quarta-feira, 31 de maio de 2023

Bola Mágica

 Marques Rebelo

1914. Papai não dizia jogo, dizia match. 

– Você que ir ao match, meu filho? – perguntava depois do reforçado almoço de domingo, quando havia jogo no campo da Rua Campos Sales*, defronte à praça com um rinque de patinação, que de noite fervia de tombos, malabarismos e enamorados. 

– Desnecessária pergunta. Fora o anseio da semana: 

– Quero sim, papai! 

– Então vá se aprontar. 

– Já vou! 

Enfatiotava-me às carreiras com a roupa à marinheira azul, munia-me da bengalinha, dava-lhe a mão e íamos. E à aproximação do campo, ouvindo trilares de apito, ecos de chutes e gritos de estímulo, sentia um espremer de alma, uma ânsia, uma angústia, uma sufocação, que só aliviava quando ultrapassava o portão de entrada – meu pai era amigo do diretor e trocavam palavras animadoras – e meus olhos podiam abarcar a plena extensão do gramado, pintado de suadas, ofegantes camisas vermelhas, com o morro ainda coberto de mato ao fundo. 

Cristininha era muito pequena, só queria colo, dava trabalho. Emanuel não gostava. Madalena, um domingo por outro, também nos acompanhava, fatalmente se tinha vestido novo para exibir. Mamãe, a única vez que fora, apanhara tal enxaqueca, que jurou nunca mais por os pés num campo de futebol. Juramento que cumpriu com toda a fortaleza. 

A fama dos rubros era respeitada. Bandeiras tremulavam. As arquibancadas de madeira tinham um ar de galinheiro pomposo, oscilantes aos nossos pés. 

– Belfort! Belfort! 

E Belfort, grande cabeleira, grandes bigodes, se multiplicava, inteligente, incansável, heróico, defendendo a área, dominando os adversários, arrebatando-lhes a pelota, impulsionando contra-ofensivas, animando os companheiros com gestos e com gritos, estabelecendo o pânico e a derrota diante da meta inimiga. 

No intervalo do prélio, os jogadores, de compridos calções, tomavam cerveja, fumavam, vinham conversar com os amigos e familiares no meio da reduzida mas entusiástica assistência com muitas calças brancas e chapéus de palha. 

A bola era mágica! Subia como balão no ar translúcido, caía com um batido surdo e emocionante no verde marcial do gramado. 

********** 

(Do livro “O Trapicheiro”, in Seleta, Livraria José Olympio, 1974)

 

* Campo da Rua Campos Sales foi campo de futebol do América Footbal Club, no Rio de Janeiro, fundado em 18 de setembro de 1904. Cores: vermelho e branco.

 

terça-feira, 30 de maio de 2023

Maninha

 Chico Buarque

 Música de 1977

A música tem um tom metafórico muito utilizado nos anos 70, época do regime militar brasileiro. O próprio Chico diria, no documentário “Vai passar”, que o pronome “ele”, do texto de Maninha, referia-se à situação da ditadura (ou ao ditador da época). Diz o compositor: “é uma canção zangada disfarçada de delicadeza, falando de uma infância imaginária”.

Se lembra da fogueira?

Se lembra dos balões?

Se lembra dos luares dos sertões?

A roupa no varal, feriado nacional

E as estrelas salpicadas nas canções.

Se lembra quando toda modinha

Falava de amor?

Pois nunca mais cantei, ó maninha,

Depois que “ele”* chegou. 

Se lembra da jaqueira?

A fruta no capim,

O sonho que você contou pra mim.

Os passos no porão,

Lembra da assombração?

E das almas com perfume de jasmim.

Se lembra do jardim?

Ó maninha, coberto de flor,

Pois hoje só dá erva daninha

No chão que “ele” pisou. 

Se lembra do futuro

Que a gente combinou?

Eu era tão criança e ainda sou

Querendo acreditar,

que o dia vai raiar

Só porque uma cantiga anunciou.

Mas não me deixe assim,

Tão sozinha ,

a me torturar

Que um dia “ele” vai embora,

Maninha, pra nunca mais voltar. 

********** 

* “Ele” foi colocado entre aspas para dar ênfase ao pronome.

O Brilhante e o Opaco

 Millôr Fernandes

O vaga-lume, de vago lume esverdeado, fazia voltas e voltas em torno de si mesmo, no encanto indisfarçável de seu próprio brilho. E, enquanto revoava pela escuridão da mata, de galho em galho dos arbustos, pensava com seus botões (luminosos): 

− Sou todo uma esmeralda só, brilhante e viva. Deus, Todo-Poderoso, ao me fazer um inseto noturno e me dar essa luz, evidentemente quis que eu fosse superior a todos os outros insetos, guia e Orientador da mata. 

E voava e voava e brilhava e brilhava e pensava e pensava: 

− Haverá, em toda a mata, outro como eu? Pois dentro do verde que pisco ainda há outro mistério: ninguém sabe se apago-e-acendo ou se acendo-e-apago. 

Voava mais e, descrevendo parábolas de luz por entre as flores, mais se envaidecia na comparação com os outros habitantes da floresta: 

− Pobres irmãos inferiores, eu vim para protegê-los das trevas. Vocês, grilos de asas cinzentas e sem brilho, formigas que trabalham e suam sem um instante de luz e fulgor, mariposas que por serem opacas, qualquer luz liquido, míseras lagartas imitadores de acordeões sem som. Aranhas destinadas a serem feias tecelãs de sedas que jamais verão prontas, cupins que perdem as asas e ficam tontos até morrer, oh! Para vocês todos, aqui está minha luz verde. Imitem-me os que puderem, sigam meu brilho maravilhoso os que estiverem perdidos nos caminhos. 

