor.

Fragmento de um poema

 

Fernando Pessoa por Rafael Neves 

Passagem das Horas 

Trago dentro do meu coração,
Como num cofre que se não pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
Ou de tombadilhos, sonhando,
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero. 

(...) 

Eu quero ser sempre aquilo com quem simpatizo,
Eu torno-me sempre, mais tarde ou mais cedo,
Aquilo com quem simpatizo, seja uma pedra ou uma ânsia,
Seja uma flor ou uma ideia abstrata,
Seja uma multidão ou um modo de compreender Deus.
E eu simpatizo com tudo, vivo de tudo em tudo.
São-me simpáticos os homens superiores porque são superiores,
E são-me simpáticos os homens inferiores porque são superiores também,
Porque ser inferior é diferente de ser superior,
E por isso é uma superioridade a certos momentos de visão.
Simpatizo com alguns homens pelas suas qualidades de caráter,
E simpatizo com outros pela sua falta dessas qualidades,
E com outros ainda simpatizo por simpatizar com eles,
E há momentos absolutamente orgânicos em que esses são todos os homens.
Sim, como sou rei absoluto na minha simpatia,
Basta que ela exista para que tenha razão de ser.
Estreito ao meu peito arfante, num abraço comovido,
(No mesmo abraço comovido)
O homem que dá a camisa ao pobre que desconhece,
O soldado que morre pela pátria sem saber o que é pátria,
E o matricida, o fratricida, o incestuoso, o violador de crianças,
O ladrão de estradas, o salteador dos mares,
O gatuno de carteiras, a sombra que espera nas vielas −
Todos são a minha amante predileta pelo menos um momento na vida. 

Fragmento de “Passagem das Horas” − Álvaro de Campos*, 22-5-1916. 

* Um dos heterônimos do poeta português Fernando Pessoa.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

Um clássico da MPB

 de um poema de Orestes Barbosa 

(1893-1966)

Foi compositor, poeta, escritor, e jornalista nasceu na cidade do Rio de Janeiro. Só entrou na escola com 12 anos, por falta de recursos, e na sua infância foi alfabetizado pelo pai de Vinicius de Moraes, que também lhe ensinou a tocar violão. Trabalhou em vários jornais cariocas, Diário de Notícias, A manhã, A Noite, O Dia, O Globo e, em 1917, estreou como poeta. Orestes Barbosa é um dos grandes letristas da música popular brasileira, autor do verso quem sabe o mais belo da língua portuguesa, no dizer de Manuel Bandeira, “tu pisavas nos astros distraída”, que está em “Chão de estrelas”. Entre seus parceiros, Noel Rosa, Wilson Batista, Custódio Mesquita, Silvio Caldas, Francisco Alves, Heitor dos Prazeres, Valzinho. Dentre suas canções “Nega, meu bem”, com Heitor dos Prazeres, “Positivismo”, com Noel Rosa, “A mulher que ficou na taça”, com Francisco Alves, “Gato escondido”, com Custódio Mesquita, “Arranha-céu” e “Chão de estrelas”, com Silvio Caldas. 

(Revista Piauí) 

Veja, a seguir, a letra dessa obra-prima da nossa música. Repare na estrutura fixa do poema (métricas e rimas). Logo depois, (na internet) há um vídeo com uma interpretação de Sílvio Caldas. Nela, o cantor, já no final da carreira, explica rapidamente um pouco da origem da canção. Mesmo já idoso, a voz de Caldas se mantém sublime. Vale a pena conferir: 

(Do Blog Bonas Histórias) 

Cão de estrelas 

Orestes Barbosa (letra) e Silvio Caldas (música) 

Minha vida era um palco iluminado,

Eu vivia vestido de dourado,

Palhaço das perdidas ilusões.

Cheio dos guizos falsos da alegria,

Andei cantando a minha fantasia,

Entre as palmas febris dos corações. 

Meu barracão no morro do Salgueiro

Tinha o cantar alegre de um viveiro,

Foste a sonoridade que acabou.

E hoje, quando do Sol a claridade,

Forra o meu barracão, sinto saudade

Da mulher pomba-rola que voou. 

Nossas roupas comuns dependuradas

Na corda, qual bandeiras agitadas,

Pareciam um estranho festival.

Festa dos nossos trapos coloridos,

A mostrar que nos morros mal vestidos

É sempre feriado nacional. 

A porta do barraco era sem trinco,

Mas a Lua furando o nosso zinco,

Salpicava de estrelas nosso chão.

Tu pisavas nos astros, distraída,

Sem saber que a ventura desta vida

É a cabrocha, o luar e o violão... 

Chão de Estrelas 

A mais bela seresta na voz de Sílvio Caldas

(...) o jornalista e poeta Orestes Barbosa ficou surpreso com um pedido inusitado feito pelo amigo cantor. Sílvio caldas queria musicar uma criação poética feita por Orestes alguns anos antes. “Foste a Sonoridade que Acabou” era uma poesia em decassílabos que narrava a tristeza de um eu lírico masculino que havia perdido a mulher amada. Enquanto ela permaneceu ao seu lado, a vida pobre no Morro do Salgueiro tinha ganhado a dimensão de uma festa alegria e luxuosa. Veja um dos trechos mais famosos deste poema: “A porta do barraco era sem trinco/ Mas a lua, furando o nosso zinco/ Salpicava de estrelas nosso chão/ Tu pisavas nos astros, distraída/ Sem saber que a ventura desta vida/ É a cabrocha, o luar e o violão”. 

