A Casa de Detenção é a maior escola
que um malandro tem. Na Detenção, um malandro fica malandro dos malandros.
Entrei com o pé frio no ano de 54,
perturbei bem pouco e quase me virando sozinho, dei a maior onda de azar da
vida deste aqui. Morreu-me Ivete; Bola Preta e Diabo Loiro caíram na Ilha das
Cobras e de lá não voltaram vivos; me sobraram apenas Valquíria e a rua. Por
demais policiada. A cidade limpa da gente.
Muita mulher foi deportada para os
interiores de São Paulo e até para outros Estados. As poucas que se aguentaram
aqui, escapadas dos ataques da rataria, vão ajeitando aos poucos, pela Rua
Guaianases, Gusmões, Vitória e por todas as beiradas das estações até a Avenida
São João e o Arouche, os buracos, os esquisitos e os muquinfos, que continuarão
a putaria. Mas os homens da polícia oprimem e batem − a eles não interessa que
as minas só tenham Deus e a rua.
Após 53, toda uma safra de malandros
caiu do cavalo, sendo apagada nos tiroteios ou guarda da na cadeia. Até aí, o
governo ganhou.
Os jornais fantasiaram, com
falsidade, a queda da gente, jogando gabos no governo. Só não reportaram o que
foi a matança na zona e não houve fotografias, nem pena, nem lero-leros para
aquelas misérias. Só não explicaram, os tontos, o porquê da nossa queda. Só
ninguém soube que caímos de quatro porque nos faltaram Bola Preta e Diabo
Loiro. Na crepe danada de me faltarem os dois, o trio ficou só em Paulinho duma
Perna Torta. E não pude, como queria e craniei, catar meus vagabundos para
tomar alguns pontos na ignorância... O governo ganhou. Mas ninguém explicou por
quê.
Sozinho, meu capital se esfacelando,
pulando de um hotel para outro, Valquíria não ganhando, a polícia no meu
calcanhar e ainda precisando de grana, Aniz Issara mandando pedir verba para
meus processos estourados, precisei trambicar.
Peguei um espeto atravessado num
ônibus Avenida, quando mandava o couro do bolso de um otário. Caí na Detenção.
Não faço conflito durante três anos.
Neles, aprendo atenção. Puxando esta cadeia, acho velhos camaradas das curriolas,
meu nome se impõe aqui no chiqueiro da Avenida Tiradentes. Sou juiz da cela do
terceiro pavilhão − o lugar especial dos perigosos. Aqui corre maconha, tóxico,
cachaça e carteado. Afino mais o meu joguinho: lá fora, em liberdade, há
trouxas; aqui é só malandro. Vivo mais acordado do que todos os carcereiros
juntos. Cobiço e tomo tudo dos outros e penso mais demorado no jeito de roubar.
E vou ficando malandro dos malandros.
Valquíria me faz visita. Exijo
dinheiro, maconha (que me traga na barra da saia) e esses novos tóxicos que vão
surgindo agora na praça − dexamil, pervitin, dexin... Ela me conta, aqui no
pátio da Detenção, que a situação dos viradores está arribando lá fora e até já
existem casas montadas e hotéis que dão entrada a casais sem documento. A
putaria vai se ajeitando. Laércio Arrudão e seus irmãos voltam a circular.
Valquíria se despede, esta hora da
tarde de domingo é uma tristeza besta, eu sinto falta do corpo dela. Distribuo
ordens. Que me traga o advogado.
Recebo o doutor Aniz Issara.
Boquejamos. Entendo as coisas aqui. E meu bom comportamento vira um provérbio.
O diretor me requisita, examina a papelada, me examina. Sou transferido para o
segundo pavilhão e dali para o primeiro. Valquíria levanta grana, passa cem
contos a Aniz e sou passado, todo o respeito a um bandido linha de frente, para
prisão especial.
Conheço os grandes Itiro Nakadaia,
Hamleto Meneghetti e Zião da Gameleira. Um, japonês e rei do estelionato e da
falsificação moedeira: a malandragem desse bicho é internacional. Meneghetti,
já velho e descorado, é ainda o cobra maior do assalto de joias − vinte e cinco
passagens só na Detenção. O terceiro, Zião da Gameleira, dono da macumba de São
Paulo, cinco tendas só no Jabaquara, levou na bicaria até um governador e
alguns padrecos; um baiano gordalhudo e acordado, que não se sabe se dirige
mais macumbeiros estando em liberdade ou guardado aqui na Detenção.
Eu me comporto muito
direitinhamente, como reza Aniz Issara. Mas Itiro Nakadaia recebe visita de
gente graúda, que é capitão de indústria e outros babados; Meneghetti faz
atrapalhadas, dorme os dias inteiros e pelas noites funciona como um bicho
elétrico, tentando a fuga duas vezes por semana, e finta os carcereiros: às
vezes, vão farejá-lo nas ruas da cidade e ele ainda está na cadeia.
Zião da Gameleira faz macumba,
despachando daqui mesmo. Até deputado e técnico de clube de futebol já vi
apontar por aqui. Facilito-lhe, de fininha, alguns macetes e tarecos. E não sei
por quê. Mas tenho confiança nesse Zião.
É um picardo. Esse Zião da Gameleira
me encabula. Uns olhos parados e pequenos de bicho sonolento, uma papada enorme
de quem come muito doce. E que calma... Nada afoba esse Zião, gordo e
sossegado. Um baiano que parece saber das novidades antes delas acontecerem.
Sou malandro dos malandros, mas vi poucos caras como Zião da Gameleira. Que já
vem de volta, enquanto a gente está indo. Boto o maior respeito nesse bicho macumbeiro.
Uns dois anos e meio aqui e me
apareceu Laércio Arrudão. Duas semanas depois, a grana correndo por mim lá
fora, ganhei um alvará de soltura.
Paulinho duma Perna Torta pisa o
meio-fio da Avenida Tiradentes e é fotografado. Mas não liga aos tontos da crônica
policial que estão à sua roda. Espera um táxi. Está com a grana, saiu de casa
com a cobiça raiada.
São Paulo ia ser meu.
*****
(Do livro
“Leão-de-chácara”, de João Antônio*,
no conto “Paulinho Perna Torta”)
no conto “Paulinho Perna Torta”)
*João Antônio Ferreira Filho (São Paulo, 27 de janeiro
de 1937
− Rio de Janeiro, 31 de outubro
de 1996)
foi um jornalista
e escritor
brasileiro,
criador do conto-reportagem no jornalismo brasileiro e contista que se tornou
conhecido por retratar os proletários e marginais
que habitam as periferias das grandes cidades.
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