E voou mais alto e se comparou às estrelas: 

− Sou uma de vocês, irmãs! Pisco no céu, como vocês! Sou a Vésper, a estrela da noite, sou Alba, a estrela da manhã. Faço parte da constelação da selva, vivo, vivo! 

Foi descendo de novo quando, súbito sentiu uma lufada de ar que o envolvia, algo pegajoso que o segurava e logo estava fechado numa atmosfera nojenta e escorregadia. Sua luz iluminou um pouco a escuridão intensa e ele viu, em volta, centenas de insetos, apertados uns contra os outros, num cubículo úmido e sujo. Um dos inseto, uma lesma sonolenta, levantou a cabeça e gritou com voz rouca e irritada: 

− Idiota, idiota, se não fosse você, com essa mania de iluminação noturna, o sapo-boi jamais teria nos engolido no escuro. Vamos, idiota, apaga essa luz que eu quero dormir!

segunda-feira, 29 de maio de 2023

A Fábula do Lobo Traficante

 Fernando Portela

Imagem da internet

A sociedade dos cordeiros condenou aquele lobo a vinte anos de prisão. Era terrível o seu crime: tráfico de entorpecentes. Por sua causa, milhares de cordeirinhos destruíram suas vidas. O lobo era o inimigo público número um. 

Vinte anos depois, apesar desse e de outros lobos-traficantes terem sido presos, a sociedade dos cordeiros estava mergulhada no vício. Era um problema de segurança nacional. Talvez por isso um repórter resolveu entrevistar aquele lobo, à saída da penitenciária. Estaria ele arrependido? Teria consciência do que provocara? Sentia-se injustiçado? 

Afinal, a sociedade dos cordeiros cumprira rigorosamente a Lei. Só que alguma coisa estava errada. Lobos-traficantes eram presos todos os dias, enquanto aumentava o consumo de drogas. Qual a opinião de um lobo que pagou vinte anos por um dos piores crimes contra a humanidade? 

− Você quer mesmo saber? − foi logo falando o lobo. − O problema não se restringe a mim nem aos que me seguiram nessa profissão. Eu cometi parte do crime, reconheço, comercializando um produto proibido… 

− E quem cometeu a outra parte? − indagou o repórter, ele próprio irritado com a desfaçatez do lobo. 

− Ora, a sociedade dos cordeiros! − afirmou o lobo. Acaso fui eu que provoquei a corrida ao tóxico? Como seria possível eu me tornar um traficante se não houvesse procura do meu produto? 

“Isso faz sentido”, pensou o repórter. E arriscou outra pergunta: − Como a sociedade dos cordeiros poderia ter evitado tudo isso? 

− Ora, pergunte a ela, respondeu o lobo. Mas dificilmente a sociedade dos cordeiros concordará que tem parte dessa culpa. Para isso, seria necessário que cada cordeiro, em particular, meditasse sobre sua própria vida e o que considera melhor para o seu rebanho. Mas você sabe que meditar, refletir, ponderar e se autoanalisar é muito difícil, quando há tantos lobos à disposição para assumir todas as culpas. 

Quando a entrevista com o lobo-traficante foi publicada, a sociedade dos cordeiros reagiu: os lobos são criminosos irrecuperáveis, cínicos, arrogantes e diversionistas. 

Para eles, só mesmo a Pena de Morte. 

O Povo

 Eça de Queirós

Há no mundo uma raça de homens com instintos sagrados e luminosos, com divinas bondades do coração, com uma inteligência serena e lúcida, com dedicações profundas, cheias de amor pelo trabalho e de adoração pelo bem, que sofrem, que se lamentam em vão. 

Estes homens são o Povo. 

Estes homens estão sob o peso de calor e de sol, transidos pelas chuvas, roídos de frio, descalços, mal nutridos; lavram a terra, revolvem-na, gastam a sua vida, a sua força, para criar o pão, o alimento de todos. 

Estes são o Povo, e são os que nos alimentam. 

Estes homens vivem nas fábricas, pálidos, doentes, sem família, sem doces noites, sem um olhar amigo que os console, sem ter o repouso do corpo e a expansão da alma, e fabricam o linho, o pano, a seda, os estofos. 

Estes homens são o Povo, e são os que nos vestem. 

Estes homens vivem debaixo das minas, sem o sol e as doçuras consoladoras da Natureza, respiram mal, comendo pouco, sempre na véspera da morte, rotos, sujos, curvados, e extraem o metal, o minério, o cobre, o ferro, e toda a matéria das indústrias. 

Estes homens são o Povo, e são os que nos enriquecem. 

Estes homens, nos tempos de lutas e de crises, tomam as velhas armas da Pátria, e vão, dormindo mal, com marchas terríveis, à neve, à chuva, ao frio, nos calores pesados, combater e morrer longe dos filhos e das mães, sem ventura, esquecidos, para Que nós conservemos o nosso descanso opulento. 

Estes homens são o Povo, e são os que nos defendem. 

Estes homens formam equipagens dos navios, são lenhadores, guardadores de gado, servos mal retribuídos e desprezados. Estes homens, são os que nos servem? 

