domingo, 30 de junho de 2019

Oração dos animais



Meu São Francisco de Assis,
Protetor dos animais,
Olhai por nós que rogamos
Vossa bênção e muita paz.

Olhai os cães abandonados
Sofrendo agruras nas ruas
E os que puxam carroças
Açoitados nas ancas nuas.

Pelos pobres passarinhos
Que não podem mais voar,
Presos em rudes gaiolas
Só porque sabem cantar.

E as cobaias de laboratório
Que sofrem dores atrozes
Em experiências terríveis
Que lhes impõem seus algozes.

Pelos que são abatidos
Em matadouros insanos
Para servir de alimento
Aos que se dizem “humanos”.

Olhai aos que são perseguidos
Sem piedade nas florestas,
Só por causa da ambição
Dessas caçadas funestas.

Pelos animais de circo
Que não têm mais liberdade,
Presos em jaulas minúsculas
À mercê de crueldade.

Olhai os bois de rodeio
E os sangrados nas touradas
Barbárie e crimes impostos
Por pessoas desalmadas.

Pelos que têm de lutar
Até a morte nas rinhas,
Quando o Homem faz apostas
Em transações tão mesquinhas.

Olhai para os que são mortos
Nos macabros rituais
Em altares religiosos
Que usam sangue de animais.

Meu bondoso protetor,
Oro a vós por meus irmãos
Para que sua dor e tristeza
Não sejam sofrimentos vãos

(Ivana Maria França de Negri)



Grandes frases de nossa Literatura



“Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras, de recente data. O senhor mesmo sabe.”

Guimarães Rosa

“Há pessoas que nos falam e nem as escutamos, há pessoas que nos ferem e nem cicatrizes deixam, mas há pessoas que simplesmente aparecem em nossas vidas e nos marcam para sempre.”

Cecília Meireles

 “Nós estamos condicionados a pensar que nossas vidas giram em torno apenas de grandes momentos. Todavia, os grandes momentos frequentemente nos pegam desprevenidos, e ficam maravilhosamente guardados em recantos que os outros podem considerar sem importância. E da mesma forma ocorrem outros momentos... as pessoas podem não lembrar exatamente o que você fez, ou até mesmo todas as palavras que você disse... mas elas sempre lembrarão de como você as fez sentir...”

Mario Lago

“Na minha memória - tão congestionada - e no meu coração - tão cheio de marcas e poços - você ocupa um dos lugares mais bonitos.”

Caio Fernando Abreu

“Façamos das antigas memórias
As grandes armas da esperança
E tiremos das doces lembranças
A matéria-prima para novas histórias!”

Lucas Ferreira

Soneto oco

Neste papel levanta-se um soneto,
de lembranças antigas sustentado,
pássaro de museu, bicho empalhado,
madeira apodrecida de coreto.

De tempo e tempo e tempo alimentado,
sendo em fraco metal, agora é preto.
E talvez seja apenas um soneto
de si mesmo nascido e organizado.

Mas ninguém o verá? Ninguém. Nem eu,
pois não sei como foi arquitetado
e nem me lembro quando apareceu.

Lembranças são lembranças, mesmo pobres,
olha, pois, este jogo de exilado
e vê se entre as lembranças te descobres.

Carlos Pena Filho

“As alegrias, risadas, podem até serem passageiras, mas as marcas que elas deixam, podem durar a vida inteira.”

Sarah Chen

“Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma. Só em Deus – ou fora do mundo.
As almas são incomunicáveis.
Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.
Porque os corpos se entendem, mas as almas não.”

Manoel Bandeira

“Eu, agora − que desfecho!
Já nem penso mais em ti...
Mas será que nunca deixo
De lembrar que te esqueci?”

Mário Quintana

“Quantas vezes a gente, em busca da ventura,
Procede tal e qual o avozinho infeliz:
Em vão, por toda parte, os óculos procura
Tendo-os na ponta do nariz!”

Mário Quintana

“Deus, para a felicidade do homem, inventou a fé e o amor. O Diabo, invejoso, fez o homem confundir fé com religião e amor com casamento.”

Machado de Assis

“O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem.”

João Guimarães Rosa

“Basta-me um pequeno gesto,
feito de longe e de leve,
para que venhas comigo
e eu para sempre te leve...”

Cecília Meireles

“O amor é grande e cabe nesta janela sobre o mar. O mar é grande e cabe na cama e no colchão de amar. O amor é grande e cabe no breve espaço de beijar.”

Carlos Drummond de Andrade


Uma aposta

Artur Azevedo


Se o Simplício Gomes não fosse um rapaz do nosso tempo, se não usasse calças brancas, paletó de alpaca, chapéu de palha e guarda-chuva, daria ideia de um desses quebra-lanças que só se encontram nos romances de cavalaria. De outro qualquer diríamos: “Ele gostava da Dudu”; tratando-se, porém, do Simplício Gomes, empregaremos esta expressão menos familiar: “Ele amava Edviges.”

O seu amor tinha, realmente, alguma coisa de puro e de ideal, que não se compadecia com os costumes de hoje.

Começava por ser discreto; Dudu adivinhou, ou antes, percebeu que era amada, mas ele nunca lho disse, nunca se atreveu a dizer-lhe, não por timidez ou respeito, mas simplesmente porque não tinha confiança no seu merecimento.

Estava bem empregado, poderia casar-se e viver modestamente em família, mas era tão feio, tão pequenino, tão insignificante e ela tão linda e tão esbelta, que o casamento lhe parecia desproporcionado.

