terça-feira, 25 de junho de 2019

O grande Alfredinho

O misterioso encanto que cerca a música do Bip-Bip

Depoimento de Chiquinho Genu, 30/07/2016


O Bip Bip foi fundado no dia 13 de dezembro de 1968, uma data importante para a história do Brasil, mesmo dia em que foi decretado o AI-5 (ato institucional que configurou os anos mais duros da ditatura militar no país). Curiosamente, porque, depois, o bar viraria um reduto feroz da esquerda.

No início, era um bar normal, vendia batidas, cachaça com alguma fruta, e o Alfredo Jacinto Melo (o Alfredinho), que é o dono atual, já vinha aqui como cliente naquela época. Vários anos depois, em 1984, o Bip-Bip passou para as mãos dele e aí tem algumas histórias: ele teria pago metade, ou uma parte do bar, em doses de uísque para o antigo dono, que vinha aqui beber e receber como pagamento. As más línguas dizem que o Alfredo comprou esse bar pra ter um lugar pra encontrar os amigos – eu acredito, porque o bar é bem isso até hoje.

Em 1988/89, uma pessoa interessantíssima, a Cristina Buarque de Holanda, irmã do Chico, veio morar com a mãe aqui no prédio da esquina e tornou-se amiga e frequentadora do Bip-Bip – a ponto de abrir o estabelecimento e receber os caminhões de cerveja.

Eu entro nessa história nessa época também, quando me tornei amigo do grande compositor Elton Medeiros – ele e o violinista que o acompanhava, Teo de Oliveira, me convidaram pra conhecer o bar ‘do Alfredinho e da Cristina’. Não tinha música no Bip-Bip até então, mas no dia que botei o pé aqui pela primeira vez disse: aqui é o meu lugar.

E aí a gente começou a tocar: “Cristina, conhece essa?” e tocava. E Cristina conhece tudo, é uma verdadeira enciclopédia musical. E começaram a vir os amigos do Elton e da Cristina – algumas celebridades: Walter Alfaiate, Miúcha, Wilson Moreira, Zé Ketti, grupo Dobrando a Esquina, Paulão Sete Cordas, Naná Vasconcelos. E aí a coisa foi encorpando, começou a ter variações: um dia era choro, outro era bossa nova, outro era samba. E assim ficou até hoje.

De uns anos pra cá, o Bip-Bip está em tudo que é guia turístico, folheto de viagem. Tem dia aqui que é uma ‘reunião da ONU’, gente de tudo quanto é lugar do mundo. Saem daqui maravilhados. A música nunca foi amplificada, nem canto, nem instrumento. A gente tenta dar o tom e manter a qualidade, mas, como você sabe, ninguém recebe pra tocar aqui. Às vezes vem um chato, que acha que toca, e é difícil administrar. Aqui não tocamos pagode.

O Bip-Bip é rigorosamente a mesma coisa desde que comecei a vir aqui. Se fosse capitalista, estaria mudado. As mudanças que aconteceram aqui foram forçadas por fatores externos. A gente fazia a roda de samba na calçada, mas a Prefeitura proibiu. Sem opção, tiramos um balcão que ocupava metade do bar, para alojar os músicos lá dentro. Um dia, um cliente pagou a reforma do piso e das paredes.

Qual o mistério dessa bar? É o Alfredinho. Ele é uma figura única, anticapital. Precisa viver, não pode dar cerveja – ele vende cerveja. Metade do que ganha ou mais, ele gasta dando cestas básicas.

Elton Medeiros mora aqui do lado, mas sofre com uma doença degenerativa da córnea e não sai mais de casa. Cristina vive em Paquetá. O Bip-Bip será tema do enredo do desfile da escola de samba Unidos de Santa Marta, no Carnaval 2017.

(Do Blog Rolé Carioca)


À direita, Alfredinho, atrás dele, Walter Alfaiate e Nilze Carvalho.
Foto da Folha de S.Paulo

Com música, amigos e frequentadores do bar se despedem de Alfredinho, do Bip Bip.

Enterro foi no cemitério São João Batista. Dono de reduto da boemia carioca morreu, aos 75 anos, no sábado  de carnaval de 2 de março de 2019.

O bloco de Alfredo Jacinto Melo, ou simplesmente Alfredinho do Bip Bip, atravessou o cemitério São João Batista, em Botafogo, ao som de grandes clássicos do samba e, como ele gostava, sem muita conversa pelo caminho, para não atrapalhar os músicos. Um erro geográfico (o local de sepultamento ficava à direita) levou o cortejo-folião a andar de costas: “seguimos à esquerda” conclamavam os amigos, em mais uma homenagem divertida ao carioca da gema, de coração socialista, amante da música e defensor dos oprimidos e da liberdade. O enterro foi às 16 horas, do dia 4 de março de 2019.


(Foto de Roberto Moreyra, em O Globo, 4 de março de 2019)

Alfredo Jacinto Melo tinha 75 anos e morreu em casa, enquanto dormia. Reconhecido pela sua militância em favor da arte popular, ele comandava o bar fundado no auge da ditadura militar e que se manteve como palco de resistência política até hoje.


Alfredinho do Bip Bip, em foto de Guito Moreyra


Alfredinho e Bete Carvalho, 
agora um encontro celestial

Famosos e anônimos, cariocas e turistas vêm e vão, e encontram Alfredinho sentado do lado direito da entrada, diante da mesa onde estão o caderno que registra o movimento, uma pilha de CDs e o telefone − fixo; ele não tem celular. O bar abre por volta de 20h e segue aberto até o fim da madrugada, mesmo sem clientes. “Fico aqui lendo, ouvindo música, aproveitando o sossego”, descreve. “Hoje, poucos lugares funcionam até tarde. Uma tristeza ver tudo fechado. O prefeito devia obrigar os bares a ficarem abertos até quatro da manhã. É a vocação histórica da cidade”, reivindica.

Alfredinho resiste em sua rotina entre o Bip e o apartamento da Souza Lima. Já recebeu propostas para abrir franquias de seu bar em São Paulo, Belo Horizonte, Niterói, Juiz de Fora. Todas recusadas. “E para explicar que não quero ficar rico?”, desabafa, num sorriso. “Quero me divertir. E ser anfitrião é muito bonito”, encerra, resumindo sua utopia real − e inestimável.

Publicado originalmente no livro “Guardiões da Alma Carioca”
(Editora Parideira Cultural)




Nenhum comentário:

Postar um comentário