E o mundo oficial, opulento, soberano, o que faz a estes homens que o vestem, que o alimentam, que o enriquecem, que o defendem, que o servem? 

Primeiro, despreza-os, não pensa neles, não vela por eles, trata-os como se tratam os bois; deixa-lhes apenas uma pequena porção dos seus trabalhos dolorosos; não lhes melhora a sorte, cerca-os de obstáculos e de dificuldades; forma-lhes em redor uma servidão que os prende a uma miséria que os esmaga; não lhes dá proteção; e, terrível coisa, não os instrui: deixa-lhes morrer a alma. 

É por isso que os que têm coração e alma, e amam a justiça, devem lutar e combater pelo Povo. 

E ainda que não sejam escutados têm na amizade dele uma consolação suprema.

Continho

 Paulo Mendes Campos

Era uma vez um menino triste, magro e barrigudinho, do sertão de Pernambuco. Na soalheira danada de meio-dia, ele estava sentado na poeira do caminho, imaginando bobagem, quando passou um gordo vigário a cavalo. 

− Você, aí, menino, para onde vai essa estrada? 

− Ela não vai não: nós é que vamos nela. 

− Engraçadinho duma figa! Como você se chama? 

− Eu não me chamo não, os outros é que me chamam de Zé.

********** 

(Do livro “Para gostar de ler”, Ática, 1996)

O dono da bola

 Ruth Rocha

O nosso time estava cheio de amigos. O que nós não tínhamos era a bola de futebol. Só bola de meia, mas não é a mesma coisa. 

Bom mesmo é bola de couro, como a do Caloca. 

Mas, toda vez que nós íamos jogar com Caloca, acontecia a mesma coisa. E era só o juiz marcar qualquer falta do Caloca que ele gritava logo: 

– Assim eu não jogo mais! Dá aqui a minha bola! 

– Ah, Caloca, não vá embora, tenha espírito esportivo, jogo é jogo… 

– Espírito esportivo, nada! – berrava Caloca. – E não me chame de Caloca, meu nome é Carlos Alberto! 

E assim, Carlos Alberto acabava com tudo que era jogo. 

A coisa começou a complicar mesmo, quando resolvemos entrar no campeonato do nosso bairro. Nós precisávamos treinar com bola de verdade para não estranhar na hora do jogo. 

Mas os treinos nunca chegavam ao fim. Carlos Alberto estava sempre procurando encrenca: 

– Se o Beto jogar de centroavante, eu não jogo! 

– Se eu não for o capitão do time, vou embora! 

– Se o treino for muito cedo, eu não trago a bola! 

E quando não se fazia o que ele queria, já sabe, levava a bola embora e adeus, treino. 

Catapimba, que era o secretário do clube, resolveu fazer uma reunião: 

– Esta reunião é para resolver o caso do Carlos Alberto. Cada vez que ele se zanga, carrega a bola e acaba com o treino. 

Carlos Alberto pulou, vermelhinho de raiva: 

– A bola é minha, eu carrego quantas vezes eu quiser. 

– Pois é isso mesmo! – disse o Beto, zangado. – É por isso que nós não vamos ganhar campeonato nenhum! 

– Pois, azar de vocês, eu não jogo mais nessa droga de time, que nem bola tem. 

E Caloca saiu pisando duro, com a bola debaixo do braço. 

Aí, Carlos Alberto resolveu jogar bola sozinho. 

Nós passávamos pela casa dele e víamos. Ele batia bola com a parede. Acho que a parede era o único amigo que ele tinha. Mas eu acho que jogar com a parede não deve ser muito divertido. Porque, depois de três dias, o Carlos Alberto não aguentou mais. Apareceu lá no campinho. 

– Se vocês me deixarem jogar, eu empresto a minha bola. 

Carlos Alberto estava outro. Jogava direitinho e não criava caso com ninguém. E, quando nós ganhamos o jogo final do campeonato, todo mundo se abraçou gritando: 

– Viva o Estrela-d’Alva Futebol Clube! 

– Viva! 

– Viva o Catapimba! 

– Viva! 

– Viva o Carlos Alberto! 

– Viva! 

Então o Carlos Alberto gritou: 

– Ei, pessoal, não me chamem de Carlos Alberto! Podem me chamar de Caloca!



domingo, 28 de maio de 2023

O vilão ambiental do momento

 Daniel Scola

De tempos em tempos, a humanidade elege alguns vilões. Um dos eleitos na atualidade é o plástico. É sempre bom lembrar que o plástico não tem braços nem pernas. Ele não vai sozinho até a praia ou até o fundo do mar e se deposita ali. Tem decisiva atuação humana por trás. Ou seja, o vilão é a pessoa que faz descarte de forma incorreta. 

De fato, o plástico demora muito mais tempo para degradar na natureza, infestou as praias e sua quantidade no mar é tão grande que, segundo pesquisadores, está matando peixes e tartarugas. O plástico é mais pesado e afunda nas profundezas marinhas com mais velocidade do que vários outros materiais. 

A temperatura do mundo sobe porque o homem provocou um nível enorme de poluição. Uma das consequências é sentida nos mares cada vez mais revoltos e elevados. Que mundo vamos deixar para os nossos descendentes? 

Outro exemplo da maneira enviesada de tratar o plástico. Numa loja de vestuário esportivo, em Porto Alegre, a etiqueta na roupa informa que a empresa não se vale mais de plástico (poliamida) para a confecção. Nobre, se não fosse hipocrisia, pois a embalagem da peça é de... plástico. Não me refiro à sacola, que também é de plástico, mas à embalagem onde estava a roupa. O consumidor precisa insistir para que o vendedor tire as peças de vestuário do plástico para levá-las para casa. 