Ele não se sentia digno dela, não acreditava que a pudesse fazer feliz, e isso o desgostava profundamente. Ela, por seu lado, não concorria para que a situação se modificasse: fingia ignorar que ele a amava, e atribuía toda aquela solicitude a um afeto desinteressado.

Dudu vivia com a mãe, uma pobre viúva sem outro recurso que não fosse o do meio soldo e montepio deixados pelo marido, brioso oficial do Exército que viveu sempre desprotegido, porque não sabia lisonjear nem pedir; mas o Simplício Gomes, sem fumaças de protetor, e dando a esmola com ares de quem a recebia, achava meios e modos de fazer com que naquela casa faltasse apenas o supérfluo.

Como era parente, embora afastado, das duas senhoras, estas consideravam os seus favores simples atenções de família.

O caso é que o Simplício Gomes parecia adivinhar os menores desejos de Dudu e nessas ocasiões recorria ao ardil de uma aposta:

– Aposto que hoje chove!

– Que ideia! O dia está bonito!

– Pois sim, mas o calor é excessivo: temos água com toda certeza!

– Não temos!

– Façamos uma aposta!

– Valeu! Se chover eu perco uma caixa de charutos.

– E eu aquela blusa que você viu na vitrina da Notre Dame e cobiçou tanto.

– Quem lhe disse que cobicei?

– Ora, esses olhos não me enganam…

No dia seguinte Dudu recebia a blusa.

 A velha costumava dizer com muita ingenuidade:

– Você faz mal em apostar, Simplício! E muito caipora, perde sempre, e então, em se tratando de mudança de tempo, é uma lástima!

Conquanto não se atrevesse a falar em casamento, o pobre rapaz sofria, oprimido pela ideia de que quando menos se pensasse, Dudu teria um namorado… um noivo… um marido e efetivamente, não se passou muito tempo que os seus receios não se realizassem.

Dudu impressionou-se por um cavalheiro muito bem trajado, que começou a rondar-lhe a porta quase todos os dias, cumprimentando-a, depois lhe sorrindo, e finalmente escrevendo-lhe graças à cumplicidade de um molecote da casa.

Depois de receber três cartas, Dudu contestou, convenceu-se de que as intenções do namorado eram as melhores e mostrou a correspondência à mãe, que imediatamente consultou o Simplício Gomes sem saber o desgosto que lhe causava. Este, que já havia notado as idas e vindas do transeunte suspeito, disfarçou o mais que pôde, os seus sentimentos, limitando-se a dizer que Dudu não deveria casar-se com aquele homem sem ter primeiramente certeza de que ele a amava deveras.

A velha, com toda a sua simplicidade, pediu-lhe que se informasse da idoneidade do pretendente, e o mísero logo se transformou de quebra-lanças em quebra-esquinas.

Foram desanimadoras (para ele) as informações que obteve: o rival chamava-se Bandeira, era de boa família, de bons costumes, funcionário público de certa categoria, estimado, e tinha alguma coisa. O seu único defeito era ser um pouco genioso.

O Simplício, que não tinha o altruísmo heroico de Cirano de Bergerac, não avolumou as qualidades do outro, mas foi leal: não as diminuiu. Em suma: o Bandeira pediu a mão de Dudu; e começou a frequentar a casa.

O coitado não articulou uma queixa, mas começou desde logo a emagrecer a olhos vistos; perdeu o apetite, ficou macambúzio, fúnebre… Dudu, que tudo compreendeu, teve muita pena, teve quase remorsos; mas a velha nem mesmo assim desconfiou que a filha fosse adorada pelo infeliz parente.

 Entretanto, o Simplício Gomes começou a ser assíduo em casa de Dudu; o seu desejo oculto era não deixá-la sozinha com o tal Bandeira enquanto não se casassem.

O noivo tinha, efetivamente, boas qualidades, mas era não só genioso, mas de uma arrogância, de uma empáfia, de um autoritarismo que começaram a inquietar Dudu.

Uma bela tarde em que se achavam ambos sentados no canapé, e o Simplício Gomes, afastado, num canto da sala, folheava um álbum de retratos, o Bandeira levantou-se dizendo:

– Vou-me embora; tenho ainda que dar umas voltas antes da noite.

– Ora, ainda é cedo; fique mais um instantinho, replicou Dudu, sem se levantar do canapé.

– Já lhe disse que tenho que fazer! Peço-lhe que vá desde já se habituando a não contrariar as minhas vontades! Olhe que depois de casado, hei de sair quantas vezes quiser sem dar satisfações a ninguém!

– Bom; não precisa zangar-se…

– Não me zango, mas contrario-me! Não me escravizei; quero casar-me com a senhora, mas não perder a liberdade!

– Faz bem. Adeus. Até quando?

– Até amanhã ou depois.

O Bandeira apertou a mão de Dudu, despediu-se com um gesto do Simplício Gomes, e saiu batendo passos enérgicos, de dono de casa.

Dudu ficou sentada no canapé, olhando para o chão.

O Simplício Gomes aproximou-se de mansinho, e sentou-se ao seu lado.

Ficaram dez minutos sem dizer nada um ao outro.

Afinal Dudu rompeu o silêncio. Olhou para o céu iluminado por um crepúsculo esplêndido, e murmurou:

– Vamos ter chuva.

– Não diga isso, Dudu: o tempo está seguro!

– Apostemos!

– Pois apostemos! Eu perco uma coisa bonita para o seu enxoval de noiva. E você?

– Eu… perco-me a mim mesma, porque quero ser tua mulher!

E Dudu caiu, chorando, nos braços de Simplício Gomes.