Sílvio Caldas ficou apaixonado por aquela letra ao mesmo tempo triste e com uma beleza poética profunda. Ele queria por que queria vê-la transformada em uma canção. Orestes, receoso do resultado, negou a princípio o pedido do amigo. Sílvio não desistiu da sua intenção. Apesar da negativa do autor, ele musicou o poema mesmo assim. Uma vez pronta a música, o cantor mostrou o trabalho para outro poeta, Guilherme de Almeida. Almeida, encantado com a canção, sugeriu que seu nome fosse “Chão de Estrelas” ao invés de “Foste a Sonoridade que Acabou”. Ou seja, além de aprovar a nova música de Caldas, ele a rebatizava com um nome mais simples e comercial. 

Manuel Bandeira foi outro poeta célebre na época que ficou maravilhado com a transformação do poema em uma seresta. Vendo todo mundo boquiaberto com sua letra, não coube outra coisa a Orestes Barbosa fazer do que autorizar a gravação daquela obra-prima. 

Sílvio Caldas, então com 29 anos, gravou, em 1937, o que seria sua mais famosa canção. “Chão de Estrelas”, contudo, não estourou rapidamente nas rádios do país. A música só se tornaria um grande sucesso em 1950. Foi nesse ano quando Sílvio, já um quarentão e considerado um dos melhores cantores do Brasil, regravou-a. A nova versão é idêntica à primeira. 

(Do Blog Bonas Histórias) 

A última viagem

Orestes Barbosa *

Era madrugada alta quando o rapaz magro e pálido bateu o portão largo do palacete e caminhou, com as mãos nos bolsos do capote, olhando a calçada na rua Conde de Bonfim. 

De repente, o rapaz magro ouviu o ruído de ferro de um bonde e parou num poste. 

Fez, à distância, o sinal para o motorneiro. Mas o motorneiro não respeitou o sinal e o veículo passou num clarão veloz. 

Os vendedores ambulantes que àquela hora se dirigiam para o centro da cidade − quitandeiros, peixeiros e jornaleiros que sobraçavam o encalhe da opinião − ficaram indignados com a atitude do motorneiro cujo veículo não parava. Corria sempre, numa alucinação. 

Os fiscais da Light, habituados à meia-marcha que os motorneiros sempre fazem, mesmo fora dos postes de paradas, mostrava-se surpresos com a desatenção do subalterno e gesticulavam seus protestos para o condutor. 

Este fazia uns gestos nervosos, como quem dizia: 

“Que posso fazer?” 

E o bonde, com a figura do motorneiro, ereto, que segurava vigorosamente com a mão direita o volante e com a esquerda o freio de ar − corria, louco, uivando, nos trilhos de aço. 

Até o largo do Estácio, o condutor vinha entre os dois últimos bancos, olhando o relógio, a conferir os algarismos da féria. 

Do largo do Estácio em diante, atentou mais no procedimento do motorneiro e foi para a plataforma pensar. 

A tabuleta estaria em branco? 

Mas, se estivesse em branco, os mercadores que se dirigiam às “Barcas” não mandariam o carro parar. 

Quis ir perguntar ao motorneiro por que motivo desobedecia assim. 

Mas era condutor. 

A sua responsabilidade era pelos sinais de saída. 

Além disso, tivera, na véspera, uma discussão com o motorneiro por causa da abertura de chaves. 

O motorneiro não queria parar, não parasse. 

E o bonde continuava na vertigem, iluminado e vazio, com o motorneiro impassível. 

Entrava e saía ruas. 

Chegou à Cidade. 

Atravessou, como um risco de fogo, a avenida Rio Branco. 

E desceu, num silvo, a reta da rua da Assembleia. 

Quando chegou à linha circular da praça Quinze, ganhou um impulso de fúria. 

Com o choque violento da curva, o corpo do motorneiro recuou. 

E, recuando, puxou, com o braço duro, o volante do motor, tombando longo, de bruços, no freio de ar. 

O carro parou instantaneamente. 

O motorneiro vinha morto desde a Muda. ** 

(Aldeia Campista, 1923 e de O pato preto, 1927) 

No livro “As vozes da Metrópole”, de Ruy Castro) 

* Orestes Barbosa (1883 – 1966) é o letrista da antológica canção “Chão de Estrelas”, que Sylvio Caldas musicou e gravou em 1937, pela Odeon. 

Observador atento da cidade, frequentador do quartel general do samba, o Café Nice, divulgou em suas crônicas e colunas a vida musical da cidade e foi um dos primeiros, junto com Francisco Guimarães, o Vagalume, a inaugurar uma historiografia sobre o samba com o livro “Samba, sua história, seus poetas, seus músicos, seus cantores” em 1933. No livro, assume categoricamente “O samba é carioca. A emoção da cidade está musical e poeticamente definida no samba”. E assim fez escola.  

** Muda: bairro localizado entre na porção oeste da Tijuca, entre a região da Praça Saens Peña e o sub-bairro da Usina. 

O nome “Muda” adviria da época em que os cavalos, que subiam o Alto da Boa Vista em direção às fazendas na Zona Oeste, precisavam mudar as ferraduras, por enfrentarem os lamaçais frequentes da Tijuca. 

Glossário 

Condutor: cobrador 

Motorneiro: motorista do bonde 

Fiscal: funcionário que controlava o número de passageiros de cada viagem