terça-feira, 30 de junho de 2020

Tempos loucos

Túlio Milman


1. Antes da pandemia, usar máscaras na rua era coisa de bandido.
    Agora, e de mocinho.

2. Agrotóxico era veneno.
    Agora é a salvação contra uma nuvem gigante de gafanhotos.

3. Cinema drive-in era coisa do passado.
    Agora é do futuro.

4. Não visitar os avós era ingratidão.
    Agora é amor.

5. Não ir a aula, só se ficasse doente.
    Agora, a ordem e não chegar nem perto da escola para não adoecer.

6. Abraçar os amigos era carinho.
    Agora é irresponsabilidade.

7. Antes, governo distribuir rendas para milhões de família era coisa de comunista.
    Agora é projeto defendido por um ministro liberal.

(Em Zero Hora, junho de 2020)


sábado, 27 de junho de 2020

A cidade guardada na memória



Histórias e personagens de Porto Alegre 
nas lembranças do poeta
que mais escreveu sobre a cidade, nos seus 85 anos.

Mário Quintana*

Encomendaram-me um texto sobre Porto Alegre antigo, logo para mim que não sou o tipo de velho rememorativo, não sou daqueles que vive suspirando: − Ah! Os bons velhos tempos!... − os tempos são sempre bons, os velhos é que não prestam mais. E temo também o perigo das falsas recordações, embora não acredite na observação direta. Acontece que tenho tal poder de visualização que às vezes não sei se aquilo que evoco eu vi mesmo, ou foi algo que me contaram, ou apenas imaginei.

Quando ginasiano vim para Porto Alegre interno no Colégio Militar. Aos sábados, eu ia para a Biblioteca Pública e lia até o anoitecer. O pessoal de casa começou a estranhar minhas ideias, meu pai, em uma de suas vindas a Porto Alegre, foi até a biblioteca descobrir que livros eu costumava ler, e descobriu: poetas franceses e filósofos russos. Frequentei a Biblioteca Pública por muitos anos, amigos meus foram seus diretores − o Augusto Meyer em 1930 e o Reynaldo Moura em 1939. No tempo do Reynaldo, quando a gente queria mesmo um livro e não tinha, fazia-se a solicitação por escrito e eles providenciavam diretamente de Paris. A gente só lia em francês, pois naquele tempo Paris era a capital do espírito humano, um autor para ser conhecido tinha que ser traduzido primeiro para o francês.

Voltando ao Colégio Militar estudei lá até 1924. Não completei os estudos porque só estudava Português, Francês e História. O resto absolutamente não me interessava. Era sempre reprovado em Matemática. Como via que não iria adiante por culpa da raiz quadrada, raiz cúbica e outras bobagens, resolvi me empregar como caixeiro na Livraria do Globo. Meu pai veio me buscar, de nada adiantou o Mansueto Bernardi dizer que eu era um bom caixeiro e que gostava de livros. Meu pai ficou indignado. Imagina, o filho, um bom caixeiro. Ele era extraordinário, mas como todos os burgueses queria um filho doutor.

Depois de três anos como prático de farmácia em Alegrete voltei a Porto Alegre. Me estabeleci em uma pensão. Sempre morei em pensões ou hotéis. Onde eram as pensões? Sei lá! − Na Barros Cassal, na Rua do Rosário, na Dona Laura... As pensões sempre eram casas antigas e seus donos eram velhos e, portanto, muito morredores e quando eles morriam os herdeiros vendiam as casas e nos seus lugares construíam-se arranha-céus. As pensões não existem mais. Morei treze anos no Hotel Majestic. Hoje é a Casa de Cultura que leva meu nome, e eu considero isto uma conquista da poesia no Rio Grande do Sul. Portanto me sinto orgulhoso, não vaidoso. Por volta de 1929 ingressei na redação do jornal O Estado do Rio Grande, órgão da oposição, dirigido por Raul Pilla. Nesta época Porto Alegre era uma cidade pequena onde todos, ou quase todos se conheciam e as diversões eram os bares, os cafés, as galerias de arte e o Theatro São Pedro. Uma vez, o Telmo Vergara e eu fomos a um vernissage na Galeria do Grande Hotel, que ficava na Rua da Praia, próximo à Caldas Júnior. Lá encontramos o Flores da Cunha, que era o presidente do Estado, frente a frente nos cumprimentamos e ele disse:

− Que pena rapazes tão inteligentes estarem do outro lado.

