quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

O pato

Jaime Silva & Neusa Teixeira


“O pato” fazia parte do repertório dos “Garotos da Lua” desde o final dos anos quarenta. Entretanto, jamais foi gravado pelo conjunto e, provavelmente, permaneceria inédito em disco se não tivesse caído nas graças de João Gilberto. Ex crooner do grupo, João apaixonara-se por este samba inusitado e fez questão de incluí-lo em seu segundo elepê.


João Gilberto, ao alto no centro, nos Garotos da Lua.

Jaime Silva (1921-1973) era um mulato alto, elegante e simpático”, segundo Ruy Castro no livro “Chega de saudade”. Alagoano de nascimento, mas morando no Rio desde menino, era sapateiro do serviço de intendência do exército, além de pandeirista e eventual compositor, nas horas vagas. Costumava namorar sua futura esposa, Maria, no ‘Campo de Santana’, Zona Centro do Rio de Janeiro, onde observando patos e marrecos se esbaldarem no laguinho local prometia, contemplativo: “ainda vou fazer uma música com esses patinhos…”.

E isso de fato logo aconteceu, quando ele compôs, com a parceira Neuza Teixeira, “Aves no samba”, título que modificaria para “O pato”, por sugestão de João Gilberto. Como “Lobo bobo”, “O pato” acabou caracterizando o lado galhofeiro da bossa nova, concentrado na letra que descreve a exótica cena de um quarteto vocal, formado pelo pato, o marreco, o ganso e o cisne ensaiando à beira da lagoa o “Tico-tico no fubá”.

Além da graciosa interpretação do João, contribuiu para o sucesso da canção o saboroso arranjo timbrístico de Tom Jobim, elaborado com o cantor nos dez dias de janeiro de 1960 passados no sítio em ‘Poço Fundo’ onde o disco foi concebido.

Destaca-se nesse arranjo um contraponto da flauta (respondendo às palavras “o Tico-tico no fubá”) e do clarone, com intervenções tão marcantes aos “quem-quem”, que suas frases terminaram por se incorporar à própria composição. O final em fade-out é um dos momentos mais deliciosos da bossa nova, com possibilidades de variações harmônicas e de improvisos que parecem não ter fim. Não foi assim à toa que Jobim escreveu na contracapa desse álbum: “E tudo foi feito num ambiente de paz e passarinho. P.S. — As crianças adoraram ‘O pato’.”

(A Canção no Tempo – Volume 2,
de Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello).

O pato incompreendido

Em meados dos anos 1950, o compositor Jaime Silva* apareceu com um samba muito esquisito. Chegou numa roda dos craques de Oswaldo Cruz e cantou assim:

O pato vinha cantando alegremente,
Quem, quem,
Quando um marreco sorridente pediu
Para entrar também no samba,
No samba, no samba.
O ganso gostou da dupla e fez também
Quem, quem, quem,
Olhou pro cisne e disse assim
Vem, vem,
Que o quarteto ficará bem,
Muito bom , muito bem.

Na beira da lagoa,
Foram ensaiar para começar O tico-tico no fubá.
A voz do pato era mesmo um desacato,
Jogo de cena com o ganso era mato,
Mas eu gostei do final
Quando caíram n’água
Ensaiando o vocal:
Qüem, qüem qüem, qüem
Qüem, qüem, qüem, qüem
Qüem, qüem, qüem, qüem
Qüem, qüem, qüem, qüem

Os velhos mestres da Portela se assustaram. Houve quem afirmasse, girando o indicador em torno da orelha:

− Compadre Jaime ficou biruta.

Mas o autor de O pato não desistiu, e teve sua perseverança premiada alguns anos depois, quando João Gilberto gravou a música com sucesso. Dizem que João levou semanas para aperfeiçoar o se “quem, quem”.

A partir daí, levado pelo êxito da primeira variedade, Jaime Silva compôs uma série de sambas O marreco, O ganso, O Cisne etc. Nunca mais deu certo.

