O misterioso
encanto que cerca a música do Bip-Bip
Depoimento de
Chiquinho Genu, 30/07/2016
O Bip Bip foi fundado no dia 13 de dezembro de 1968, uma data importante para a história
do Brasil, mesmo dia em que foi decretado o AI-5 (ato institucional que
configurou os anos mais duros da ditatura militar no país). Curiosamente,
porque, depois, o bar viraria um reduto feroz da esquerda.
No início, era um bar normal,
vendia batidas, cachaça com alguma fruta, e o Alfredo Jacinto Melo (o
Alfredinho), que é o dono atual, já vinha aqui como cliente naquela época.
Vários anos depois, em 1984, o Bip-Bip passou para as mãos dele e aí tem
algumas histórias: ele teria pago metade, ou uma parte do bar, em doses de
uísque para o antigo dono, que vinha aqui beber e receber como pagamento. As
más línguas dizem que o Alfredo comprou esse bar pra ter um lugar pra encontrar
os amigos – eu acredito, porque o bar é bem isso até hoje.
Em 1988/89, uma pessoa
interessantíssima, a Cristina Buarque de Holanda, irmã do Chico, veio morar com
a mãe aqui no prédio da esquina e tornou-se amiga e frequentadora do Bip-Bip –
a ponto de abrir o estabelecimento e receber os caminhões de cerveja.
Eu entro nessa história nessa
época também, quando me tornei amigo do grande compositor Elton Medeiros – ele
e o violinista que o acompanhava, Teo de Oliveira, me convidaram pra conhecer o
bar ‘do Alfredinho e da Cristina’. Não tinha música no Bip-Bip até então, mas
no dia que botei o pé aqui pela primeira vez disse: aqui é o meu lugar.
E aí a gente começou a tocar:
“Cristina, conhece essa?” e tocava. E Cristina conhece tudo, é uma verdadeira
enciclopédia musical. E começaram a vir os amigos do Elton e da Cristina –
algumas celebridades: Walter Alfaiate, Miúcha, Wilson Moreira, Zé Ketti, grupo
Dobrando a Esquina, Paulão Sete Cordas, Naná Vasconcelos. E aí a coisa foi
encorpando, começou a ter variações: um dia era choro, outro era bossa nova,
outro era samba. E assim ficou até hoje.
De uns anos pra cá, o Bip-Bip
está em tudo que é guia turístico, folheto de viagem. Tem dia aqui que é uma
‘reunião da ONU’, gente de tudo quanto é lugar do mundo. Saem daqui
maravilhados. A música nunca foi amplificada, nem canto, nem instrumento. A
gente tenta dar o tom e manter a qualidade, mas, como você sabe, ninguém recebe
pra tocar aqui. Às vezes vem um chato, que acha que toca, e é difícil administrar.
Aqui não tocamos pagode.
O Bip-Bip é rigorosamente a mesma
coisa desde que comecei a vir aqui. Se fosse capitalista, estaria mudado. As
mudanças que aconteceram aqui foram forçadas por fatores externos. A gente
fazia a roda de samba na calçada, mas a Prefeitura proibiu. Sem opção, tiramos
um balcão que ocupava metade do bar, para alojar os músicos lá dentro. Um dia,
um cliente pagou a reforma do piso e das paredes.
Qual o mistério dessa bar? É o
Alfredinho. Ele é uma figura única, anticapital. Precisa viver, não pode dar
cerveja – ele vende cerveja. Metade do que ganha ou mais, ele gasta dando
cestas básicas.
Elton Medeiros mora aqui do lado,
mas sofre com uma doença degenerativa da córnea e não sai mais de casa.
Cristina vive em
Paquetá. O Bip-Bip será tema do enredo do desfile da escola
de samba Unidos de Santa Marta, no Carnaval 2017.
(Do Blog Rolé
Carioca)
À direita,
Alfredinho, atrás dele, Walter Alfaiate e Nilze Carvalho.
Foto da Folha de
S.Paulo
Com música, amigos e frequentadores do bar se despedem de
Alfredinho, do Bip Bip.
Enterro foi no cemitério São João
Batista. Dono de reduto da boemia carioca morreu, aos 75 anos, no sábado de carnaval de 2 de março de 2019.
O bloco de Alfredo Jacinto Melo,
ou simplesmente Alfredinho do Bip Bip, atravessou o cemitério São João Batista,
em Botafogo, ao som de grandes clássicos do samba e, como ele gostava, sem
muita conversa pelo caminho, para não atrapalhar os músicos. Um erro geográfico
(o local de sepultamento ficava à direita) levou o cortejo-folião a andar de
costas: “seguimos à esquerda” conclamavam os amigos, em mais uma homenagem
divertida ao carioca da gema, de coração socialista, amante da música e
defensor dos oprimidos e da liberdade. O enterro foi às 16 horas, do dia 4 de
março de 2019.
(Foto de Roberto
Moreyra, em O Globo ,
4 de março de 2019)
Alfredo Jacinto Melo tinha 75
anos e morreu em casa, enquanto dormia. Reconhecido pela sua militância em
favor da arte popular, ele comandava o bar fundado no auge da ditadura militar
e que se manteve como palco de resistência política até hoje.
Alfredinho do Bip
Bip, em foto de Guito Moreyra
Alfredinho e Bete
Carvalho,
agora um encontro celestial
Famosos e anônimos, cariocas e
turistas vêm e vão, e encontram Alfredinho sentado do lado direito da entrada,
diante da mesa onde estão o caderno que registra o movimento, uma pilha de CDs
e o telefone − fixo; ele não tem celular. O bar abre por volta de 20h e segue
aberto até o fim da madrugada, mesmo sem clientes. “Fico aqui lendo, ouvindo
música, aproveitando o sossego”, descreve. “Hoje, poucos lugares funcionam até
tarde. Uma tristeza ver tudo fechado. O prefeito devia obrigar os bares a
ficarem abertos até quatro da manhã. É a vocação histórica da cidade”,
reivindica.
Alfredinho resiste em sua rotina
entre o Bip e o apartamento da Souza Lima. Já recebeu propostas para abrir
franquias de seu bar em São
Paulo , Belo Horizonte, Niterói, Juiz de Fora. Todas
recusadas. “E para explicar que não quero ficar rico?”, desabafa, num sorriso.
“Quero me divertir. E ser anfitrião é muito bonito”, encerra, resumindo sua
utopia real − e inestimável.
Publicado
originalmente no livro “Guardiões da Alma Carioca”
(Editora Parideira
Cultural)
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