O Telmo respondeu:

− O mesmo pensamos nós do senhor.

Havia muita educação entre as pessoas, tanto que quando o Ovídio Chaves e eu, completamente altos, queríamos entrar no Cabaré Oriente − era um cabaré dançante − o porteiro nos chamou a atenção:

− Os senhores não devem entrar, os senhores estão visivelmente...

Naquele tempo todo mundo usava chapéu... Na Rua da Praia, entre a Marechal Floriano e Praça da Alfândega, passeavam as moças, sempre acompanhadas. Era um desfile de modas, e a gente ficava de um lado para o outro. Já na zona do Mercado Público ficavam o meretrício e os homossexuais.

O Theatro São Pedro já era tradicional quando eu, moço, comecei a frequentá-lo e foi envelhecendo com a gente. − Somos da SAB! − Assim entrávamos no Theatro São Pedro. O porteiro nos deixava passar pensando que a SAB era uma sociedade muito importante, mas SAB queria dizer: Sociedade dos Amigos do Barone. O Dante Barone, diretor do Theatro São Pedro naquela época, era nosso amigo e conforme o público, se havia lugares, ele nos fazia um sinal. Assim a gente assistia a peças locais, vindas de fora e operetas. Gostávamos muito de operetas, tínhamos pavor à ópera. Foi aí que eu inventei que dueto de ópera parecia namoro de gato que nunca chegava às vias de fato e não deixava a gente dormir.

Foi no final de um espetáculo que eu e várias pessoas fomos parar em uma mesa da Confeitaria Central, que ficava no Largo dos Medeiros, com o Procópio Ferreira. Ia e vinha gente. Quando ficamos sozinhos e faltou assunto, ele fez o ar de quem esperava que eu pedisse autógrafo a uma figura tão importante, mas eu tinha orgulho dos 17 anos e fiquei quieto. Ele então, com um sorriso interior, pediu o meu autógrafo. Naquela tarde o Procópio Ferreira comeu dezenove pastéis de Santa Clara.

O maior prazer meu e do Sérgio Gouvêa era tomar um bonde, ir até o fim da linha e voltar a pé. Chegamos à perfeição de um dia vir a pé do fim da linha do Menino Deus até o centro. E o mais engraçado é que pelo caminho vínhamos tomando um chope em cada boteco, e Porto Alegre nesse tempo, como em toda cidade que se preze, tinha um boteco em cada esquina. Não foi por falta de descuido que cheguei a esta idade, mas atribuo isto a estas caminhadas diárias...

Quando o Rei Eduardo VIII da Inglaterra abdicou para casar-se com Madame Simpson frequentamos o Clube da Chave, fundado por Ovídio Chaves. Ficava na Vasco da Gama numa esquina onde havia um chorão. Funcionava da seguinte maneira: a gente pagava um tanto por mês de aluguel de uma chave e podia levar quem quisesse, mas não era nada de suspeito. Lembro do salão de danças com mesas em volta, era frequentado por gente da sociedade. Além de dançar podia-se ouvir poesias. Havia a Pérola Paganelli que recitava admiravelmente. Um destes recitais chamou-se Dezenove Poemas Dentro da Noite. Não me esqueço dele porque uns amigos meus foram sentar na escada e me abandonaram na mesa com uma jornalista argentina, uma velhota maluca, destas que fazem versos eróticos e que pegavam as minhas mãos e dizia:

− Yo quisiera ser antropófaga y devorar tus carnes palpitantes...

Um dia o Clube da Chave foi à falência porque todos eram amigos...

Mas a vida não era só os bares. Nós todos tínhamos fôlego, passávamos as noites em claro e depois trabalhávamos. Foi nessa época que traduzi para a Editora Globo obras de autores de peso como Proust, Virginia Woolf, Molière e outros. Eu tradutor do francês, os tradutores trabalhavam em espaços delimitados por divisórias que chamávamos de “baias”. Devo o fato de ser tradutor de francês a um hábito do tempo da minha infância, todos os rapazes aprendiam francês, e todas as moças aprendiam piano, minha mãe lecionava francês.

Um dia eu estava na Globo, trabalhando na minha “baia” quando chegou um figurão que me disse com um ar protetor:

− Tenho gostado muito dos seus versinhos.

Respondi:

−.Eu fico-lhe grato, doutor, pela sua opiniãozinha.