(Do livro “Suíte gargalhada”, de Henrique Cazes)

*Composição de Jaime Silva e Neuza Teixeira


Trem em três poemas



Trem de Alagoas

Ascenso Ferreira

O sino bate,
o condutor apita o apito,
solta o trem de ferro um grito
põe-se logo a caminhar...
− Vou danado pra Catende,
vou danado pra Catende,
vou danado pra Catende
com vontade de chegar...
Mergulham mocambos
nos mangues molhados,
moleques, mulatos,
vêm vê-lo passar.
− Adeus!
− Adeus!
Mangueiras, coqueiros
cajueiros em flor
cajueiros com frutos
já bons de chupar...
− Adeus, morena do cabelo cacheado!
Mangabas maduras,
mamões maduros,
mamões amarelos,
que mostram molengos
as mamas macias
pra gente mamar...
−- Vou danado pra Catende,
vou danado pra Catende
vou danado pra Catende
com vontade de chegar...
Na boca da mata
há furnas incríveis
que em coisas terríveis
nos fazem pensar:
− Ali dorme o Pai-da-Mata
− Ali é a casa dos caiporas
− Vou danado pra Catende
vou danado pra Catende
vou danado pra Catende
com vontade de chegar...
Meu Deus! Já deixamos
a praia tão longe...
No entanto avistamos
bem perto outro mar...
Danou-se! Se move,
se arqueia, faz onda...
Que nada! É um partido
já bom de cortar
− Vou danado pra Catende
vou danado pra Catende
vou danado pra Catende
com vontade de chegar...
Cana caiana,
cana roxa,
cana fina
cada qual a mais bonita,
todas boas de chupar..
− Adeus, morena do cabelo cacheado!
− Ali dorme o Pai-da-Mata!
− Ali é a casa dos caiporas!
−Vou danado pra Catende
vou danado pra Catende
vou danado pra Catende
com vontade de chegar...

Trem de ferro

Manuel Bandeira

Café com pão
Café com pão
Café com pão

Virge Maria que foi isto maquinista?

Agora sim
Café com pão
Agora sim
Voa, fumaça
Corre, cerca
Ai seo foguista
Bota fogo
Na fornalha
Que eu preciso
Muita força
Muita força
Muita força

Oô...
Foge, bicho
Foge, povo
Passa poste
Passa pasto
Passa boi
Passa boiada
Passa galho
De ingazeira
Debruçada
No riacho
Que vontade
De cantar!

Oô...
Quando me prendero
No canaviá
Cada pé de cana
Era um oficiá
Oô...
Menina bonita
Do vestido verde
Me dá tua boca
Pra matá minha sede
Oô...
Vou mimbora vou mimbora
Não gosto daqui
Nasci no sertão
Sou de Ourucuri
Oô...

Vou depressa
Vou correndo
Vou na toda
Que só levo
Pouca gente
Pouca gente
Pouca gente...

Trem sujo da Leopoldina

Solano Trindade

Trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome

Piiiiii

estação de Caxias
de novo a dizer
de novo a correr
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome

Vigário Geral
Lucas
Cordovil
Brás de Pina
Penha Circular
Estação da Penha
Olaria
Ramos
Bom Sucesso
Carlos Chagas
Triagem, Mauá
trem da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome

tantas caras tristes
querendo chegar
em algum destino
em algum lugar

Trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome

Só nas estações
quando vai parando
lentamente começa a dizer
se tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer

Mas o freio de ar
todo autoritário
manda o trem calar
Psiuuuuuuuuuu

quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

Vamos enrolar a língua?

E tem que dizer rápido...


01 − O rato roeu a roupa do Rei de Roma; a rainha com raiva resolveu remendar.

02 − Um prato de trigo para três tigres tristes. Dois pratos de trigo para três tigres tristes. Três pratos de trigo para três tigres tristes.

03 − O original nunca se desoriginou e nem nunca se desoriginalizará.

04 − Qual é o doce que é mais doce que o doce de batata doce? Respondi que o doce que é mais doce que o doce de batata doce é o doce que é feito com o doce do doce de batata doce.

05 − Sabendo o que sei e sabendo o que sabes e o que não sabes e o que não sabemos, ambos saberemos se somos sábios, sabidos ou simplesmente saberemos se somos sabedores.

06 − O tempo perguntou pro tempo qual é o tempo que o tempo tem. O tempo respondeu pro tempo que não tem tempo pra dizer pro tempo que o tempo do tempo é o tempo que o tempo tem.

07 − Embaixo da pia tem um pinto que pia, quanto mais a pia pinga mais o pinto pia.