(O Século, 9 de julho de 1907, em “Histórias Brejeiras”, 1962.)

O Sermão de Nasrudin



Khawajah Nasr Al-Din

No século XIV, o Mullá Nasrudin escreveu histórias em que ele mesmo era personagem. São histórias que atravessaram fronteiras desde sua época, enraizando-se em várias culturas. Elas compõem um imenso conjunto que integra a chamada Tradição Sufi, ou sufismo, seita religiosa ou de sabedoria de vida, de antiga tradição persa em que se espalha pelo mundo até hoje.

Certo dia, os moradores de um pequeno vilarejo quiseram pregar uma peça no Mullá Nasrudin. Na época ele já era considerado uma espécie meio indefinível de homem santo, e então, para testá-lo, resolveram convidá-lo para fazer um sermão na mesquita. Nasrudin concordou.

Chegado o tal dia, Nasrudin subiu ao púlpito e falou:

− Ó, fiéis! Vocês sabem sobre o que eu vou falar para vocês?

− Não, não sabemos − responderam eles, em coro.

Já que não o sabem, não poderei vos falar nada. Gente ignorante, isso é o que vocês todos são. Assim não é possível começar o que quer que seja − disse o Mullá, profundamente indignado por aquele povo ignorante fazê-lo perder seu tempo.

Para surpresa geral, Nasrudin desceu do púlpito e foi para casa.

Dias depois, um pouco envergonhados, seguiram em comissão de fiéis para, mais uma vez, pedir a Nasrudin fazer um sermão na Sexta-feira seguinte, dia de oração.

Nasrudin subiu ao púlpito e começou a pregação com a mesma pergunta de antes.

Desta vez, a congregação respondeu numa única voz:

− Sim, Mullá, sabemos.

− Neste caso − disse Nasarudin −, não há porque vos prender aqui por mais tempo. Podem se retirar.

E voltou para casa.

Por fim, conseguiram persuadi-lo a realizar o sermão da Sexta-feira seguinte, que começou com a mesma pergunta de antes.

− Sabem ou não sabem?

A congregação, julgando-se preparada, respondeu:

− Alguns sabem e outros não.

− Excelente − disse Nasrudin −, já que é assim, que aqueles que sabem transmitam seus conhecimentos para aqueles que não sabem.

E foi para casa.

*****

Do livro:
 “Os 100 melhores Contos de Humor da Literatura Universal”,
de Flávio Moreira da Costa − organizador

Arborização na Baixada



Jogo no Estádio da Baixada – 1920 – com o novo pavilhão de madeira*

O Grêmio Foot-Ball Porto-Alegrense, campeão de futebol, desta capital, de 1911, adquiriu, há poucos meses, o terreno fronteiro à Liga dos Atiradores Alemães, a fim de instalar, ali, a sua sede. Entre outros melhoramentos que serão introduzidos, consta o levantamento de um grande pavilhão. O ground será todo cercado com plátanos, cuja plantação efetuar-se-á por estes poucos dias. O Dr. Montaury, intendente municipal, ofereceu ao Grêmio Foot-Ball 50 mudas daquela árvore. Em sessão realizada há dias, aquela agremiação resolveu dar a cada uma das árvores o nome de um dos seus associados, com a condição de cuidá-las. A iniciativa dessa corporação foi recebida com entusiasmo entre os seus sócios. Por ocasião da plantação dos plátanos, haverá uma festa.

N.R. - Assim, o Correio do Povo de 20 de agosto de 1911 noticiava o início da instalação do Estádio da Baixada, do Grêmio, num dos terrenos que hoje compõem o parque Moinhos de Vento.


Airton Pavilhão


Airton no Estádio Olímpico, sem a arquibancada superior

Aírton Ferreira da Silva é o famoso Pavilhão. Para muitos, o maior zagueiro da história do Rio Grande. Para outros, divide esta honraria com Dom Elias Figueroa. Aírton é um sujeito de bem com a vida. Se locomove com alguma dificuldade, mas sempre dá um jeito de chegar onde quer com ajuda dos amigos. Os grandes jogos do Olímpico assiste a todos. Vai de cadeira de rodas, mas vai. Mora em frente ao estádio do Grêmio. Viúvo, fica quase todo tempo em casa. Aírton nasceu em 31/10/34, na Capital. É pai de Aírton, Mauro, Ânderson (que faleceu com 8 anos) e Alceu. Começou no Força e Luz com 10 anos. Foi parar no Grêmio com 19. Diz que quis sair do Força e Luz quando tomou dez do Inter e decidiu que daria o troco quando fosse para o Grêmio. Foi. Em 13 campeonatos estaduais ganhou 12. Capitão do time por muitos anos, pelo orgulho de jogar no Grêmio perdeu muitas chances na carreira. Inclusive de jogar no Inter. Se arrepende. Disse que a proposta do Inter era quatro vezes maior. Foi para o Santos em 62, disputou um Torneio Rio-São Paulo e não quis ficar, pois só davam bola para Pelé. Se deprimiu e voltou. O maior técnico com quem trabalhou foi Osvaldo Rolla. No final de carreira, jogou no Cruzeiro e no São José. Por ajuda de Alceu Collares, trabalhou no projeto do governo de tirar crianças da rua e hoje está aposentado. O apelido Pavilhão surgiu quando saiu do Força e Luz para o Grêmio, trocado por 50 mil réis e mais um pavilhão.