Sou conhecido como poeta, mas poeta não é uma profissão. A poesia não é uma profissão, é um estado, assim como o estado de graça ou o estado de coma, conforme a poeta. Minha profissão é jornalista, trabalhei muitos anos na redação do Correio do Povo. Para falar sobre isso prefiro transcrever um depoimento do secretário do jornal Adail Borges Fortes da Silva:

“... Corri os olhos pela sala da redação e vi, na sua mesa, em atitude contemplativa, olhando para a tela apagada da televisão e fumando fleumaticamente, Mario Quintana. Deu-me, então, o estalo. Apresentei-lhe o texto e pedi-lhe: − Dá uma ʽpenteadaʼ nesta página histórica...

“O que voltou à minha mesa foi uma coisa primorosa, um trabalho enxuto, conservando, ainda, todo o conteúdo original. É que Mario, com poucas e simples emendas, mas colocadas com precisão e onde deveriam, deu à reportagem o colorido e a leveza de que precisava.

“Foi assim que ʽlanceiʼ o Mario na ʽcopidescagemʼ da redação, isto é, no trabalho de reescrever matérias de importância. E era exatamente uma das poucas coisas que ele ainda não tinha feito, porque tudo o mais já fizera.”

Passei muito do meu tempo na redação do Correio do Povo. Muitos dos meus amigos vivos e mortos são de lá...

Mas foi no Chalé da Praça XV onde todos − Augusto Meyer, Athos Damasceno Ferreira, Reynaldo, os irmão Gouvêa: o Sérgio e o Paulo, e vou parar por aqui para não cometer nenhuma omissão − nos conhecemos porque poeta é uma raça estranha, a gente se reconhece. A nossa principal “aguada” era o Chalé. O chalé fazia parte da gente. Me lembro do “Bilu”, com o seu perfil perpendicular de cegonho sábio, o longo bico mergulhado − não no gargalo do gomil da fábula, não propriamente no canecão de chope, que era de fato o que estava acontecendo − mas no poço artesiano de si mesmo.

Me lembro de Reynaldo, redondo, pacato, amável, tão amável, pacato e redondo que parecia um desses personagens de romance policial que ninguém desconfia que seja o autor do último crime da mala. Me lembro do Cavalcanti, com sua cara silenciosa e receptiva de mata-borrão. Me lembro de mim, silencioso. Sim, a determinada hora éramos todos silenciosos... essa hora em que não é preciso dizer nada, nem mesmo o verso inesquecível de Valéry: “Oh mon bon compagnon de silence!”

Esse silêncio era apenas quebrado quando chegava o Athos, o Athos centrífugo e pirotécnico. Mas isto não perturbava o nosso silêncio, nem o próprio silêncio do Athos... pois havia um profundo e misterioso rio de silêncio que corria subterraneamente a todas as nossas palavras.

Era o rio da poesia?

O rio da harmoniosa confusão das almas?





Agora é apenas o rio do tempo que passou.


(Da Veja Rio Grande do Sul, julho de 1991)

*Quando, em julho 1991, o poeta completou 85 anos.

Mário de Miranda Quintana (Alegrete, 30 de julho de 1906 − Porto Alegre, 5 de maio de 1994) foi um poeta, tradutor e jornalista brasileiro.

sexta-feira, 26 de junho de 2020

Explorando a criatividade

(The little boy – O menininho)

Conto de Helen E. Buckley


Era uma vez um menino. Ele era bastante pequeno. Ela era uma grande escola. Mas, quando o menino descobriu que podia ir à sua sala, caminhando através da porta, ele ficou feliz. E a escola não parecia mais tão grande quanto antes.

Uma manhã, quando o menino estava na escola, a professora disse:

- Hoje nós iremos fazer desenho.

- Que bom! pensou o menino. Ele gostava de fazer desenhos. Ele podia fazê-los de todos os tipos: leões, tigres, galinhas, vacas, barcos, trens, e ele pegou sua caixa de lápis e começou a desenhar. Mas a professora disse:

- Esperem! Ainda não é hora de começar. E ele esperou até que todos estivessem prontos.

- Agora, disse a professora, nós iremos desenhar flores.

- Que bom! pensou o menininho. Ele gostava de desenhar flores. E começou a desenhar flores com seu lápis de cor rosa, laranja e azul. Mas a professora disse:

– Esperem! Vou mostrar como fazer. E a flor era vermelha com o caule verde.

- Assim – disse a professora. Agora vocês podem começar.