08 − A sábia não sabia que o sábio sabia que o sabiá sabia que o sábio não sabia que o sabiá não sabia que a sábia não sabia que o sabiá sabia assobiar.

09 − Num ninho de mafagafos, cinco mafagafinhos há! Quem os desmafagafizá-los, um bom desmafagafizador será.

10 − O desinquivincavacador das caravelarias desinquivincavacaria as cavidades que deveriam ser desinquivincavacadas.

11 − Perlustrando patética petição produzida pela postulante, prevemos possibilidade para pervencê-la porquanto perecem pressupostos primários permissíveis para propugnar pelo presente pleito, pois prejulgamos pugna pretárita perfeitíssima.

12 − Não confunda ornitorrinco com otorrinolaringologista, ornitorrinco com ornitologista, ornitologista com otorrinolaringologista, porque ornitorrinco é ornitorrinco, ornitologista, é ornitologista, e otorrinolaringologista é otorrinolaringologista.

13 − Disseram que na minha rua tem paralelepípedo feito de paralelogramos. Seis paralelogramos têm um paralelepípedo. Mil paralelepípedos têm uma paralelepipedovia. Uma paralelepipedovia tem mil paralelogramos. Então uma paralelepipedovia é uma paralelogramolândia?

14 − Se cada um vai à casa de cada um é porque cada um quer que cada um lá vá. Porque se cada um não fosse à casa de cada um é porque cada um não queria que cada um fosse lá

15 − A aranha arranha o jarro O jarro arranha a aranha. A aranha não arranha o jarro porque o jarro não arranha a aranha.

16 − Lá de trás de minha casa tem um pé de umbu brotando. Umbu verde, umbu maduro, umbu seco, umbu secando.

17 − O peito do negro Pedro é preto, e por que seu peito é preto, negro Pedro?

18 − Sabendo o que sei e sabendo o que sabes e o que não sabes e o que não sabemos, ambos saberemos se somos sábios, sabidos ou simplesmente saberemos se somos sabedores.

19 − Concluímos que chegamos à conclusão que não concluímos nada. Por isso, conclui-se que a conclusão será concluída, quando todas tiverem concluído que já é tempo de concluir uma conclusão.

20 − Maria-Mole é molenga, se não é molenga, não é Maria-Mole. É coisa malemolente, em mala, nem mola, nem Maria, nem mole.




O poema e suas paródias


Francisco Otaviano de Almeida Rosa
(1825-1889)

Quem passou pela vida em branca nuvem,
E em plácido repouso adormeceu;
Quem não sentiu o frio da desgraça,
Quem passou pela vida e não sofreu,
Foi espectro de homem, não foi homem,
Só passou pela vida, não viveu!

→ Nasceu e morreu na cidade do Rio de Janeiro. Formou-se advogado pela Faculdade de Direito de São Paulo. Além de brilhante jornalista foi, também, deputado, senador e diplomata. Nesta função negociou o Tratado da Tríplice Aliança contra Solano Lopez. Suas principais obras são: Cantos de Selma, publicado em 1872, edição de sete exemplares, Traduções e Poesias. É um dos patronos da Academia Brasileira de Letras.

→ A titulo anedótico, conheçamos duas das muitas paródias feitas na ocasião, para infernizar o poeta.

Quem passou numa casa o dia inteiro,
E das carteiras o pó não sacudiu,
Quem nunca de manhã levou tinteiro,
E o gosto de um “carão” nunca sentiu,
Foi de caixeiro espectro e caixeiro,
Veio ver se servia e não serviu!

→ E ainda:

Quem passou na cacimba a noite inteira
E só de manhã cedo se tirou,
Quem foi ver se passava na carreira
E pra dentro da mesma escorregou,
Foi o gato da min há cozinheira,
Que foi ver se nadava e não nadou!

Uma questão de vestibular

Quem passou pela vida em branca nuvem,
E em plácido repouso adormeceu;
Quem não sentiu o frio da desgraça,
Quem passou pela vida e não sofreu;
Foi espectro de homem, não foi homem,
Só passou pela vida, não viveu.