Da coluna do Luiz Carlos Reche


* Airton Ferreira da Silva, baita zagueiro, foi trocado pelo pavilhão de madeira da foto acima, mais uma pequena quantidade de dinheiro. O dinheiro da venda do zagueiro, o Grêmio usou para a construção do seu novo estádio. A troca foi feita com o time do Força e Luz (time da CEEE). O tal pavilhão (o de madeira) estava atrás do ginásio da Brigada Militar, na Rua Alcides Cruz, cujo terreno já foi vendido ao grupo Zaffari. Eu, nos 50, assisti a muitos jogos no campo do Força e Luz, pois, para mim, era só atravessar o Arroio Dilúvio que estava lá. O Grêmio já estava jogando do seu novo campo de futebol, o Estádio Olímpico, inaugurado em 1954.

Nilo Moraes

sábado, 29 de junho de 2019

Vargas Netto

Um poeta regionalista gaúcho


Manuel do Nascimento Vargas Netto (São Borja, 30 de janeiro de 1903 − Rio de Janeiro, 1977 − carece de fontes − foi um poeta, jornalista e radialista brasileiro.

Formou-se em Direito. Exerceu o jornalismo em Porto Alegre e no Rio de Janeiro. Foi o poeta regionalista mais expressivo do Rio Grande do Sul. Deputado Federal e Procurador do Estado do Rio de Janeiro. Durante oito anos foi Vice-Presidente do Comitê Olímpico Brasileiro. Foi Presidente de Honra da Estância da Poesia Crioula e Membro Efetivo da Academia Rio-grandense de Letras. Foi considerado o Príncipe dos Poetas Tradicionalistas. Obras Principais: Tropilha Crioula – versos gauchescos. Joá – poemas. Gado Chucro – versos gauchescos. Tu – versos. General Vargas – resenha. Poemas Farrapos – álbum de poesias.

Oriundo da família Vargas: o pai Viriato Dornelles Vargas foi prefeito de São Borja de 1911 a 1915, o tio Getúlio Vargas foi presidente do Brasil entre 1930 e 1945 e 1951 a 1954, realizou os estudos primários em sua cidade natal, cursando o secundário no Ginásio Júlio de Castilhos, na capital do estado. Em 1927 bacharelou-se em ciências jurídicas e sociais pela Faculdade de Direito de Porto Alegre.

Farrapo


Esfarrapado senhor do seu desuno!
Nobre esbanjador da coragem!
Milionário dos impulsos generosos!
Pródigo do amor! Perdulário da fé!

Tua carne se esfarrapou como a tua roupa...
Teu sangue rolou como a água da chuva,
Empapando o coração de tua gleba
E fertilizando a liberdade no teu pago!
Mas a tua alma continuou inalterável,
clara e vibrante como uma adaga de prata,
no pulso firme da tua vontade!

Vibraste pela glória de ser livre,
pela ventura de ser forte, leal e bom...
Foste tão generoso para a vida de tua ideia
que nunca lhe regateaste a paz do teu rancho
nem a vida do teu corpo!...

E morreste, como Deus quis,
no grande leito do campo!
Teu coração deu o último latido
sobre o chão da tua querência...
Face a face com o mesmo céu,
que doirou as tuas vitórias
no velho ouro do sol,
e, depois, te amortalhou naquele veludo imortal
de uma noite profunda do pampa!

Adaga


Velha adaga de prata, alma de aço,
que autorizaste altaneria e desafio,
toste a continuação atrevida de algum braço...
Mas naquela mão firme
em que tu foste ameaça
nunca mais te agitarás!...

Eras a amiga fiel de horas amargas,
que nas cargas e entreveres te luzias,
a servidora sem descanso e sem fadiga
quando trazias o teu gume afiado
e a ponta como a cara do perigo!...

Terias servido ao bem como ao pecado?!...
Mas» como adivinhar adaga nua?!
Pulaste tantas vezes da bainha,
que esta afinal se perdeu de desprezada,
pela incerteza de servir-te ainda!...

O S do teu punho é afirmativo
− prata golpeada que já nem branqueja −
como a inicial de um Sempre ou de um Sim
conjugando o verbo Ser do teu destino
resolutivo e fatalista como um Seja!...

Carreteiro


Carreteiro é a paciência caminhante!
Jamais na vida soube o que era pressa!
Ao passito desceu pelo lançante...
Ao passito a subida ele começa...

Sempre ao passito, vai seguindo adiante...
A vida toda leva a viajem essa!
Sob o sol quente ou sob o frio cortante,
Segue assim, sempre assim, nunca se apressa.

Leva n'alma gemidos de carreta...
E é impassível, por mau ou por bondade,
Embora a desventura lhe acometa.

Nesse viajar sem fim, que ele não sente,
Lembra a viajem constante da saudade,
Carregando passado pra o presente.

*****


Retrato de Vargas Netto pintado por Cândido Portinari − 1941

Versos de Vargas Netto

Você pensa que é mentira,
Mas eu lhe digo que não,
Ouvindo falar nos pagos
Sinto dor no coração.

Diz que não chora o gaúcho,
Pois eu lhe garanto agora,
Fale dos pagos distantes
Vamos ver se ele não chora.

Quando me lembro, la pucha,
Da china que deixei lá,
Sinto um repucho por dentro
Que nem sei o que será.

É como um tirão “de atrás”,
Quando se pega a carreira,
Dum sovéu de três ramais
Atado numa tronqueira.

