sábado, 19 de fevereiro de 2022

O vírus do amor

 A história que uniu a “moça do pé” e o “rapaz da voz”

Gilmar Fraga / Arte ZH 

Lígia tinha pés lindos. Não era uma mulher bonita. Também não era feia. Era, digamos, normal da cabeça às canelas. Mas, abaixo delas, a partir dos tornozelos, Lígia se tornava especial. Seus pés eram divinos, pés delicados e delgados, pés de pele macia e dedos graciosos, que subiam harmonicamente em deliciosa escadinha começando no comovente minguinho e terminando no meigo hálux, que o dedão de Lígia não podia levar esse nome grosseiro de “dedão”, era hálux. 

Os homens quando viam os pés de Lígia se encantavam. Aqueles pés sugeriam algo que eles não conseguiam identificar racionalmente, conseguiam apenas sentir. Eram pés cheios de malícia. Pés de pecado. 

Os pés de Lígia eram famosos na cidade. Já tinham sido fotografados em anúncio de revista, já tinham sido filmados em comercial de TV. Todos os homens com quem Lígia havia se relacionado, quando falavam nela, falavam de seus pés. 

Até o dia em que ela se aborreceu. Não suportava mais que as pessoas comentassem sobre seus pés. Ela era mais do que aquilo, ela tinha outras qualidades, ela não era só um pé (ou dois), ela era UMA MULHER, entende? Com sonhos. Com sentimentos. Uma mulher que se esforçou muito para ser quem era. Ela viera de uma família pobre e batalhara duro para crescer, para evoluir, para ocupar seu lugar no mundo. E agora só o que as pessoas falavam era em seus pés. Pé, pé, pé! Lígia passou a sentir ciúmes de seus próprios pés. Passou a odiá-los. 

O drama de Lígia era muito parecido com o de Gilson. Gilson não era um homem bonito, nem feio. Não era inteligente, nem burro. Não era alto, nem baixo. Nem gordo, nem magro. Gilson era em tudo mediano, a não ser na voz. A voz de Gilson era maviosa, profunda, macia como a pele dos pés de Lígia. Gilson, quando falava, enfeitiçava as mulheres. Não que dissesse algo especialmente interessante. Até porque nunca teve, de fato, algo interessante a dizer. Era o som da sua voz que mesmerizava o ouvinte. 

Uma vez, uma mulher pediu que ele lesse em voz alta a lista do súper. Sério. Estavam os dois sentados no sofá da casa dela, bebendo um vinho, e ela tirou a lista de compras do bolso e miou: 

“Pode ler pra mim? Em voz alta?” 

Ele primeiro vacilou, não ia fazer aquilo, era ridículo, mas os olhos dela suplicavam, e ele resolveu atender. Começou: 

“Um quilo de batatas... Sal... Feijão preto...” 

Enquanto ele falava, ela gemia baixinho: 

“Uh... Oh! Hmmm...” 

E ele seguiu em frente, a lista era grande. E ela gemendo sem parar, cada vez mais alto, até chegar ao mamão papaia, quando ela não aguentou mais, atirou a taça de vinho na parede e pulou sobre ele gritando: 

“Mamão papaia! Mamão papaia!” 

Foi uma noite de loucuras. Mas Gilson, como Lígia, começou a se irritar com aquilo. Porque, para as mulheres, não interessava o que ele sentia, não interessava o que ele pensava, não interessava nem o conteúdo do que ele falava, só interessava a sua voz. Elas não olhavam para o seu interior, nem para o seu exterior, elas só queriam as suas cordas vocais. 

“Eu sou um homem!”, gritava Gilson. “Eu não sou só um som!” 

Ele se sentia um três-em-um. Era horrível. 

Aí chegou a peste. Ambos, Lígia e Gilson, foram infectados pelo coronavírus. Nada grave, eles só sentiram um sintoma, cada um: Gilson foi atacado direto na garganta e Lígia sofreu o que é chamado de “pé de covid”. Gilson ficou rouco e Lígia teve os pés cobertos de feridas. E foi assim, nessa situação, na sala de espera do médico, que eles se encontraram pela primeira vez. Iniciaram a conversa, cada qual atrás da sua máscara, com observações sobre o tempo, depois sobre a pandemia, e a coisa foi evoluindo e evoluindo, até que se reconheceram: 

“Você é a moça do pé?” 

“E você é o rapaz da voz?” 

Eram, mas admitiram: 

“Eu agora fiquei rouco, não sou mais o rapaz da voz”. 

“E eu não sou mais a moça do pé”. 

E os dois se olharam e foram olhares cheios de significado e eles riram e, sem nem falar, simplesmente se abraçaram. Podiam se abraçar, estavam imunizados não só da doença como de seus próprios predicados. Para eles, o corona não foi mau. Para eles, o corona foi o vírus do amor. 

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(Em Zero Hora, julho de 2020)

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