Então, ele olhou para a sua flor. Ele gostava mais de sua flor, mas não podia dizer isso. Ele virou o papel e desenhou uma flor igual a da professora. Ela era vermelha com o caule verde.

Num outro dia, quando o menininho estava em aula, ao ar livre, a professora disse:

- Hoje, nós iremos fazer alguma coisa com barro.

- Que bom! pensou o menininho. Ele gostava de barro.

Ele podia fazer todos os tipos de coisas com barro: elefante, camundongos, carros e caminhões. Ele começou a juntar e amassar sua bola de barro. Mas a professora disse:

- Esperem! Não é hora de começar. E ele esperou até que todos estivessem prontos.

- Agora, disse a professora, nós iremos fazer um prato.

- Que bom! pensou o menininho. Ele gostava de fazer pratos de todas as formas e tamanhos. A professora disse:

- Esperem! Vou mostrar como se faz. E ela mostrou a todos como fazer um prato fundo. – Assim – disse a professora. – Agora vocês podem começar.

O menininho olhou para o prato da professora. Então olhou para o seu próprio prato. Ele gostava mais do seu prato do que o da professora. Mas não podia dizer isso. Ele amassou o seu barro numa grande bola novamente e fez um prato igual ao da professora. Era um prato fundo.

E muito cedo, o menininho aprendeu a esperar e a olhar, e fazer as coisas exatamente como a professora. E muito cedo, ele não fazia as coisas por si próprio.

Então, aconteceu que o menino e a sua família mudaram-se para outra casa, em outra cidade, e o menininho tinha que rir para outra escola.

E no primeiro dia ele estava lá. A professora disse:

- Hoje nós faremos um desenho. Quem bom! Pensou o menininho. E ele esperou que a professora dissesse o que fazer. Mas a professora não disse. Ela apenas andava na sala. Veio até ele e falou:

- Você não quer desenhar?

- Sim, disse o menininho, o que é que nós vamos fazer?

- Eu não sei, até que você o faça, disse a professora.

– Como eu posso fazê-lo? perguntou o menininho.

- Da maneira que você gostar, disse a professora.

– De que cor?‒ perguntou o menininho.

- Se todo mundo fizer o mesmo desenho e usar as mesmas cores, como eu posso saber quem fez o quê? e qual o desenho de cada um?

- Eu não sei, disse o menininho.

E ele começou a desenhar uma flor vermelha com o caule verde.


quinta-feira, 25 de junho de 2020

Fé na razão e Razão na sua Fé

Prof. Emilio Myra Y Lopez


Ponde o máximo esforço em conseguir a melhor conduta possível e não vos interessais tanto pelo resultado, que sempre depende de causas alheias à própria vontade.

Dedicai mais tempo a gozar o que possuis e o que alcançais, do que a sofrer pelo que não tendes e pelo que perdeis.

Recordai que não há “mal que por bem não venha” −: não há erro nem malogro do qual não se possa obter, no mínimo, uma lição proveitosa para o futuro.

Tomai a vida “sem pausa nem pressa”, isto é, sem paradas, sem saltos bruscos.

Preferi a agilidade à força; a tolerância à teimosia, ser credores a ser devedores de gratidões.

Buscai o equilíbrio entre impulso, razões e paixões.

Buscai o equilíbrio entre trabalhos, distrações e repousos.

Interessai-vos mais em “fazer o bem” do que em sair-vos bem.

Recordai-vos de que não sois nem “anjos” nem “diabos”, mas meros homens e que tendes em vosso ser um pouco de ambos.

Não sigais a rota de querer ser compreendido, mas a de querer compreender.

Não peçais ajuda para viver; procurai ajudar para viver, ou melhor, viver para ajudar.

Não tenteis combater um dano com outro.

A terapêutica moral não pode ser homeopática. Ao dano é preciso dissolvê-lo − como aconselha Leibnitz: − com superabundância de bem.

Segui em nossa vida a máxima: “suaviter in forma, fortitur in re” (suave na forma, firme nos propósitos).

Imagem do homem feliz

Como é o homem feliz? Certamente não podemos confundi-lo com o exaltado, nem com o otimista insensato, nem com o tolo conformista.

O homem feliz é aquele que, em primeiro lugar, se sente homem, isto é, vive em toda a sua plenitude, sua dignidade humana, sem orgulho nem humildade.