Não há gaúcho mais qüera
Que não conheça o tirão,
Porque essa história é tão velha
Que tem a idade do chão.



sexta-feira, 28 de junho de 2019

Uma lição inesquecível



Gabo por Fraga, em Zero Hora

“Aprendi para sempre a lição menos esquecível no Bar Los Almendros*, na noite em que o recém-chegado Álvaro e eu nos enrolamos numa discussão sobre Faulkner**. As únicas testemunhas à mesa eram Germán e Alfonso, e se mantiveram à margem num silêncio de mármore que chegou a extremos insuportáveis. Não recordo em que momento, empapado de raiva e de aguardente bruta, desafiei Álvaro a resolver a discussão a porradas. Nós dois iniciamos o impulso de nos levantar da mesa e irmos para a rua, quando a voz impassível de Germán Vargas nos freou com uma lição para sempre.

- Quem se levantar primeiro já perdeu.”

Trecho do livro “Viver para contar”, 
de Gabriel García Márquez, escritor colombiano.

(*)    Local de encontro entre escritores, artistas e jornalistas.
(**) É considerado um dos maiores escritores norte-americano do século XX. Recebeu o Prêmio Nobel de Literatura de 1949.


O que os maridos não devem fazer

Blanche Ebbutt


Este livro foi originalmente publicado em 1913, como um manual de conduta para homens e mulheres construírem um casamento harmonioso. Redescoberto quase 100 anos depois, ele causa surpresa ao se mostrar tão atual quanto naquela época.

Você não é um homem melhor nem pior do que imagina. Estou certa de que sabe lidar com as mulheres, mas – principalmente se está em seus primeiros anos de casado – ainda não aprendeu tudo o que precisa saber a respeito delas.

Por isso espero que, ao terminar de ler este livro, você se sinta agradecido por eu ter revelado tantas coisas que você só descobriria depois de muitas experiências. E essas experiências podem ser boas ou ruins, dependendo do tipo de relação que você tem com sua esposa.

Blanche Ebbutt

Não trate sua esposa como “meu docinho” por muito tempo. Uma mulher pode até gostar de ser um bibelô durante um certo período, mas a novidade logo perde a graça.

Não hesite em comentar quando ela estiver especialmente bonita. Sua opinião não terá nenhum efeito se não for verbalizada.

Não pense que não é mais necessário demonstrar seu amor porque “ela já deve saber disso”. A mulher gosta de ser beijada, paparicada e cortejada pelo marido mesmo quando já é avó.

Vez por outra, leve para casa um buquê de flores ou uma caixa de bombons. Sua esposa vai valorizar até um simples vaso de violetas, apenas por você ter pensado nela.

Mesmo que esteja com pressa, não saia de casa sem dar um beijo de despedida em sua esposa. Ela vai remoer essa omissão durante todo o dia.

Não é porque vocês se casaram por amor que a vida será um eterno mar de rosas. Vocês não são perfeitos e precisam aprender a não pisar no calo um do outro.

Não espere que sua esposa faça de tudo para alegrá-lo se você não colabora quando as coisas vão mal. Seja justo.

Não implique com sua mulher. Se ela queimou o bolo ou se esqueceu de pregar um botão, ela não quer ser lembrada disso a toda hora.

Não a mantenha numa redoma. Ela não é um objeto frágil – é uma mulher.

Não tente tirar todas as preocupações das costas de sua esposa. Você não vai conseguir resolver os problemas dela e os seus também.

Não proteja sua esposa de qualquer vento que sopre. Resguardando o corpo dela dessa maneira, vai acabar matando sua alma.

Não se esqueça de que você não é imortal. Que chances sua esposa terá se você morrer e ela não conhecer a realidade deste mundo cruel?

Sua esposa não substitui seus pés e suas mãos. Ela serve para outras coisas além de fazer favores a você. Mas se você não pedir tudo a ela, ela vai acabar fazendo por prazer.

Não seja condescendente. Você não é a única pessoa na casa que tem cérebro.

Não menospreze sua companheira na frente das visitas. Você pode achar divertido falar das pequenas manias dela, mas ela não vai perdoá-lo facilmente.

Não fique surpreso, aborrecido ou desapontado se, depois de passar anos tratando sua esposa como uma cabeça de vento, você conseguir transformá-la em uma e ela não puder lhe ser útil quando você realmente precisar de sua ajuda.

Não quebre as promessas que fizer à sua esposa. Se você garantiu a ela que estaria em casa às 19h, pense duas vezes antes de sair com um amigo às 18h30. Jamais se esqueça do aniversário dela. Ela pode não querer que outras pessoas saibam sua idade, mas certamente não quer que você a esqueça.

Não pense que só porque você não pode comprar um presente caro, é melhor não comprar nenhum. Mesmo o presente mais humilde vai ser apreciado se for escolhido com amor. Não fique de mau humor quando as coisas não saírem do jeito que você esperava. Se não conseguir evitar a irritação, explique isso a sua esposa. Depois, supere.

Não grite quando estiver com raiva. As crianças e os empregados não precisam ficar sabendo de tudo.

Não seja carrancudo. Cultive uma expressão agradável se a natureza não o abençoou com uma.

Tome cuidado para não se tornar egoísta. Isso acontece muito, já que as esposas geralmente estão dispostas a ceder. Observe seu comportamento e, se achar que está começando a se apropriar da cadeira mais confortável, do canto mais quente da cama ou do livro mais interessante, simplesmente elimine o hábito.

Não discuta com sua esposa. Assim, ela não poderá discutir com você. Palavras duras são ditas nos momentos de raiva.

Não recuse as investidas de sua esposa. Lembre-se de que esse é um gesto difícil para ela. Se você tiver um pouco de sensibilidade, poderá poupá-la do constrangimento tomando a iniciativa.

Nunca minta para sua esposa. Deve existir total confiança entre vocês. Se ela descobrir alguma mentira sua, não vai acreditar quando você estiver realmente dizendo a verdade.