Os canudos, provavelmente o artigo com menor quantidade de plástico entre todos, foram eliminados da nossa rotina em bares, lanchonetes e restaurantes como se fosse vergonhoso usá-los. Entraram em cena os canudos de papel (que não podem ser reutilizados) e os que são feitos de metal. Mas não será por isso que os mares ficarão limpos de um momento para outro. 

Muitas vezes, a sensação é de que o “nobre” ato de combater o plástico funciona mais para retirar o peso da culpa de quem, na prática, usa e descarta mal. Afinal, elimina-se o plástico e ele é substituído por qual outro material? 

A história mostra que o plástico mudou e facilitou as nossas vidas. O maior erro pode estar no descarte equivocado, e isso depende diretamente de cada um de nós. 

(Do jornal Zero Hora, maio de 2023)

Negócio de ocasião

Fernando Sabino

Quando mandou colocar mármore no chão de seu apartamento, o vizinho de baixo veio reclamar: às oito horas da manhã os operários começavam a quebrar mármore mesmo em cima de sua cabeça. Durma-se com um barulho desses! 

– Está bem, está bem − concordou ele, acalmando o vizinho: − Vou mandar começar mais tarde. 

Mandou que os operários só começassem a trabalhar a partir das nove horas. Dois dias depois tornava o vizinho: 

– Assim não é possível. Já reclamei, o senhor prometeu, e o barulho continua! 

– Mas é só por uns dias − argumentou ele: − O senhor vai ter paciência… 

E mandou que os trabalhos só se iniciassem a partir de dez horas. Com isso pensava haver contentado o vizinho. Para surpresa sua, todavia, o homem voltou ainda para protestar e desta vez furibundo, armado de revólver: 

– Ou o senhor para com esse barulho ou eu faço um estrago louco. 

Olhou espantado para a arma e, cordato, convidou-o a entrar: 

– Não precisa se exaltar, que diabo. Vamos resolver a coisa como gente civilizada. Eu disse que era só por uns dias… Se o senhor quiser que eu pare, eu paro. Cuidado com esse negócio, costuma disparar. Qual é o calibre? 

– Trinta e dois. 

– Prefiro trinta e oito. Mas esse parece ser muito bom… Que marca? 

– Smith-Wesson. 

– Ah! Então deve ser muito bom. Cabo de madrepérola... Quanto o senhor pagou por ele? 

– Cinquenta. 

– Não foi caro. Sempre tive vontade de ter um revólver desses. Quem sabe o senhor me venderia? 

– Não vim aqui para vender revólver − explodiu o outro – mas para lhe avisar que esse barulho… 

– Não haverá mais barulho, esteja tranquilo. Agora, quanto ao revólver… Quer vender? 

– O senhor está brincando…

– Não estou não: pela vida de minha mãezinha. Quer saber de uma coisa? Dou cem por ele. Sempre tive vontade... Vamos, aceite! Cem, ali na bucha, pago na hora. 

O homem começou a titubear. Olhou o revólver, pensativo: cem era um bom preço. Já pensara mesmo em vendê-lo… Olhou o dono da casa, tornou a olhar o revólver: 

– Toma: é seu − decidiu-se. 

Antes de entrar na posse da arma, o comprador foi lá dentro buscar o dinheiro e estendeu-o ao vizinho. Depois empunhou o revólver e chegou-lhe aos peitos: 

– Bem, agora ponha-se daqui para fora. E fique sabendo que eu faço o barulho que quiser e quando quiser, entendeu? Venha aqui outra vez reclamar e vai ver quem é que acaba fazendo um estrago louco. 

(Do livro “Para gostar de ler” Ática, 1981)

A profecia

 Werner Zotz

Como é que o índio vê vida, as transformações que o homem branco lhe impõe? No texto a seguir, você lerá a profecia de um velho pajé. 

Caraíbas têm cabeça oca. Deviam ter aprendido muitas lições com o povo filho da terra e não souberam enxergar, nem ouvir, nem sentir. E sofrerão por isso. 

Dia virá em que ficarão com sede, muita sede, e não terão água para beber: os rios e lagoas e valos e regatos e até a água da chuva estarão sujos e pobres. E chorarão. E continuarão com sede porque a água do choro é salgada e amarga... 

O tempo da fome também virá. E a terra estará seca, o chão duro. As sementes do milho e a mandioca não mais nascerão verdes, alimentando a esperança de quarups ao redor do fogo com muita comida e bebida. A caça e peixe também terão fugido ou morrido. E a fome apertará o estômago do caraíba e ele não poderá comer nem sua riqueza, nem sua terra nua e estéril.  

Os dias serão sempre mais quentes. E quando o caraíba procurar uma sombra como abrigo, descobrirá que a terra não tem mais árvores.  

As noites serão escuras e frias. Sem lua, sem estrelas. E sem fogueiras quentes. 

E o caraíba, o homem-branco, chorará. E quando acordar de sua imensa estupidez será tarde, muito tarde. 

Eu, Tamãi, o velho pajé, falei. 