Este poema pertence à estética romântica porque:

(a) sugere que o leitor, para ser feliz, viva alienado e distante da realidade.
(b) são explícitas as referências a alguns cânones do Catolicismo.
(c) expõe os problemas sociais que afetavam a sociedade da época.
(d) nele se percebe a vassalagem amorosa, isto é, a submissão do homem em relação à mulher.
(e) sugere que é importante viver, de forma intensa e profunda, as experiências da existência humana.

P.S. A alternativa certa para a questão acima é a (e).



Poemas anatômicos

O esqueleto

 Walter Nieble de Freitas


Por causa de um esqueleto
Corri a não poder mais:
Assustado entrei em casa
E contei tudo a meus pais.

“O esqueleto, seu bobinho,
Nunca foi assombração:
É ele um conjunto de ossos
Dispostos em armação.

Sua função principal
É manter o corpo ereto;
Tem cabeça, tronco e membros
Todo esqueleto completo.

Preste, pois, muita atenção,
Guarde bem, jamais se esqueça:
Somente de crânio e face
Se constitui a cabeça.

O tronco tem só três partes,
Vou dizer-lhe quais são elas:
A coluna vertebral,
O esterno e as costelas.

Os membros são conhecidos:
Os de cima superiores;
E os que servem para andar,
São chamados inferiores”.

Até agora não compreendo
Como é que fui tolo assim:
Correr de um pobre esqueleto
Tendo outro esqueleto em mim!

Corpo Humano

Walter Nieble de Freitas*

  

Toda criança estudiosa,
Que deseja passar de ano,
Deve saber que em três partes
Se divide o corpo humano.

São: cabeça, tronco e membros
− É bem fácil a lição −
Vejamos parte por parte,
Preste, pois, muita atenção.

Na memória, guarde bem,
É importante, não se esqueça!
Somente de crânio e face
Se constitui a cabeça.

No crânio, ficam o cérebro
E outros órgãos protegidos;
Estão na face o nariz,
A boca, os olhos e ouvidos.

O tronco está dividido
− Veja as Ciências Naturais −
Em tórax e abdome,
Duas partes, nada mais.

Localizam-se no tórax
− Não vá fazer confusão −
Dois órgãos muito importantes:
Os pulmões e o coração.

Fazem parte do abdome:
Estômago, pâncreas e rins
E também os intestinos
Com outros órgãos afins.

Em dois planos diferentes
Os membros estão situados:
Superiores e inferiores
São eles assim chamados.

São dos membros superiores
− Aprenda bem a lição −
O ombro, o braço, o antebraço
E também a nossa mão.

Vejamos os inferiores
− Você quer saber, não é? −
São estas as suas partes:
Quadril, coxa, perna e pé.

O nosso corpo precisa
Banho com água e sabão,
Bastante exercício, ar puro
E boa alimentação.

Mas, ao lado de tudo isto,
Não descuide da instrução,
Porque assim você terá
Mente sã em corpo são.

Em: Barquinhos de papel: poesias infantis, Walter Nieble de Freitas, São Paulo, SP, Editora Difusora Cultural:1961.

*Walter Nieble de Freitas (Itapetininga, SP) Poeta e educador, foi diretor do Grupo Escolar da cidade de São Paulo.

terça-feira, 29 de janeiro de 2019

Avisos paroquiais



Para quem não sabe, avisos paroquiais são aqueles fixados nas portas de Igrejas Católicas, todos eles reais, escritos com muito boa vontade e, “eventualmente”, com má redação, deixam margem a outras interpretações. Vejam algumas pérolas:

Aviso aos paroquianos:

01) Para todos os que tenham filhos e não sabem, temos na paróquia uma área especial para crianças.

02) Quinta-feira que vem, às cinco da tarde, haverá uma reunião do grupo de mães. Todas as senhoras que desejem tomar parte das mães, devem dirigir-se ao escritório e falar com o pároco.

03) Na sexta-feira, às sete da noite, os meninos do Oratório farão uma representação da obra Hamlet, de Shakespeare, no salão da igreja. Toda a comunidade está convidada para tomar parte nesta tragédia.

04) Prezadas senhoras, não esqueçam a próxima venda para beneficência. É uma boa ocasião para se livrar das coisas inúteis que há na sua casa. Tragam os seus maridos! 

05) Assunto da catequese de hoje: “Jesus caminha sobre as águas”. Assunto da catequese de amanhã: “Em busca de Jesus”.

06) O coro dos maiores de sessenta anos vai ser suspenso durante o verão, com o agradecimento de toda a paróquia.