Não fale com sua mulher como se ela fosse uma criança. Ela é tão inteligente quanto seus colegas de escritório. Converse com ela (explicando o que for necessário) sobre as mesmas coisas que conversaria com um homem. Você ficará surpreso com os comentários que ela pode fazer.

Editora Sextante

Blanche Ebbutt


“Não se permita adquirir o hábito de se vestir sem cuidado quando houver 'apenas' seu marido para vê-lo. Confie que não tem uso de vestidos de chá desbotados e cabelos mal vestidos, e abomina a visão de alfinetes de gravetos tanto quanto os outros homens. Afinal de contas, ele é um homem e, se sua esposa não se dá ao trabalho de encantá-lo, há muitas outras mulheres que o farão.”

Blanche Berry nasceu em 1866 Hyde, Cheshire, Reino Unido.

Em 1913 seus dois manuais de conselhos foram publicados.

Morreu em Staines, Middlesex, Reino Unido, com 79 anos, em 1946.

quinta-feira, 27 de junho de 2019

Faca do Gaúcho

Raul Annes Gonçalves


Sem exceção alguma todo gaúcho usa faca. Às vezes até duas. Uma pequena para picar o fumo e aparar a palha para o cigarro, outra grande para qualquer trabalho. Alguns, em vez de usar a faca grande, usam o facão ou adaga. Aqui, vamos nos referir como os gaúchos usam a faca, não entraremos em detalhes sobre os diferentes tipos de facas.

O gaúcho leva sua faca na cintura, atrás, entre o cinto e a bombacha, com o cabo voltado para a direita ou para a esquerda, se for canhoto. Se usar também uma pequena, é enfiada adiante ou metida de um lado. Quando um gaúcho crava um espinho na mão ou no pé, logo dá de mão na faca para tirá-lo. Se suas unhas estão sujas, limpa-as com a ponta da faca, e se estão crescidas, também é com a faca que as corta. Às vezes, a faca também é empregada como palito.

Recorrendo o campo, se encontra um animal morto e em estado de putrefação, tornando-se impossível tirar o couro, o campeiro procura aproveitar um pedaço, coureando a parte ainda firme, fio do lombo e costilhar. Crê o gaúcho que o couro meio ardido é mais forte para se fazer cordas. Nesse trabalho, sua faca passa a cortar partes do animal já em adiantado estado de decomposição, com forte mau cheiro, cheio de vermes, carne azulada em escorrimento de água, viscosa, proveniente da podridão dos intestinos. Terminada a coureada, o gaúcho limpa sua faca nos pastos ou no lombo de um cachorro e a põe na bainha. Lava as mãos na primeira água que encontrar, e assim, ele como a faca, ficam prontos para entrar em ação na primeira oportunidade que for preciso. Ao chegar na estância ao meio dia, se em vez de comida de panela tiver um assado no espeto ou nas trempes, à hora de cortar, o gaúcho puxa pela faca e corta no assado.

Quando aparece uma rês com um tumor, o gaúcho a examina. Se estiver um tanto mole no interior, sinal que deve ser lancetado, isto é, está maduro e é necessário dar saída ao pus. Neste caso o gaúcho procura entre os companheiros uma faca pontiaguda e bem afiada, e com ela dá um ligeiro pontaço por baixo da parte volumosa, quadrando antes o corpo para um lado a fim de não ser atingido no rosto ou na roupa pela matéria de cor amarelada e fedentina, que logo é expelida pelo orifício produzido pela faca. Feita a operação, o gaúcho limpa a faca nas gramas e a devolve ao dono. Este, meio desgostoso, por sua vez a limpa no cano da bota e a enfia na bainha. Na hora da comida, se houver fervido à mesa, o gaúcho saca da faca, pois na mesa só tem garfo e colher, e sem pestanejar começa a descamar o “puchero”, pedaço por pedaço com a ponta da faca e o dedo polegar, levando-os à boca tranquilamente.

Se ao carnear lhe toca sangrar, o gaúcho apoia a mão esquerda nas cruzes da rês e com agilidade e maestria, empunhando a faca com a direita, enfia-lhe o ferro até o cabo no sangrador, isto é, no peito. Ao retirar a faca, o sangue jorra aos borbulhões. O campeiro limpa a faca passando-a nos pastos ou na crina do cavalo, e a coloca na cintura, sem garbo algum pela perícia com a qual acertou bem a sangria. Mas, ufano de sua faca, exclama em tom de troça, “eta faca buena, me dá vontade de botar ela no bolicho para comprar de novo”.

A castração de terneiro e de cordeiros é feita só com a faca, sem cuidado algum. Porém, para castrar um cavalo, o gaúcho além de afiar com esmero a sua faca, a lava com água e sabão, como também a parte externa do animal que vai ser apevada. Parece que é só neste caso que o campeiro cuida do asseio de sua faca.

Contam de um gaúcho que usava uma bonita faca de cabo prateado e andou na revolução de 93. Uma ocasião prontificou-se para degolar uns inimigos prisioneiros conhecidos como bandidos e responsáveis pela matança de uns de seus companheiros de arma. Findou a revolução e tempos depois, em uma festa de casamento, este gaúcho notando que a dona da casa estava mal de faca para cortar os assados, sem escrúpulo algum, ofereceu-lhe sua bonita faca de cabo de prata, que foi aceita pela senhora. O gaúcho vendo com que agilidade e perícia sua faca, nas mãos da dona da casa, trinchava um leitão assado, não se conteve e entusiasmado gritou: “oigalê faca bem ensinada, também por estes mundos afora pelou muito... (os que estavam presentes e o conheciam olharam-se espantados, porém riram satisfeitos quando o atrevido gaúcho terminou sua frase dizendo)... couro para lonca!”