(Do livro “Apenas um Curumim”)

Vocabulário 

Caraíba − homem branco

Quarups − festas indígenas

Pajé − indivíduo responsável pela condução do ritualismo mágico, e a quem se atribui à autoridade xamanística de invocar e controlar espíritos, o que confere à sua ação encantatória poderes oraculares, vaticinantes e curativos.

sábado, 27 de maio de 2023

Lixo

 Luís Fernando Veríssimo

Encontram-se na área de serviço. Cada um com seu pacote de lixo. É a primeira vez que se falam.

− Bom dia...

− Bom dia.

− A senhora é do 610.

− E o senhor do 612.

− É.

− Eu ainda não lhe conhecia pessoalmente...

− Pois é...

− Desculpe a minha indiscrição, mas tenho visto o seu lixo...

− O meu quê?

− O seu lixo.

− Ah...

− Reparei que nunca é muito. Sua família deve ser pequena...

− Na verdade sou só eu.

− Mmmm. Notei também que o senhor usa muito comida em lata.

− É que eu tenho que fazer minha própria comida. E como não sei cozinhar...

− Entendo.

− A senhora também...

− Me chame de você.

− Você também perdoe a minha indiscrição, mas tenho visto alguns restos de comida em seu lixo. Champignons, coisas assim...

− É que eu gosto muito de cozinhar. Fazer pratos diferentes. Mas como moro sozinha, às vezes sobra...

− A senhora... Você não tem família?

− Tenho, mas não aqui.

− No Espírito Santo.

− Como é que você sabe?

− Vejo uns envelopes no seu lixo. Do Espírito Santo.

− É. Mamãe escreve todas as semanas.

− Ela é professora?

− Isso é incrível! Como foi que você adivinhou?

− Pela letra no envelope. Achei que era letra de professora.

− O senhor não recebe muitas cartas. A julgar pelo seu lixo.

− Pois é...

− No outro dia tinha um envelope de telegrama amassado.

− É.

− Más notícias?

− Meu pai. Morreu.

− Sinto muito.

− Ele já estava bem velhinho. Lá no Sul. Há tempos não nos víamos.

− Foi por isso que você recomeçou a fumar?

− Como é que você sabe?

− De um dia para o outro começaram a aparecer carteiras de cigarro amassadas no seu lixo.

− É verdade. Mas consegui parar outra vez.

− Eu, graças a Deus, nunca fumei.

− Eu sei. Mas tenho visto uns vidrinhos de comprimido no seu lixo...

− Tranquilizantes. Foi uma fase. Já passou.

− Você brigou com o namorado, certo?

− Isso você também descobriu no lixo?

− Primeiro o buquê de flores, com o cartãozinho, jogado fora. Depois, muito lenço de papel.

− É, chorei bastante, mas já passou.

− Mas hoje ainda tem uns lencinhos...

− É que eu estou com um pouco de coriza.

− Ah.

− Vejo muita revista de palavras cruzadas no seu lixo.

− É. Sim. Bem. Eu fico muito em casa. Não saio muito. Sabe como é.

− Namorada?

− Não.

− Mas há uns dias tinha uma fotografia de mulher no seu lixo. Até bonitinha.

− Eu estava limpando umas gavetas. Coisa antiga.

− Você não rasgou a fotografia. Isso significa que, no fundo, você quer que ela volte.

− Você já está analisando o meu lixo!

− Não posso negar que o seu lixo me interessou.

− Engraçado. Quando examinei o seu lixo, decidi que gostaria de conhecê-la. Acho que foi a poesia.

− Não! Você viu meus poemas?

− Vi e gostei muito.

− Mas são muito ruins!

− Se você achasse eles ruins mesmo, teria rasgado. Eles só estavam dobrados.

− Se eu soubesse que você ia ler...

− Só não fiquei com eles porque, afinal, estaria roubando. Se bem que, não sei: o lixo da pessoa ainda é propriedade dela?

− Acho que não. Lixo é domínio público.

− Você tem razão. Através do lixo, o particular se torna público. O que sobra da nossa vida privada se integra com a sobra dos outros. O lixo é comunitário. É a nossa parte mais social. Será isso?

− Bom, aí você já está indo fundo demais no lixo. Acho que...

− Ontem, no seu lixo...

− O quê?

− Me enganei, ou eram cascas de camarão?

− Acertou. Comprei uns camarões graúdos e descasquei.

− Eu adoro camarão.

− Descasquei, mas ainda não comi. Quem sabe a gente pode...

− Jantar juntos?

− É.

− Não quero dar trabalho.

− Trabalho nenhum.

− Vai sujar a sua cozinha.

− Nada. Num instante se limpa tudo e põe os restos fora.

− No seu lixo ou no meu? 

********** 

Do livro “O Analista de Bagé”. L&PM Editora, 1981

sexta-feira, 26 de maio de 2023

O outro Brasil que vem aí

 Gilberto Freyre

Eu ouço as vozes
eu vejo as cores
eu sinto os passos
de outro Brasil que vem aí
mais tropical
mais fraternal
mais brasileiro.
O mapa desse Brasil em vez das cores dos Estados
terá as cores das produções e dos trabalhos.
Os homens desse Brasil em vez das cores das três raças
terão as cores das profissões e regiões.
As mulheres do Brasil em vez das cores boreais
terão as cores variadamente tropicais.
Todo brasileiro poderá dizer: é assim que eu quero o Brasil,
todo brasileiro e não apenas o bacharel e o doutor
o preto, o pardo, o roxo e não apenas o branco e o semibranco.
Qualquer brasileiro poderá governar esse Brasil

