quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

Na bruma do tempo

 Paulo Mendes

Pintura de Voldinei Burkert Lucas – artistasgauchos.com.br 

A saudade é uma potra xucra e arisca que vem, escaramuça dentro do peito da gente e se vai de crina e cola em bandeira a campo afora, a cheirar o dulçor das pitangas. É um animal que não se deixa domar, não tem dono e, por reúna, aparece em qualquer hora do dia ou da noite. Agora mesmo, vi uma neblina tapar os morros aqui onde estou e me lembrei na hora da gauchada pavena que vi desaparecer assim, na neblina do tempo. Recordei dos tropeiros, de dom Firmino, de seu Neto, do Alemão do Cerrito, do Juca Mariano, dos meus tios Selmar e Cizinho, todos campeiros de lei, todos gaúchos de velha cepa, todos gente guapa e haragana, que tinham o dom de laçar, pelear, repontar gado na estrada, apartar novilha no rodeio, curar bicheiras, assar carne mesmo com chuva. Eram vaqueanos. Lembrei de meu pai encilhando despacito, se preparando com calma para uma tropeada, porque para essa gente nada podia ser feito no afogadilho. 

Foi por essa cerração que eles partiram, ao passo, se distanciando deste mundo por onde cruzaram sem serem percebidos, sem serem notícia, sem matérias em suplementos domingueiros, sem vídeos que fizeram sucesso nas redes sociais. Às vezes, contudo, alguns deles foram citados em passant em causos de galpão contados ao lado do fogo de chão. Muitos, ninguém lembra mais, sumiram na volta da estrada, viraram cinzas e deles não sobraram nem fotografias. Ah, minha gente sofrida e humilde desses fundões de campo, que passou ao léu, sendo uns lerdos e mansos, outros matreiros e andejos, mas que levaram a ânsia de liberdade nos olhos de vidro, molhados e, juro, não era por causa da poeira da estrada. 

Foram-se como duendes das pradarias, das imensidões sem fim, das voltas de mato, dos vãos e vaus, das canhadas e coxilhas ondulantes e esverdeadas, dos desertos e campanhas, das soledades e campos de maçanilhas em flor. Ficaram arreios suados, rédeas mastigadas por roedores das madrugadas longas, sobraram galpões em ruínas, cambonas enegrecidas, esteios pintados de picumã, uma cuia empoeirada numa prateleira. LPs de cordeonas de três “hileiras” onde são veneradas por gente que de fato nunca os conheceu. Inventam, falseiam, dizem coisas descabidas sonhando estar perpetuando a história, mas nunca viveram ao lado deles, nunca os viram trabalhar, desvirtuam a realidade, alteram sons e significados, metaforizando tardes que não presenciaram e pátios onde jamais desencilharam. 

Porém, os saúdo, campeiros das artimanhas do tempo, das garoas de inverno, dos temporais de verão, das geadas, sóis e arrabaldes. Contudo, por onde se ande, ficará algo de vocês, os esquecidos, os desprezados pelos etimologistas, embora não se vejam mais seus vultos, pois se mandaram com seus pingos lustrosos, banhados de suor. Já atravessaram as cancelas, as cercas de pedra, os aramados, os pontilhões de tábuas. Foram-se e não mais voltarão, porque a história não se repete e, embora semelhante, será sempre diferente. Fincarei pé, resistindo solito, peleando com uma adaga enferrujada e torta, de freio e pelego na mão, pedindo cancha e vaza, para os defender e os lembrar, pois são vocês que me moldaram como tijolo de baldrame, forte e rijo, para nunca esmorecer. Ficou a saudade. Restou o esquecimento. Sobrou a bruma. 

Em “Campereadas”, no Correio do Povo Rural,

fevereiro de 2022.

Glossário dos termos gauchescos 

Potro(a): cavalo (ou égua) novo de até quatro anos e ainda não totalmente domado. 

Xucro(a): diz-se do cavalo (ou da égua) não domesticado(a), bravio, selvagem. Variação de chucro. 

Dulçor: doçura. 

Reúna: reunida. 

Pavena: valente. 

Tropeiro: condutor de tropas. 

Campeiro: empregado a quem se incumbe o trato do gado. 

Guapa: corajosa, valente, vigorosa, bonita em espanhol. 

Haragano(a): Diz-se do cavalo que dificilmente se deixa agarrar, que se torna arisco, por andar muito tempo solto, sem prestar serviços. Pessoa que vive ociosa ou que evita o trabalho, mandrião, velhaco, vagabundo, variação de aragano. 

Pelear: batalhar, lutar, combater. 

Repontar: tocar os animais em direção a um lugar determinado. 

Tropeada: ato de tropear, de conduzir uma tropa. 

Andejo: que anda muito, que não para em casa, rueiro. 

Canhada: parte baixa entre coxilhas ou colinas. 

Coxilha: campina com pequenas e contínuas elevações. 

Cambona: espécie de panela (ou chaleira) improvisada feita com uma lata. 

Picumã: substância preta que a fumaça deposita nas paredes, no teto das cozinhas. 

Cordeona: espécie de gaita de foles. 

Pingo: cavalo de sela bom e bonito. 

Adaga: faca comprida e fina tipo punhal com dois gumes. 

Cancha: pista preparada em terreno plano, geralmente reta, para carreiras ou corridas de cavalos. 

Vaza: nome que se dá ao conjunto de cartas jogadas pelos parceiros e recolhidos pelo ganhador da rodada. 

Baldrame: viga de madeira encaixada nos alicerces para sustentar uma parede de pau-a-pique. 

(Do “Dicionário Gaúcho”, de Alberto Juvenal de Oliveira) 

Importante:

Leia o livro “Campereadas”, de Paulo Mendes com crônicas, contos e causos do Sul, da Editora Sulina.


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