Antigamente era comum os gaúchos velhos dizerem para os jovens que ainda não usavam faca, por não lhes ser permitido devido a pouca idade: “homem sem faca é como mulher sem camisa”.

Naquele tempo, entre as mulheres, isso não era admitido. Andar desprovida desta peça de vestuário era humilhante, mesmo um vexame.

*****

Do livro “Mala de Garupa − Costumes Campeiros”
Martins Livreiro − Editor


quarta-feira, 26 de junho de 2019

A repressão ao samba



O samba corria solto em uma das esquinas da Rua Dona Vicência, no bairro de Oswaldo Cruz, na Zona Norte do Rio, quando o sargento Vésper chegou. De cara fechada, o policial encarou o grupo de rapazes que batucava.

Alô, seus vagabundos! Vou ali embaixo e quando voltar não quero mais ver essa pouca-vergonha aqui. Se ainda tiver samba, eu vou sentar o cacete! − sentenciou.

O episódio, ocorrido na década de 1940, contado por um dos sambistas reprimidos pelo sargento: Monarco, hoje com 86 anos, compositor portelense, autor de algumas das composições mais bonitas da música brasileira, conta: “Nós éramos discriminados. Vi muito sambista ser preso só porque tinha na mão um pandeiro”.

A música faz uma dura crítica a repressão da polícia do governo de Vargas contra os sambistas, que eram vistos como marginais e apanhavam sem motivos. A censura e a repressão são características de uma ditadura, o que era na época da música (por volta de 1940).

Delegado Chico Palha

Nilton Campolino e Tio Hélio,
composto em 1938.

Delegado Chico Palha,
Sem alma, sem coração,
Não quer samba nem curimba
Na sua jurisdição.

Ele não prendia,
Só batia. (bis)

Era um homem muito forte,
Com um gênio violento.
Acabava a festa a pau,
Ainda quebrava os instrumentos.

Ele não prendia,
Só batia. (bis)

Os malandros da Portela,
Da Serrinha e da Congonha,
Pra ele eram vagabundos
E as mulheres sem-vergonha.

Ele não prendia,
Só batia. (bis)

A curimba ganhou terreiro
O samba ganhou escola.
Ele, expulso da Polícia,
Vivia pedindo esmola.

Ele não prendia,
Só batia. (bis)




terça-feira, 25 de junho de 2019

Dias ruins...

Dia ruim 1


Um sujeito estava sentado numa mesa do fundo de um bar, sozinho e arrasado, com copo grande de chope na mão, quando chega um sujeito forte e alto, gritando que estava louco pra bater em alguém. O grandalhão para na sua frente, arranca-lhe o copo e toma todo o seu chope num gole só.

O pobre homem, que já estava meio tonto, de cabeça baixa, sacode-a e narra, chorando, ao provocador o seu dia de azar:

− Hoje, pela manhã, fui despedido do emprego, minha mulher me abandonou, me cortaram a luz e a água. Nervoso, saí à rua e bati com o meu carro, com perda total. E agora quando me preparava para tomar o veneno que coloquei no copo de chope, chega um idiota metido a machão que nem você e se suicida no meu lugar. É dose! Realmente, tive um dia muito ruim...

Dia ruim 2


Dois amigos conversavam, quando, depois da segunda, terceira, quarta caneca de chope, Carlos declarou:

- Sabe, Beto, descobri uns lances estranhos e acabei com tudo, quase deu morte. Tô na fase da divisão dos bens. Separação é fogo!

- Pô, cara, é fogo mesmo...

- Tô meio puto, mas agora vou organizar minha vida sozinho e de forma diferente.

- Mas, Carlos, sabe de uma coisa? Foi bem melhor mesmo. Tua mulher estava dando pra todo mundo e os caras que comeram disseram que ela é mais puta que a imperatriz Teodósia de Bizâncio, aquela que gostava de ser comida por três escravos núbios ao mesmo tempo.

- Porra, Beto! Eu me separei foi do meu sócio!

(Silêncio Total)...

Dia ruim 3


Executivo veterano, de terno, gravata, carregando sua pasta nas mãos, volta a pé para sua casa, meditando sobre a sua vida. Depois de perder o emprego, sua mulher o abandonou, seu dia está dando tudo errado, antes de dobrar uma esquina, ele pensa com seus botões:

− Me roubaram, pedi meu emprego, minha esposa me largou, o que pode me acontecer mais de ruim hoje?

Na esquina, com uma caixa de bombons nas mãos, está esperando por ele um colega gay da repartição, louco de amor pra dar...


O grande Alfredinho

O misterioso encanto que cerca a música do Bip-Bip

Depoimento de Chiquinho Genu, 30/07/2016


O Bip Bip foi fundado no dia 13 de dezembro de 1968, uma data importante para a história do Brasil, mesmo dia em que foi decretado o AI-5 (ato institucional que configurou os anos mais duros da ditatura militar no país). Curiosamente, porque, depois, o bar viraria um reduto feroz da esquerda.

No início, era um bar normal, vendia batidas, cachaça com alguma fruta, e o Alfredo Jacinto Melo (o Alfredinho), que é o dono atual, já vinha aqui como cliente naquela época. Vários anos depois, em 1984, o Bip-Bip passou para as mãos dele e aí tem algumas histórias: ele teria pago metade, ou uma parte do bar, em doses de uísque para o antigo dono, que vinha aqui beber e receber como pagamento. As más línguas dizem que o Alfredo comprou esse bar pra ter um lugar pra encontrar os amigos – eu acredito, porque o bar é bem isso até hoje.