lenhador
lavrador
pescador
vaqueiro
marinheiro
funileiro
carpinteiro
contanto que seja digno do governo do Brasil
que tenha olhos para ver pelo Brasil,
ouvidos para ouvir pelo Brasil
coragem de morrer pelo Brasil
ânimo de viver pelo Brasil
mãos para agir pelo Brasil
mãos de escultor que saibam lidar com o barro forte e novo dos Brasis

mãos de engenheiro que lidem com ingresias e tratores europeus e norte-americanos a serviço do Brasil

mãos sem anéis (que os anéis não deixam o homem criar nem trabalhar).
mãos livres
mãos criadoras
mãos fraternais de todas as cores
mãos desiguais que trabalham por um Brasil sem Azeredos,
sem Irineus
sem Maurícios de Lacerda.
Sem mãos de jogadores
nem de especuladores nem de mistificadores.
Mãos todas de trabalhadores,
pretas, brancas, pardas, roxas, morenas,
de artistas
de escritores
de operários
de lavradores
de pastores
de mães criando filhos
de pais ensinando meninos

de padres benzendo afilhados
de mestres guiando aprendizes
de irmãos ajudando irmãos mais moços
de lavadeiras lavando
de pedreiros edificando
de doutores curando
de cozinheiras cozinhando
de vaqueiros tirando leite de vacas chamadas comadres dos homens.
Mãos brasileiras
brancas, morenas, pretas, pardas, roxas
tropicais
sindicais
fraternais.
Eu ouço as vozes
eu vejo as cores
eu sinto os passos
desse Brasil que vem aí.

quarta-feira, 24 de maio de 2023

Perguntas inconvenientes a garçons

 

Uma família burguesa entra numa churrascaria gaúcha, senta-se numa mesa e o patriarca faz a seguinte pedido ao garçom: 

− Boa tarde, nós não comemos carne, galeto, polenta, salsichão, salada de batata, o que você nos recomenda: 

O garçom, com toda sua imponência profissional, responde: 

− Um táxi e pode esperar daquele lado... 

O chefe da família: 

− Que lado? 

Garçom: 

− O lado de fora. 

***** 

O sujeito reclama com o garçom: 

− Pôxa, eu pedi um frango à caçadora e o senhor me trouxe um frango a raio X! 

− Desculpe, senhor! Frango a raio X? Não compreendo... 

− Deste frango só se veem os ossos! 

***** 

E naquela festa grã-fina, o garçom oferece, gentilmente, uma bebida para uma das convidadas: 

− A senhorita aceita mais um uísque? 

− Não, obrigada... Me faz mal às pernas... 

− Elas adormecem? − pergunta o garçom ingenuamente? 

− Não... Elas se abrem! 

***** 

− O que é esse pelo no meu prato de tira-gosto? 

− Ah, isso não é nada... tenho certeza que é do saco do Feijão! 

− Ah, bom... então me consegue mais um chope! 

− Sem problemas − e grita em direção ao interior do restaurante: “Feijão, traz mais um chope para a mesa quatro!”. 

***** 

Uma senhora do interior está no bar da capital. Ela chama o garçom, e quando este se aproxima, ela se levanta e fala baixinho no ouvido dele: 

− Onde é o banheiro?

O garçom responde: 

− É do outro lado. 

A senhora se aproxima do outro ouvido do garçom e pergunta novamente: 

− Onde é o banheiro? 

***** 

− Garçom! Esta sopa é pra dois? 

− Sim senhor − responde ele, e o cliente completa, bravo: 

− Então por que é que só tem uma mosca dentro dela? 

***** 

Uma família estava jantando em um restaurante. 

Findo o jantar, o pai disse ao garçom: 

− Embrulhe a carne que sobrou. A gente vai levar para o nosso cachorro! 

Imediatamente, os filhos gritaram, felizes: 

− Oba! O papai vai comprar um cachorro pra gente! 

***** 

Aquele casal estava jantando num restaurante finíssimo, quando, de repente, o homem desaparece para debaixo da mesa. Surpreso, o garçom se aproxima e pergunta com ar de preocupação: 

— Perdão, senhora, mas o seu marido está passando mal?

— Não, não! Ele está ótimo! É o meu marido que acabou de entrar no restaurante!

Burrice

 

Caminhavam dois burros, um com carga de açúcar, outro com carga de esponjas. 

Dizia o primeiro: 

− Caminhemos com cuidado, porque a estrada é perigosa. 

O outro redarguiu: 

− Onde está o perigo? Basta andarmos pelo rastro dos que hoje passaram por aqui. 

− Nem sempre é assim. Onde passa um, pode não passar outro. 

− Que burrice! Eu sei viver, gabo-me disso, e minha ciência toda se resume em só imitar o que os outros fazem. 

− Nem sempre é assim, nem sempre é assim… continuou a filosofar o primeiro. 

Nisto alcançaram o rio, cuja ponte caíra na véspera. 

− E agora? 

− Agora é passar a vau. 

O burro do açúcar meteu-se na correnteza e, como a carga se ia dissolvendo ao contato da água, conseguiu sem dificuldade pôr pé na margem oposta. 

O burro da esponja, fiel às suas ideias, pensou consigo: 

− Se ele passou, passarei também − e lançou-se ao rio. 

Mas sua carga, em vez de esvair-se como a do primeiro, cresceu de peso a tal ponto que o pobre tolo foi ao fundo. 

− Bem dizia eu! Não basta querer imitar, é preciso poder imitar − comentou o outro. 