O homem feliz é, além disso, aquele que tem fé em si e na obra que realiza, a qual não a compara com a dos demais, mas a ela própria, tendo em conta sempre a equação de aptidões, créditos e resistências que a condicionam.

O homem feliz é aquele que cada dia renova sua tarefa com a serenidade eficiente de quem não teme nem a vida, nem a morte, pois se sente seguro no nível que lhe corresponde e no qual não se mantém pela graça dos demais, nem, tampouco, a expensas deles, mas pelo desenvolvimento perseverante do seu plano vital, conscienciosamente elaborado.

O homem feliz é o que desenvolveu um caráter flexível e, sem dúvida, inquebrantável como o aço.

O homem feliz é aquele que sabe, também, criar com seu exemplo: paz, confiança e bem estar em redor de si, sem exageros místicos.

O homem feliz é o que soube seguir a série de passos ascendentes que o levaram a merecer seu bem estar e que podemos resumir assim: “estudou para saber. Soube para fazer. Fez para valer. Valeu para servir. Serviu para merecer... viver feliz”.

É, portanto, quem tem: Fé na Razão e Razão na sua Fé.”

Do livro “Problemas Atuais de Psicologia”,
do Prof. Emilio Myra Y Lopez


Deixa teu marco!

Duílio caldeira*


Meu camarada! − Sê sincero e verdadeiro −
O que fizeste em tantos anos nesta vida?
A tua consciência não te acusa
De haveres esbanjado teus minutos?
Foram teus sonhos, pelo menos, começados
E alguns deles foram realizados?
Os teus propósitos vingaram ou se perderam?
Tu tens em ti este poder maravilhoso
Que tal te foi dado pela natureza:
Podes pensar e planejar e executar,
Mas, no entanto, tu preferes copiar?

Por que norteias todas as tuas ações
Pelo temor de que elas desagradem
Aos que são, como tu, da mesma massa,
Da mesma terra e da mesma água?

Vê se transformas tua inércia
E teu viver latente em labutar!
Lembra que o tempo que deixares ir,
Sem preenchê-lo com ações fecundas,
Nunca terás de volta em tua vida.
E te serão cobrados, muito em breve,
Os altos juros de arrependimento
Do desperdício de momentos preciosos
Que permitiste ir caindo um a um
No abismo oco da inutilidade!

Toma vergonha, companheiro, escuta!
A voz da vida está te gritando nos ouvidos:
− Faze qualquer coisa por ti mesmo ou pelos outros!

Deixa na terra uma lembrança tua!
Deixa teu nome gravado numa rocha!
Deixa uma árvore dando sombra, meu amigo!

*Duílio Caldeira foi um militar, Sargento Paraquedista e Mestre de Salto.


quarta-feira, 24 de junho de 2020

Como funciona o paraquedas?

Por Tiago Jokura


1. Num salto-padrão, o paraquedista deixa o avião quando ele atinge cerca de 12 mil pés de altitude, ou seja, 3 600 metros. Nas costas, o saltador carrega a mochila que guarda o paraquedas todo dobrado.

2. Quando a queda livre começa, o corpo do paraquedista vai aumentando progressivamente de velocidade até atingir cerca de 200 km/h. Até chegar a essa velocidade e se estabilizar, lá se vão 12 segundo de adrenalina.

3. Quando a altitude cai para 5 mil pés (1 500 metros), é hora de abrir o paraquedas, após 45 longos segundos de queda livre! Saltadores mais experientes ainda ganham alguns segundos extras ao acionar o equipamento a 3 mil pés do solo (900 metros).

4. O paraquedas tem várias “peças”. O slider serve para regular a velocidade de abertura do velame, evitando que o equipamento se enrole todo. O velame, por sua vez, é formado pelas células de náilon, que inflam para lhe dar o formato de uma asa. Com ele aberto, a velocidade do voo fica em cerda de 30 km/h.

5. Para “dirigir” o paraquedas, é preciso usar os batoques – ligados à cauda do velame por linhas direcionais. Quando o batoque esquerdo é puxado para baixo, o paraquedas vira para a esquerda. E vice-versa para o batoque direito.

6. Na hora de pousar, cerca de 5 a 7 minutos após a saída do avião, o ideal é pegar um “vento de nariz” (frontal) e puxar os dois batoques para baixo, simultaneamente. O movimento empina o velame e funciona com freio, permitindo uma aterrissagem suave.

Abre-te quedas!