Em 1988/89, uma pessoa interessantíssima, a Cristina Buarque de Holanda, irmã do Chico, veio morar com a mãe aqui no prédio da esquina e tornou-se amiga e frequentadora do Bip-Bip – a ponto de abrir o estabelecimento e receber os caminhões de cerveja.

Eu entro nessa história nessa época também, quando me tornei amigo do grande compositor Elton Medeiros – ele e o violinista que o acompanhava, Teo de Oliveira, me convidaram pra conhecer o bar ‘do Alfredinho e da Cristina’. Não tinha música no Bip-Bip até então, mas no dia que botei o pé aqui pela primeira vez disse: aqui é o meu lugar.

E aí a gente começou a tocar: “Cristina, conhece essa?” e tocava. E Cristina conhece tudo, é uma verdadeira enciclopédia musical. E começaram a vir os amigos do Elton e da Cristina – algumas celebridades: Walter Alfaiate, Miúcha, Wilson Moreira, Zé Ketti, grupo Dobrando a Esquina, Paulão Sete Cordas, Naná Vasconcelos. E aí a coisa foi encorpando, começou a ter variações: um dia era choro, outro era bossa nova, outro era samba. E assim ficou até hoje.

De uns anos pra cá, o Bip-Bip está em tudo que é guia turístico, folheto de viagem. Tem dia aqui que é uma ‘reunião da ONU’, gente de tudo quanto é lugar do mundo. Saem daqui maravilhados. A música nunca foi amplificada, nem canto, nem instrumento. A gente tenta dar o tom e manter a qualidade, mas, como você sabe, ninguém recebe pra tocar aqui. Às vezes vem um chato, que acha que toca, e é difícil administrar. Aqui não tocamos pagode.

O Bip-Bip é rigorosamente a mesma coisa desde que comecei a vir aqui. Se fosse capitalista, estaria mudado. As mudanças que aconteceram aqui foram forçadas por fatores externos. A gente fazia a roda de samba na calçada, mas a Prefeitura proibiu. Sem opção, tiramos um balcão que ocupava metade do bar, para alojar os músicos lá dentro. Um dia, um cliente pagou a reforma do piso e das paredes.

Qual o mistério dessa bar? É o Alfredinho. Ele é uma figura única, anticapital. Precisa viver, não pode dar cerveja – ele vende cerveja. Metade do que ganha ou mais, ele gasta dando cestas básicas.

Elton Medeiros mora aqui do lado, mas sofre com uma doença degenerativa da córnea e não sai mais de casa. Cristina vive em Paquetá. O Bip-Bip será tema do enredo do desfile da escola de samba Unidos de Santa Marta, no Carnaval 2017.

(Do Blog Rolé Carioca)


À direita, Alfredinho, atrás dele, Walter Alfaiate e Nilze Carvalho.
Foto da Folha de S.Paulo

Com música, amigos e frequentadores do bar se despedem de Alfredinho, do Bip Bip.

Enterro foi no cemitério São João Batista. Dono de reduto da boemia carioca morreu, aos 75 anos, no sábado  de carnaval de 2 de março de 2019.

O bloco de Alfredo Jacinto Melo, ou simplesmente Alfredinho do Bip Bip, atravessou o cemitério São João Batista, em Botafogo, ao som de grandes clássicos do samba e, como ele gostava, sem muita conversa pelo caminho, para não atrapalhar os músicos. Um erro geográfico (o local de sepultamento ficava à direita) levou o cortejo-folião a andar de costas: “seguimos à esquerda” conclamavam os amigos, em mais uma homenagem divertida ao carioca da gema, de coração socialista, amante da música e defensor dos oprimidos e da liberdade. O enterro foi às 16 horas, do dia 4 de março de 2019.


(Foto de Roberto Moreyra, em O Globo, 4 de março de 2019)

Alfredo Jacinto Melo tinha 75 anos e morreu em casa, enquanto dormia. Reconhecido pela sua militância em favor da arte popular, ele comandava o bar fundado no auge da ditadura militar e que se manteve como palco de resistência política até hoje.


Alfredinho do Bip Bip, em foto de Guito Moreyra


Alfredinho e Bete Carvalho, 
agora um encontro celestial

Famosos e anônimos, cariocas e turistas vêm e vão, e encontram Alfredinho sentado do lado direito da entrada, diante da mesa onde estão o caderno que registra o movimento, uma pilha de CDs e o telefone − fixo; ele não tem celular. O bar abre por volta de 20h e segue aberto até o fim da madrugada, mesmo sem clientes. “Fico aqui lendo, ouvindo música, aproveitando o sossego”, descreve. “Hoje, poucos lugares funcionam até tarde. Uma tristeza ver tudo fechado. O prefeito devia obrigar os bares a ficarem abertos até quatro da manhã. É a vocação histórica da cidade”, reivindica.

Alfredinho resiste em sua rotina entre o Bip e o apartamento da Souza Lima. Já recebeu propostas para abrir franquias de seu bar em São Paulo, Belo Horizonte, Niterói, Juiz de Fora. Todas recusadas. “E para explicar que não quero ficar rico?”, desabafa, num sorriso. “Quero me divertir. E ser anfitrião é muito bonito”, encerra, resumindo sua utopia real − e inestimável.

Publicado originalmente no livro “Guardiões da Alma Carioca”
(Editora Parideira Cultural)