Foto: Diário de
Notícias
Cada um de nós nasce com um
artista lá dentro:
Um poeta, um escultor, um aventureiro,
Um cientista, um pintor, um arqueólogo,
Um estilista, um astronauta, um cantor,
Um marinheiro.
E o sonho e a distância, e o
tempo, e a saudade
Deram-nos vida, amor, problemas, mentiras e verdade.
E damos por nós mesmos descobrindo que agora,
Agora, se calhar, já é um pouco tarde.
E nas memórias velhas e
secretas da menina,
Mora sempre aquele sonho de ser:
Bailarina, atriz, modelo, princesa, muito rica, eu sei lá,
Mas os anos correram num assombro,
E a vida foi injusta em qualquer jeito,
Para a chama indelével que ainda arde.
E os filhos, os filhos são bonitos no seu peito,
Mas agora é que, pra certas coisas,
Agora, já é tarde.
E nos papéis antigos que
rasgamos
Há sempre meia dúzia que ainda guardamos,
São os planos da conquista do Polo Norte,
Que fizemos um dia com sete anos, numa tarde,
E que estiveram perdidos tantos anos,
E agora, se calhar, maldita sorte!
Não é que por desnorte, acaso
ou esquecimento,
Alguém já descobriu o Pólo Norte,
E agora pronto, e agora pronto, agora já é tarde.
Há sempre, sempre, nas
gavetas, escritores secretos,
Cientistas e doutores,
Desenhos e projetos construtores feitos em meninos
De tudo o que sonhamos fazer quando fosse a nossa vez:
Cientistas em busca de Plutão, arqueólogos no Egito,
Viajantes sempre sem destino,
Futebolistas de sucesso, caramba! No Inter de Milão.
Mas o curso da vida foi
traidor,
E o curso da vida foi covarde,
E o ciclo do tempo completou-se, e agora pronto,
Agora, agora já é tarde, agora é tarde.
Emprego, casa, filhos muito
queridos,
Algum sonhar, um pouco com amigos.
Às vezes, sair, beber uns copos pra esquecer ou pra lembrar,
E fazer ainda, é claro, um certo alarde.
Talvez para esconder ou para abafar,
Como é já tão demasiado e impiedosamente tarde.
Ah! mas não, não, não pode
ser assim,
Nunca é tarde para renovar, nunca é tarde pra se sonhar,
Nunca é tarde.
Amanhã, partimos todos para
Istambul,
Vladivostock, Alasca, Oslo, Dakar.
Vamos à selva, eu vou a Timor abraçar aquela gente,
E às montras de Amsterdã,
Que eu, afinal, também não sou diferente.
E chegando a Tóquio, companheiros,
Chegando a Tóquio, são horas de jantar, hein.
É que ainda temos que voltar por Bombaim,
Passando por Macau e Calcutá,
Que eu encontro Portugal em todo o lado.
E mesmo fugindo, nunca saio de mim.
E se esse marinheiro, galã,
aventureiro, esse já não há,
Pois que nos cumpramos ao menos agora até o fim,
No que fazemos, na diferença do que formos e dissermos,
E perguntando, criando rebeldias,
Conferindo aquilo que acreditamos,
E o que ainda formos capazes de sonhar.
E se aquilo que nos dão todos
os dias
Não for coisa que se cheire ou nos deslumbre,
Que pelo menos nunca abdiquemos de pensar:
Com direito à ironia, ao sonho, ao ser diferente,
E será talvez uma forma
inteligente de, afinal, nunca!
Nunca ser tarde demais para viver!
Nunca ser tarde demais para perceber!
Nunca ser tarde demais para exigir!
E nunca ser tarde demais para acordar!
P.S. Escute, na internet,
esse belo poema declamado pelo autor: Pedro Barroso.*
*1950 – 2020.