quarta-feira, 31 de maio de 2023

Bola Mágica

 Marques Rebelo

1914. Papai não dizia jogo, dizia match. 

– Você que ir ao match, meu filho? – perguntava depois do reforçado almoço de domingo, quando havia jogo no campo da Rua Campos Sales*, defronte à praça com um rinque de patinação, que de noite fervia de tombos, malabarismos e enamorados. 

– Desnecessária pergunta. Fora o anseio da semana: 

– Quero sim, papai! 

– Então vá se aprontar. 

– Já vou! 

Enfatiotava-me às carreiras com a roupa à marinheira azul, munia-me da bengalinha, dava-lhe a mão e íamos. E à aproximação do campo, ouvindo trilares de apito, ecos de chutes e gritos de estímulo, sentia um espremer de alma, uma ânsia, uma angústia, uma sufocação, que só aliviava quando ultrapassava o portão de entrada – meu pai era amigo do diretor e trocavam palavras animadoras – e meus olhos podiam abarcar a plena extensão do gramado, pintado de suadas, ofegantes camisas vermelhas, com o morro ainda coberto de mato ao fundo. 

Cristininha era muito pequena, só queria colo, dava trabalho. Emanuel não gostava. Madalena, um domingo por outro, também nos acompanhava, fatalmente se tinha vestido novo para exibir. Mamãe, a única vez que fora, apanhara tal enxaqueca, que jurou nunca mais por os pés num campo de futebol. Juramento que cumpriu com toda a fortaleza. 

A fama dos rubros era respeitada. Bandeiras tremulavam. As arquibancadas de madeira tinham um ar de galinheiro pomposo, oscilantes aos nossos pés. 

– Belfort! Belfort! 

E Belfort, grande cabeleira, grandes bigodes, se multiplicava, inteligente, incansável, heróico, defendendo a área, dominando os adversários, arrebatando-lhes a pelota, impulsionando contra-ofensivas, animando os companheiros com gestos e com gritos, estabelecendo o pânico e a derrota diante da meta inimiga. 

No intervalo do prélio, os jogadores, de compridos calções, tomavam cerveja, fumavam, vinham conversar com os amigos e familiares no meio da reduzida mas entusiástica assistência com muitas calças brancas e chapéus de palha. 

A bola era mágica! Subia como balão no ar translúcido, caía com um batido surdo e emocionante no verde marcial do gramado. 

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(Do livro “O Trapicheiro”, in Seleta, Livraria José Olympio, 1974)

 

* Campo da Rua Campos Sales foi campo de futebol do América Footbal Club, no Rio de Janeiro, fundado em 18 de setembro de 1904. Cores: vermelho e branco.

 

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