A maior parte dos paraquedistas abre o equipamento manualmente – apesar de existir uma opção automática. Eles puxam da mochila um miniparaquedas chamado pilotinho. Ao ser solto, o pilotinho é inflado pelo ar e arrasta o paraquedas (velame) principal para fora da mochila.

Para a frente…

Mudando a posição do corpo, o paraquedista pode corrigir a direção e a velocidade da queda livre. Na posição front slide, feita com os braços encolhidos e as pernas esticadas, o vento empurra o corpo do paraquedista para a frente.

…ou para trás

Para se deslocar no sentido contrário, o paraquedista precisa esticar os braços e dobrar totalmente os joelhos. Isso faz com que o vento jogue seu corpo para trás. A posição é chamada de back slide.

Ou dobra ou nada!

Dobragem dos paraquedas é tão importante 
que tem até prazo de validade

→ Para o equipamento não falhar, uma dobragem bem feita dos velames é fundamental. O ideal é que ela ocorra em um ambiente coberto, evitando superfícies abrasivas como asfalto ou cimento que podem danificar o tecido.

→ Se os velames ficam na mochila muito tempo, fatores externos, como umidade acumulada, podem prejudicar a abertura. Por isso, a dobragem do reserva tem prazo de validade: após quatro meses, é obrigatório redrobá-lo.

→ Todo paraquedista certificado aprende a dobrar seu velame principal, mas, se quiser, pode pagar 7 reais* pelo serviço. A dobragem do reserva – mais minuciosa para garantir uma abertura rápida e sem falhas – custa dez vezes mais e só é feita por especialistas.

Mochila voadora Equipamento leva paraquedas principal e reserva, e pesa até 14 quilos

Um grude só

Além de abrigar os velames, a mochila tem tirantes (alças) para mantê-la firmemente grudada no tronco e nas pernas do paraquedista. Dependendo do tipo de salto e do nível de experiência da pessoa, o peso da mochila varai de 7 a 14 quilos.

Cabos da boa esperança

Existem cabos do lado de fora da mochila para acionar os dois velames. O cabeamento de aço flexível que aciona o reserva é protegido por um conduíte e coberto por abas de proteção. Isso evita que atritos (até do vento) acionem o equipamento acidentalmente.

Dois em um

Na mochila vão dois velames (paraquedas) guardados em bolsas. O principal fica na parte inferior. O reserva, alojado logo acima, fica bem mais compactado. Quando aberto, porém, ele tem o mesmo tamanho do paraquedas principal.

(Revista Super Interessante, julho de 2018)

*Valor de dobragem na época, julho de 2018, da reportagem.

Como sobreviver se o paraquedas não abrir?

Hipótese A − Salto em grupo − Chances remotas

1. Peça ajuda:

→ Se os paraquedas principal e reserva falharem, acene para um colega e aponte para seu paraquedas − sem demora, pois você já deve estar a menos de 750 metros do solo.

2. Segure firme:

→ Seu companheiro deve mergulhar na sua direção. Agarre-o fortemente. A essa altura, vocês estarão na velocidade máxima de queda livre - mais de 200 km/h.

3. Aguente o tranco:

→ Segurar não basta: o impacto da abertura desata qualquer abraço. Entrelace seus braços nos arreios do macacão do colega. O tranco deve quebrar seus braços.

4. Pouse como der:

→ Assim que seu colega abrir o paraquedas, ele deve conduzir a queda enquanto você se segura. Tentem desviar de obstáculos como construções e fiação elétrica. Como o peso é grande e a distância do chão, curta − cerca de 150 metros − uma aterrissagem suave está fora de cogitação. Se houver água por perto, pousem lá. Após o pouso, seu companheiro terá de evitar a inundação do pára-quedas. As conseqüências dessa operação vão de algumas fraturas à morte imediata dos dois saltadores.

Hipótese B - Você cai sozinho

Chances ridículas 1.

→ Procure um bom lugar para cair. Sem paraquedas, a chance de morrer é de aproximadamente 100%. Ainda assim, alguns terrenos podem − pelo menos em teoria − amortecer o impacto e, em casos extraordinários, evitar a morte. Exemplos: copas densas de árvores sobre um pântano, celeiros cheios de feno e encostas íngremes cobertas por neve fofa.