07) O mês de novembro finalizará com uma missa cantada por todos os defuntos da paróquia. O torneio de basquete das paróquias vai continuar com o jogo da próxima quarta-feira. Venham nos aplaudir, vamos tentar derrotar o Cristo Rei!

09) O preço do curso sobre “Oração e Jejum” não inclui a comida.

10) Por favor, coloquem suas esmolas no envelope, junto com os defuntos que desejem que sejam lembrados.

11) Nas manhãs não teremos o serviço do sacristão, pois ele só caminha de manhã todos os dias.

12) O pároco desta igreja concorda que haja dois papas, ele acha que pode entrar mais um membro.

13) O galinheiro da paróquia esta à disposição das mulheres da comunidade; agora, vocês podem pegar os ovos do padre à hora que quiserem.

14) Quem roubou as balinhas do padre Antônio? Será que alguma freira anda chupando escondido?

15) Vamos ajudar o sacristão da igreja. Hoje ele estava muito atarefado, pois carregava dois terços em cada mão e um terço na boca. 

O Soldado e a Trombeta

Esopo, na versão de Olavo Bilac


Um velho soldado,
um dia, por terra,
a espada atirou;
da guerra cansado,
com nojo da guerra,
as armas quebrou.

Entre elas estava
trombeta esquecida:
era ela, que, no ar,
os toques soltava,
e à luta renhida
tocava avançar.

E disse: “Meu dono,
é justo que a espada
tu quebres assim!
Mas que, no abandono,
fique eu sossegada!
Não quebres a mim!

Cantei tão somente...
Não sejas ingrato
comigo também!
Eu sou inocente:
não piso, não mato,
não firo a ninguém...

Nas horas da luta
alegre ficavas,
ouvindo o meu som.
Atende-me! Escuta!
Se então me estimavas,
agora sê bom!”

E o velho guerreiro
Lhe disse: “Maldita!
Prepara-te! Sus!
Teu som zombeteiro
as gentes excita,
à guerra conduz!”

Terrível, irado,
jogou-a por terra,
sem dó a quebrou...
E o velho soldado,
cansado da guerra,
por fim repousou.

Olavo Bilac: Poesias Infantis. RJ: Francisco Alves. 1929.


Olavo Bilac – eleito príncipe dos poetas brasileiros, em 1907, um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras e também autor da letra do “Hino à Bandeira” – escreveu muitos poemas destinados ao público infantil. Segundo suas próprias palavras, era preciso achar assuntos simples, humanos, naturais, que, fugindo da banalidade, não fossem também fatigar o cérebro do pequenino leitor, exigindo dele uma reflexão demorada e profunda.

Em uma época de tantos conflitos mundiais, em que a paz é quase uma ordem, O soldado e a trombeta, embora tenha sido escrito há tanto tempo, tem muito a dizer para as crianças de hoje. Um velho soldado/ Um dia, por terra,/ a espada atirou;/ da guerra cansado,/ com nojo da guerra,/ as armas quebrou.

(Global Editora)


Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac (16.12.1865 – 28.12.1918), jornalista, escritor e membro fundador da Academia Brasileira de Letras (1896), onde ocupou a cadeira 15, cujo patrono é o poeta Gonçalves Dias. É autor de Poesias Infantis (1904 ou 1929); Teatro Infantil (?); Contos Pátrios (1904); Antologia Poética (?); Crônicas e Novelas (1894); Tarde (1919); Crítica e Fantasia (1906); Tratado de Versificação (1910); Dicionário de Rimas (1913); Ironia e Piedade (1916); Conferências Literárias (1906).

Editores

(Em qualquer época, em qualquer parte do mundo)


Esta história é dirigida aos editores, para que se orgulhem da maravilhosa cortesia que caracterizava seus colegas chineses, isso na época em que eles tinham tempo para o cerimonial e para o uso da hipérbole. Através do Tit-Biss, ficamos sabendo que há meio século atrás um editor chinês, para recusar um trabalho que lhe fora enviado, escreveu a seguinte carta ao pretendente:

“Nobilíssimo irmão do sol e da lua! Vosso escravo se inclina profundamente diante de vós. Beijo a terra que está diante de vossos pés e peço permissão para viver e falar. O vosso manuscrito irradiou uma luz intensa diante de nossos olhos e da nossa mente. E o lemos com entusiasmo. Mas nunca nossos olhos viram trabalho que pela argúcia, pela profundeza, pela vastidão do saber, possa comparar-se ao vosso. Temendo perdê-lo, vo-lo restituímos. Se não ousamos profanar esse escrito publicando-o, nosso diretor não deixa de considerá-lo um modelo, e acredita que não dará à publicidade mais nada que a ele se possa comparar. Mas sua longa experiência permite mandar dizer-vos que gemas tão preciosas só aparecem de mil em mil anos”.