Minha rua

 

Estava chovendo quando saí para tomar o ônibus na avenida. Era bem cedo, não havia quase ninguém andando nas calçadas. Da minha parte da minha casa, que era a primeira casa da rua até a avenida, eu caminhava cerca de 300 passos. Uma vez me dei o trabalho de contar. 

Rua Dona Áurea Martins dos Anjos, nº. 22 . Esse é o meu endereço. 

Minha rua é pequena. Têm calçadas estreita e tortuosas, porque cada vizinho fez uma rampa para o carro na altura que quis. Como também árvores foram plantadas desordenadamente. Então, a gente tem que, enquanto caminha pelas calçadas, ir desviando dos “morrinhos cimentados” e das arvorezinhas que as enfeitam. São vinte e duas casas ao todo na minha rua, que nunca foi asfaltada. 

É uma ruazinha simpática com ares de rua de cidade. Os postes ainda são do tipo antigo, com lâmpadas amarelas. Ela começa em lugar nenhum para terminar na avenida. Quando um carro entra, podem-se ouvir as pedras soltas do calçamento cortarem a parte de baixo da flandagem dos veículos. 

Lembro-me de quando eu era criança. 

Ao chegar da escola e sempre depois do almoço, eu ia soltar arraia. Minha mãe ficava com as amigas, enquanto eu me divertia. Sempre vinha um vendedor de cocada na esquina e eu, louco por cocadas, largava a pipa e ia choramingar perto da minha mãe até que ela liberar as moedas. Tempo bom! 

Cheguei na avenida. É engraçado, mas sempre ao chegar na avenida eu olho para trás, para minha rua. De alguma forma, ela continua sendo “a minha rua de infância”. 

Ela continua quase do mesmo jeito. Apenas as árvores engrossaram o tronco e as calçadas estão mais baixas ou eu cresci. Estando a olhar para minha rua, vejo minha mãe, de cabelos pretos, parada no portão. 

Ela acena, eu aceno de volta. 

Minha mãe e eu mudamos. Alguns dos meus amigos de infância mudaram ou foram para outras ruas, pois estão mais velhos. Nossa rua continua a mesma. Imutável, nos abraça. 

********** 

Hayson Henrique de Araújo Brasileiro, 9º Ano B

– Ensino Fundamental Profª. Mariana Meira M. da Silva

E. E. Profª. Josephina Najar Hernandez

Do livro: “Histórias e Memórias – O lugar onde eu vivo”

terça-feira, 23 de maio de 2023

Prece árabe

 

Deus, não consintas que eu seja o carrasco que sangra as ovelhas,

nem uma ovelha nas mãos dos algozes. 

Ajuda-me a dizer sempre a verdade na presença dos fortes,

e jamais dizer mentiras para ganhar os aplausos dos fracos.

Meu Deus, se me deres a fortuna, não me tires a felicidade;

se me deres a força, não me tires a sensatez;

se me for dado prosperar, não permita que eu perca a modéstia,

conservando apenas o orgulho da dignidade. 

Ajuda-me a apreciar o outro lado das coisas,

para não enxergar a traição dos adversários,

nem acusá-los com maior severidade do que a mim mesmo.

Não me deixes ser atingido pela ilusão da glória,

quando bem sucedido e nem desesperado quando sentir insucesso.

Lembra-me que a experiência de um fracasso

poderá proporcionar um progresso maior. 

Deus, faze-me sentir que o perdão é o maior índice de força,

e que a vingança é prova de fraqueza.

Se me tirares a beleza da saúde, conforta-me com a graça da fé.

E quando me ferir a ingratidão e a incompreensão dos meus semelhantes,

cria em minha alma a força da desculpa e do perdão.

E, finalmente, senhor, se eu Te esquecer, Te rogo mesmo assim,

Nunca Te esqueças de mim! 

(Autor desconhecido)

segunda-feira, 22 de maio de 2023

Dois gênios sul-americanos

 

Gabriel Garcia Márquez e Mario Vargas Llosa 

(...) 

Em 1967, houve em Lima, no Peru, um encontro mágico entre dois então jovens escritores, já festejados nas suas aldeias, mas ninguém apostaria que aqueles dois sul-americanos no futuro seriam laureados com o Nobel de Literatura. 

O material de um diálogo de dois dias foi colocado num livro (Duas Solidões), editado pela Record (2022), (...) 

Uma das primeiras perguntas que Mario Vargas Llosa fez para Gabriel Garcia Márquez foi: “Todo mundo sabe para que serve um engenheiro, um arquiteto ou um médico, mas na sua opinião, como escritor, você serve para quê?” 

E gabo respondeu: “Eu acho que comecei a escrever quando descobri que não servia para nada do que queriam que eu servisse, como, por exemplo, trabalhar na farmácia do meu pai. E depois, quando comecei a escrever, me agradava que publicassem o que tinha escrito, porque percebi que eu escrevia para que meus amigos gostassem mais de mim”. 

E concluiu a resposta: “Agora, a verdade é que o fato de escrever obedece a uma necessidade urgente, e quem tem vocação de escritor tem que escrever, porque só assim vai se livrar das suas dores de cabeça e da sua má digestão”. 

Mais curioso é que mesmo as pessoas bem-sucedidas em geral não sabem dizer quando e por que decidiram ser o que seriam. 

