sábado, 27 de maio de 2023

Lixo

 Luís Fernando Veríssimo

Encontram-se na área de serviço. Cada um com seu pacote de lixo. É a primeira vez que se falam.

− Bom dia...

− Bom dia.

− A senhora é do 610.

− E o senhor do 612.

− É.

− Eu ainda não lhe conhecia pessoalmente...

− Pois é...

− Desculpe a minha indiscrição, mas tenho visto o seu lixo...

− O meu quê?

− O seu lixo.

− Ah...

− Reparei que nunca é muito. Sua família deve ser pequena...

− Na verdade sou só eu.

− Mmmm. Notei também que o senhor usa muito comida em lata.

− É que eu tenho que fazer minha própria comida. E como não sei cozinhar...

− Entendo.

− A senhora também...

− Me chame de você.

− Você também perdoe a minha indiscrição, mas tenho visto alguns restos de comida em seu lixo. Champignons, coisas assim...

− É que eu gosto muito de cozinhar. Fazer pratos diferentes. Mas como moro sozinha, às vezes sobra...

− A senhora... Você não tem família?

− Tenho, mas não aqui.

− No Espírito Santo.

− Como é que você sabe?

− Vejo uns envelopes no seu lixo. Do Espírito Santo.

− É. Mamãe escreve todas as semanas.

− Ela é professora?

− Isso é incrível! Como foi que você adivinhou?

− Pela letra no envelope. Achei que era letra de professora.

− O senhor não recebe muitas cartas. A julgar pelo seu lixo.

− Pois é...

− No outro dia tinha um envelope de telegrama amassado.

− É.

− Más notícias?

− Meu pai. Morreu.

− Sinto muito.

− Ele já estava bem velhinho. Lá no Sul. Há tempos não nos víamos.

− Foi por isso que você recomeçou a fumar?

− Como é que você sabe?

− De um dia para o outro começaram a aparecer carteiras de cigarro amassadas no seu lixo.

− É verdade. Mas consegui parar outra vez.

− Eu, graças a Deus, nunca fumei.

− Eu sei. Mas tenho visto uns vidrinhos de comprimido no seu lixo...

− Tranquilizantes. Foi uma fase. Já passou.

− Você brigou com o namorado, certo?

− Isso você também descobriu no lixo?

− Primeiro o buquê de flores, com o cartãozinho, jogado fora. Depois, muito lenço de papel.

− É, chorei bastante, mas já passou.

− Mas hoje ainda tem uns lencinhos...

− É que eu estou com um pouco de coriza.

− Ah.

− Vejo muita revista de palavras cruzadas no seu lixo.

− É. Sim. Bem. Eu fico muito em casa. Não saio muito. Sabe como é.

− Namorada?

− Não.

− Mas há uns dias tinha uma fotografia de mulher no seu lixo. Até bonitinha.

− Eu estava limpando umas gavetas. Coisa antiga.

− Você não rasgou a fotografia. Isso significa que, no fundo, você quer que ela volte.

− Você já está analisando o meu lixo!

− Não posso negar que o seu lixo me interessou.

− Engraçado. Quando examinei o seu lixo, decidi que gostaria de conhecê-la. Acho que foi a poesia.

− Não! Você viu meus poemas?

− Vi e gostei muito.

− Mas são muito ruins!

− Se você achasse eles ruins mesmo, teria rasgado. Eles só estavam dobrados.

− Se eu soubesse que você ia ler...

− Só não fiquei com eles porque, afinal, estaria roubando. Se bem que, não sei: o lixo da pessoa ainda é propriedade dela?

− Acho que não. Lixo é domínio público.

− Você tem razão. Através do lixo, o particular se torna público. O que sobra da nossa vida privada se integra com a sobra dos outros. O lixo é comunitário. É a nossa parte mais social. Será isso?

− Bom, aí você já está indo fundo demais no lixo. Acho que...

− Ontem, no seu lixo...

− O quê?

− Me enganei, ou eram cascas de camarão?

− Acertou. Comprei uns camarões graúdos e descasquei.

− Eu adoro camarão.

− Descasquei, mas ainda não comi. Quem sabe a gente pode...

− Jantar juntos?

− É.

− Não quero dar trabalho.

− Trabalho nenhum.

− Vai sujar a sua cozinha.

− Nada. Num instante se limpa tudo e põe os restos fora.

− No seu lixo ou no meu? 

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Do livro “O Analista de Bagé”. L&PM Editora, 1981

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