(Do livro “Grande Anedotas da História”, de Nair Lacerda*)


*Nair Veiga Lacerda, 18 de julho de 1903, Santos, São Paulo − 29 de agosto de 1996, Santo André, São Paulo, foi uma escritora, tradutora e jornalista brasileira. Filha do jornalista Alberto Veiga, estreou como cronista em 1932, no jornal A Tribuna. Ganhou o 4º Prêmio Jabuti na categoria melhor tradução, pela sua versão de As Mil e Uma Noites em oito volumes para a Editora Saraiva.

Foi a primeira secretária municipal de Educação, Cultura e Esportes de Santo André, assumindo o cargo em 1964 e nele permanecendo até 1969. À frente da Secretaria, criou as bibliotecas municipais (Central, Infantil, Circulante e Sala Braille) e a Biblioteca Distrital Cecília Meireles.

Escreveu o conto Nhá Colaquinha, Cheia de Graça, que inspirou o filme A Primeira Missa (1961), de Lima Barreto.

Após a sua morte, a biblioteca central de Santo André recebeu o nome de Biblioteca Nair Lacerda.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

Cântico das árvores

Olavo Bilac


Quem planta uma árvore enriquece
a terra, mãe piedosa e boa;
E a terra aos homens agradece,
a mãe os filhos abençoa.

A árvore, alçando o colo cheio
de seiva forte e de esplendor,
deixa cair do verde seio
a flor e o fruto, a sombra e o amor.

Crescei, crescei na grande festa
da luz, do aroma e da bondade,
árvores − glória da floresta!
árvores − vida da cidade!

Crescei, crescei sobre os caminhos,
árvores belas, maternais,
dando morada aos passarinhos,
dando alimento aos animais!

Outros verão os vossos pomos!
Se hoje sois fracas e crianças,
nós, esperanças também somos:
plantamos outras esperanças!

Para o futuro trabalhamos:
pois, no porvir, nossos irmãos,
hão de cantar sob estes ramos,
e bendizer as nossas mãos!

*****

Este poema foi musicado pelo maestro Francisco Braga.


Sonetos às divas ou às esposas mortas


Catarina de Ataíde por Pedro Américo-1878

→ A notícia da morte de Dona Catarina de Ataíde não chegou a Camões, segundo parece, senão por ocasião da sua volta a Macau, onde tinha ido desempenhar uma missão de que o tinha encarregado o governador das Índias, Francisco Barreto. Pouco depois de chegar a Goa foi metido na cadeia, como se sabe; e foi durante o seu cativeiro que ele chorou a morte de D. Catarina. Num soneto imitado de Petrarca compara-se a uma ave privada da sua companheira, que ele tinha visto através das grades da gaiola. Um outro soneto, em que se dirige à alma bem-aventurada daquela a quem amava, é um dos trechos mais célebres da poesia portuguesa:

Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida descontente,
Repousa lá no Céu eternamente,
E viva eu cá na terra sempre triste.
.
Se lá no assento Etéreo, onde subiste,
Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente,
Que já nos olhos meus tão puro viste.
.
E se vires que pode merecer-te
Alguma coisa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder-te,
.
Roga a Deus, que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou.

Luís de Camões

→ A morte da companheira do poeta Filinto de Almeida, Júlia Lopes de Almeida (1862-1934) inspirou-o a elaborar este belo soneto, que Alberto de oliveira leu aos seus confrades, numa sessão da Academia Brasileira de Letras, depois de observar que os versos de Filinto eram dignos de figurar ao lado dos de Camões a Catarina e de machado de Assis a Carolina.

Dorme em meu coração, dorme tranquila:
Enquanto ele bater, nele estarás;
E não te acorde a dor que me aniquila,
Nem no ouças dizer-me: “Ela aqui jaz”.