********** 

(Da crônica “Sobre como saber para que servimos”,

De J.J. Camargo, no Caderno Vida, de Zero Hora, 

20 de maio de 2023)

domingo, 21 de maio de 2023

Uma carta sincera

 

Niterói, 25 de março de 1998. 

Prezado amigo Paulo: 

Tive que reunir forças para lhe escrever. É muito difícil falar certas coisas pessoalmente. Somos amigos há cerca de 12 anos, certo? Por isso mesmo se torna tão complicado lhe dizer o que estou pronto a dizer. O respeito e a admiração mútuos que sempre nortearam nossa amizade precisam ser preservados. Devo agir corretamente e pronto. 

Pensei muito e acho que nossa amizade merece que eu faça isso. O problema é Cecília, sua mulher. Quando você passou a beber demais, era eu quem o levava pra casa, de madrugada, lembra? Pois é. E sempre encontrava sua mulher acordada, esperando você. E sempre vestindo camisolas. Eram camisolas lindas, algumas transparentes ou quase. E você sabe que tem uma mulher linda, de formas perfeitas, cabelos sedosos, negros. 

No começo, ela procurava se cobrir, mas depois notei que ela gostava de ser apreciada por mim. Naquele dia em que choveu muito, eu o levei pra casa e junto com Cecília, tirei suas roupas molhadas e o coloquei pra dormir. Fechamos a porta do seu quarto e quando me dispunha a partir, ela sugeriu que eu fizesse o mesmo, tirasse a roupa molhada. Meio sem jeito tirei a camisa e fiquei olhando para ela. Sabe o que ela me disse? "tira tudo". O sangue ferveu quando bebi um conhaque, de cuecas, com ela. Nos amamos no sofá da sala. 

Paulo, desde aquele dia, eu tenho um caso com Cecília. Não pude evitar. Não consigo resistir àquele sorriso e àquelas camisolas. Agora mesmo, pensando nisso, sinto o desejo e a excitação renascerem dentro de mim. Mas preciso vencer isso. Essa é a razão da presente missiva. Contar tudo a você, esquecer Cecília... Cecília, com o sorriso e os cabelos que me levam ao êxtase. Cecília, que na cama me faz sentir como o dono do mundo... as coxas de Cecília... 

É, parece que esta carta vai ter o mesmo destino das outras. E eu vou continuar enchendo você de cerveja. Paulo, me perdoe. Vou rasgar esta carta e continuar transando com sua mulher. Ela é demais. 

(Som de papel de carta sendo amassado) 

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Texto de Clarival Vilaça

A dívida da prostituta

 (Versão lusitana)

Não sei quem foi o gênio que escreveu isto, mas lê-lo é excelente! 

Numa pequena cidade chovia torrencialmente há vários dias e a cidade parecia deserta. Fazia tempo que a crise vinha fustigando a cidade, todos tinham dívidas e viviam à base de créditos. 

Por sorte, chegou um milionário cheio de dinheiro. Entrou no único hotel da cidade e pede um quarto. Pôs uma nota de 100 €uros no balcão da recepcionista e foi ver se o quarto lhe agradava. 

Em seguida, o dono do hotel pega na nota e sai a correr para pagar as suas dívidas ao talhante”, fornecedor do hotel. 

Este pega na nota e sai a correr para pagar a sua dívida ao “criador de gado”. 

A seguir, este sai a correr para pagar o que deve ao “moleiro, produtor de alimentos para os animais”. 

O dono do moinho pega na nota e vai a correr para liquidar a sua dívida à “Maria, prostituta de rua”, porque fazia tempo que não lhe pagava (em tempos de crise até ela oferecia os seus serviços a crédito). 

A prostituta, com a nota na mão, vai a correr para o hotel, onde havia levado os seus clientes nas últimas vezes, e como não tinha pago, entrega a nota “ao dono do hotel” para liquidar a sua dívida. 

Nesse momento, desce o milionário que acabara de observar o quarto, e diz que não lhe agradou. Pega na nota de novo e vai embora. Ninguém ganhou um cêntimo, mas agora toda a cidade vive sem dívidas e olha para o futuro com confiança! 

Moral da história: 

Se o dinheiro circular na economia local, acaba-se a crise. 

Consumamos mais nos pequenos comércios e mercados. 

- Deixa-te de banalidades!

- Consome o que os teus amigos e o teu país produz!

- Se o teu amigo tem uma microempresa, compra-lhe!

- Se o teu amigo vende roupa, compra-lhe!

- Se o teu amigo vende sapatos, compra-lhe!

- Se o teu amigo vende pão e afins, compra-lhe!

- Se a tua amiga faz unhas, vai e leva a tua mãe!

- Se o teu amigo é escritor, compra-lhe um livro!

- Se o meu amigo fosse dono de um restaurante... Que crês? Eu comeria lá!

- Se um amigo meu tivesse um bar, lá estaria!

- Se um amigo meu tivesse uma loja, iria lá comprar! 

Na próxima vez que entrares numa grande pastelaria, recorda-te do teu amigo, irmão, prima, tio que vende empadas, pastéis, bolos e que são deliciosos. 

Ao final do dia, a maior parte do dinheiro é apanhado pelas grandes empresas comerciais. Que pensas tu? Mas quando compras de um empreendedor, de uma pequena e média empresa e dos teus amigos, ajudas todos eles, e todos ganham e apoias a nossa economia. 

Apoiemos o empreendimento…

Apoiemos o consumo local...

Apoiemos a produção nacional... 

(Autor desconhecido)