2. Vá a esse lugar:

→ Manobre seu corpo para o local de pouso. Para deslocamentos horizontais, adote a posição “tábua”, com o corpo todo esticado e a cabeça apontando a direção desejada. Inclinando-se a cabeça para baixo, o ângulo da queda se torna mais agudo; para uma descida totalmente vertical, posicione-se de ponta-cabeça.


segunda-feira, 22 de junho de 2020

Acidente aéreo com avião da Varig completa 60 anos



Há exatos 60 anos, (notícia de 2017) um modelo Curtiss C-46, da Varig, levantou voo, de Santana do Livramento, às 8h, com 35 passageiros e cinco tripulantes, em um dia cinzento e frio. A rota, que terminaria em Porto Alegre, faria escala em Bagé, para embarque e abastecimento. Pouco depois das 8h30min, o avião decolou rumo à capital gaúcha. Em questão de minutos, a torre de comando do aeroporto Comandante Kraemer recebeu mensagem da tripulação, declarando emergência em decorrência de um provável incêndio no motor esquerdo. O sinistro daria origem ao maior acidente aéreo da história bajeense.



Há versões de que após acionar os extintores do motor, a tripulação acreditou ter controlado os danos. Ainda assim, o pouso de emergência seria necessário, por questões de segurança. O trem de pouso não funcionou conforme o esperado e o piloto, Fernando Silva Leandro, abortou a manobra e arremeteu a aeronave, com a intenção de tentar novamente. Uma das teorias mais aceitas é de que durante o momento da decolagem, uma pedra tenha sido arremessada pelas rodas dentro do compartimento do motor, ocasionando o fogo.

Diferente do que a tripulação imaginou, o fogo não havia sido extinguido. Assim que o avião começou a taxiar para uma nova tentativa de pouso, as chamas voltaram com força. O piloto ainda tentou levar a aeronave ao solo, mas perdeu uma asa ainda no ar e o avião caiu, sendo reconhecida depois apenas como uma bola de metal retorcida e ardente. Todas as 40 pessoas a bordo morreram na queda ou em meio ao fogo. Entre eles, figuras ilustres, como o então secretário de Educação do Estado, Liberato Salzano Vieira da Cunha, e o advogado Antenor Gonçalves Pereira.

O domingo cinzento

O alvorecer do dia 7 de abril de 1957 não foi extraordinário na casa de João Ilone Freire. Como fazia diariamente, acordou, saiu da cama e se arrumou para o trabalho, que ficava a alguns metros de sua residência. Nada indicava que aquele seria mais do que um dia normal e que em poucas horas ele seria testemunha ocular da história de uma tragédia da aviação brasileira.

Mas a história teve início muito antes, na década de 1930, quando iniciou a fabricação dos aviões Curtiss C-46 Commando, utilizado para transporte de tropas, armas e munições durante a Segunda Guerra Mundial pelos aliados. Com o fim do conflito bélico, os aviões foram vendidos para empresas aéreas do mundo todo, entre elas a Viação Aérea Rio-Grandense (Varig). O personagem principal desta história veio nesse lote e recebeu o prefixo PP-VCF.

Após enfrentar anos de guerra, armamento pesado e um exército bem equipado, o Curtiss C-46 Commander PP-VCF acabou encontrando seu fim nos pampas gaúchos, no mesmo data em que João levantou acreditando ser mais um dia normal.

Testemunha ocular da queda


Jovem, contando 19 anos na ocasião do acidente, Freire morava próximo à área do aeroporto junto à família. O pai, Álvaro Freire da Fontoura Gomes, havia sido o responsável pela construção da pista do aeroporto, onde tempos depois o PP-VCF encontraria seu fim, em chamas. E também no aeroporto iniciou a vida profissional, como despachante aéreo da Sociedade Anônima Viação Aérea Gaúcha (Savag).

Ele conta que chegou a ver a aeronave antes de decolar. Depois, quando a viu novamente, ela já vinha rumo ao seu destino final. “Ligaram para a torre, avisaram do fogo e pediram apoio para apagar após o pouso. Foi uma comoção, todos saíram correndo com os extintores e ficamos esperando na beira da pista”, recorda.

Ele conta que viu o avião tentar pousar na primeira vez e arremeter. “Eu não sei por que ele fez aquilo. Deve ter pensado que tinha controlado o fogo e estava tranquilo para tentar de novo”, diz.

Freire relembra que, quando o Curtiss retornava, a asa esquerda, tomada pelo fogo, então já visível, se dobrou e se separou do resto do corpo metálico. “Parecia de papel, se dobrou para trás e voou. Nisso, o avião já caiu e a carenagem foi rolando pela pista”, relata.