Esta, de que sou feito, humana argila,
Por ti no sofrimento se compraz,
Orvalhando, com o pranto que destila,
Meu Horto de Oliveiras... Dorme em paz.

Dorme em paz, meu amor... Quero embalar-te
Nestas cantigas de tristeza e dó.
Em bebidas de lágrimas sem arte.

E quando eu acabar, suplico só
Que a mim teus filhos venham misturar-te
Nas mesmas cinzas e no mesmo pó.

Filinto de Almeida

Carolina Augusta Xavier de Novaes e Joaquim Maria Machado de Assis casaram-se no dia 12 de novembro de 1869 e viveram uma plácida e amorosa vida conjugal durante 35 anos. A morte da esposa, em 1904, deixa Machado de Assis abatido e queixoso. Em 1906, o poeta escreve “A Carolina”, seu mais pessoal e profundamente sofrido poema. O soneto faz parte do livro “Relíquias de Casa Velha”, e foi o último escrito pelo autor. Fontes: Folha Ilustrada de 22 de setembro de 2009 e “Toda Poesia de Machado de Assis”, de Cláudio Murilo Leal.

Soneto “A Carolina” foi o último escrito por Machado de Assis.

À Carolina

Querida, ao pé do leito derradeiro
Em que descansas dessa longa vida,
Aqui venho e virei, pobre querida,
Trazer-te o coração do companheiro.

Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro
Que, a despeito de toda a humana lida,
Fez a nossa existência apetecida
E num recanto pôs um mundo inteiro.

Trago-te flores, − restos arrancados
Da terra que nos viu passar unidos
E ora mortos nos deixa e separados.

Que eu, se tenho nos olhos malferidos
Pensamentos de vida formulados,
São pensamentos idos e vividos. 

Machado de Assis

Batalha do Avaí



Batalha do Avaí*, quadro de Pedro Américo – plano geral.


Batalha do Avaí – detalhe de Caxias, à frente, no meio de dois oficiais.

Estava Dom Pedro II muito satisfeito a admirar e comentar o quadro de Pedro Américo Batalha do Avaí, que se expunha pela primeira vez, quando reparou estar o duque de Caxias olhando, de sobrancelhas cerradas, para o quadro e para o autor alternadamente. Surpreendido, o imperador indagou:

− Que é isso, general? Não vem juntar suas felicitações às nossas?

Caxias fez-se ainda mais sombrio e, contendo-se para não fazer o protesto ruidoso que desejava, murmurou apenas:

− E onde foi que o pintor Pedro Américo me viu em combate com a farda desabotoada e a camisa aparecendo?

(Do livro “Grandes Anedotas da História”, de Nair Lacerda)

*Batalha do Avaí é uma pintura a óleo realizada por Pedro Américo de Figueiredo e Melo, em Florença, na Itália. A obra foi pintada entre os anos de 1874 e 1877, quando Américo tinha apenas 34 anos, e retrata a Guerra do Paraguai, travada entre brasileiros, argentinos e uruguaios, os quais lutavam lado a lado contra o exército paraguaio. O artista buscou trazer para a tela o drama vivenciado pelos brasileiros que perderam familiares e amigos ou que lutaram na Guerra. Logo após ser finalizado, em Florença, o quadro desembarcou no Rio de Janeiro, em junho de 1877.

domingo, 27 de janeiro de 2019

O homem que matou Lampião


Em “Apagando Lampião − Vida e Morte do Rei do Cangaço”, Frederico Pernambucano de Mello revela a identidade de Santo, soldado que traiu e decapitou o capitão Virgulino em 1938.


À esquerda, o soldado Sebastião Vieira Sandes, o Santo, em 1938, entrevistado pelo repórter Melchiades Rocha, de A Noite: façanha revelada 65 anos depois. À direita, o punhal e amor de Lampião, Maria Bonita em 1936, filmados por Benjamin Abrahão.

A madrugada fria de 28 de julho de 1938 passou à história como o fim do cangaço após 270 anos de reinado do banditismo rural no sertão. Foi então, na Grota do Angico em Sergipe, que o capitão Virgulino Ferreira da Silva, vulgo “Lampião, o rei do Cangaço”, tombou aos 40 anos com a mulher Maria Bonita e um bando de nove homens, abatidos pelas forças volantes de Alagoas, que invadiram o Estado vizinho na pressa de cumprir a ordem de Getúlio Vargas de acabar com 20 anos das ações de Lampião e bando. Houve pilhagem, violação de cadáver e exposição itinerante de cabeças em festas populares. O cangaço moderno de Lampião − sustentado por dança alegre, punhal e viola, trajes luxuosos e dominação territorial pelo terror e a violência associada a marketing e organização − encerrava-se com a vitória da civilização.

Triunfo ilusório, porém. As cabeças de Lampião e Maria Bonita errariam pelos sertões, e só seriam enterrados em 1969. O culto ao casal ganhou ares de epopeia. Produziram-se milhares de textos, de poemas de cordel a romances, pesquisas acadêmicas e biografias. O cangaço se tornou o campo de estudo mais vasto da cultura sertaneja. O furor investigativo deu origem ao especulativo.

O mistério maior da área recaía sobre a identidade do matador de Lampião. Dois soldados na época reivindicaram a façanha, e um deles foi morto misteriosamente, mas nada foi provado. O algoz real se manteve em silêncio, pois Lampião tinha relações com poderosos do sertão, prontos a se vingar. Em 1970, um desses “coiteiros”, como eram chamados os acobertadores de Lampião, o fazendeiro Audálio Tenório de Albuquerque, contou ao compadre, o historiador Frederico Pernambucano de Mello, que o executor chamava-se Sebastião Vieira Sandes, o Santo, também apelidado Galeguinho. “Passei a perseguir a fonte”, diz Mello. Em 1978, localizou seu paradeiro: bairro do Farol em Maceió, onde morava com a família. Tentou um contato, mas foi rechaçado. No fim de 2003, Santo mandou um recado a Mello: estava com um aneurisma incurável. “Quero destampar fatos que não desejo levar para o túmulo”, afirmou. Combinaram de se encontrar em Pedra de Delmiro Gouveia, Alagoas, onde se despedia dos parentes. Conversaram em 8 e 12 de dezembro de 2003. O resultado está no livro “Apagando Lampião – Vida e Morte do Rei do Cangaço” (editora Global), que vem a ser o 568º relato da vida de Lampião.
  
Peso do remorso

O livro é repleto de descobertas sobre o esquema de franquia de bandos que o cangaceiro lançou, baseado no projeto do industrial Delmiro Gouveia de levar progresso ao sertão, com quem Virgulino havia trabalhado. Também narra que fugia para o Sul quando foi morto, porque pretendia se estabelecer como pecuarista em Patos de Minas, onde enriquecia o ex-cangaceiro Sinhô Pereira, seu antigo chefe. Mas a revelação mais potente e confirmada por perícia técnica está no relato do soldado Santo, sobre como matou e decapitou Lampião e viu morrer Maria Bonita. Ele contou que subiu ao cume da grota, de onde desferiu um único tiro, que atingiu o umbigo de Lampião da altura de oito metros depois de resvalar no punhal do cangaceiro. Ele tomava café diante de sua barraca quando desabou. As volantes atacaram em peso, e os “cabras” tombaram. Santo encontrou Maria Bonita perto de Lampião, atingida na omoplata. “Galeguinho, pelo amor de Deus, não deixe acabarem de me matar”, suplicou ela. Quando Santo ia oferecer-lhe um cigarro, surgiu o autor do primeiro tiro para dar cabo “da bandida”, decapitando-a, como rezava o código de honra. Santo fez o mesmo com sua presa, não sem conter as lágrimas.


O atirador Santo e o historiador Frederico Pernambucano de Mello,
em 2003.

Segundo Mello, Santo morreu em janeiro de 2004, envolto em culpa. Antes de se tornar coiteiro, foi parceiro de Lampião no artesanato de couro, quando contava 18 anos em Água Branca, Alagoas. Ele confeccionava peças de couro ao lado de Lampião, também ele exímio artesão e bordador, para acolher os novos membros do bando. Galeguinho organizava os bailes do amigo e costumava dançar com Maria Bonita. “A história de Santo é um caldeirão shakespeariano”, afirma Mello. Tanto que a história vai virar filme.

(D a revista ISTOÉ, janeiro de 2019)


Capa do livro sobre Lampião