O horror daquela visão nunca foi esquecido por Freire, que junto ao pai e ao irmão correu na tentativa de ajudar a apagar o fogo e resgatar um possível sobrevivente. Mas no caminho até a carenagem, viu que seria impossível encontrar alguém com vida. “Quando o avião caiu, foi se arrastando pela pista e ficava um rastro de pedaços de corpos. Aí eu vi que seria muito difícil alguém ter se salvado”, lembra.

Fim de um mistério

Entre as lendas urbanas que circularam pela cidade ao longo de seis décadas, talvez uma das mais conhecidas esteja relacionada ao destino de barras de ouro que teriam sido encontradas no acidente. Freire garante que havia, realmente, ouro a bordo. Ele sabe disso porque alega ter encontrado o valioso metal, preso no corpo de um dos passageiros por um cinturão. “Eu vi que era valioso, tirei o cinturão do corpo e avisei o pessoal da Varig. Depois não vi mais, sei que foi entregue para a Polícia Federal”, garante.

Aos 79 anos, afirma ainda ter na memória as cores vívidas do fogo que queimava a carenagem do avião contra o céu cinza chumbo daquela manhã de domingo. E embora poucas pessoas saibam do horror que presenciou, Freire afirma que o fato nunca saiu de sua mente. “Acho que ainda sonho com isso, às vezes, porque acordo assustado, dando pulo, mas sem lembrar do que sonhei. Acho que deve ser isso que ainda me assusta em sonho”, conta ele, com as mãos marcadas pelo tempo cruzadas sobre as pernas.

(Do blog do Jornal Minuano)

domingo, 21 de junho de 2020

Dois pequenos textos jurídicos

e suas traduções simultâneas.


Dois exemplos de textos jurídicos genuínos − na versão original, em juridiquês, e em seguida simplificados, o primeiro pela professora Hélide Santos Campos, da Unip-Sorocaba, o segundo pelo advogado Sabatini Giampietro Netto:

V. Ex.ª, data maxima venia, não adentrou às entranhas meritórias doutrinárias e jurisprudenciais acopladas na inicial, que caracterizam, hialinamente, o dano sofrido.*

*Tradução:

V.Ex.ª não observou devidamente a doutrina e a jurisprudência citadas na inicial, que caracterizam, claramente, o dano sofrido.

*****

Como espia no referido precedente, plenamente afincado, de modo consuetudinatário, por e entendimento turmário iterativo e remansoso, e com amplo supedâneo na Carta Política, que não preceitua garantia ao contencioso nem absoluta nem ilimitada, padecendo ao revés dos temperamentos constritores limados pela dicção do legislador infraconstitucional, resulta de meridiana clareza, tornando despicienda maior peroração, que o apelo a este Pretório se compadece do imperioso prequestionamento da matéria abojada na insurgência, tal estendido como expressamente abordada no Acórdão guerreado, sem o que estéril se mostrará a irresignação, inviabilizada ab ovo por carecer de pressuposto essencial ao desabrochar da operação cognitiva.**

**Tradução:

Um recurso, para ser recebido pelos tribunais superiores, deve abordar matéria explicitamente tocada pelo tribunal inferior ao julgar a causa. Isso não ocorrendo, será pura e simplesmente rejeitado, sem exame do mérito da questão.

(Da revista “Língua Portuguesa”, número 2, de 2005)


sábado, 20 de junho de 2020

Quando não se dá importância a uma pandemia



Febre verde-amarela

Eduardo Bueno

Como se fosse uma bofetada − ao mesmo tempo irônica e trágica − da mão do destino, o navio, embora norte-americano, chamava-se... Brazil. Havia zarpado de New Orleans, onde um pequeno surto de febre amarela já fora identificada, e logo fez escala em Cuba − sempre Cuba! −, onde a doença grassava solta. O vapor então seguiu seu rumo para Salvador, na Bahia. Chegou lá em 30 de setembro de 1849.

Como dois marujos haviam morrido a bordo − sendo sepultado no mar −, o Brazil não poderia aportar. Mas, suspeita-se, teria subornado as autoridades portuárias e obtido carta branca − a então chamada “carta de saúde” −, para desembarcar sua carga. E seus contaminados tripulantes circularam livremente pela cidade.

E foi assim que a febre amarela chegou ao Brazil, ops, ao Brasil. Febre verde-amarela, no caso.

Só que chegou e foi solenemente ignorada. Dois médicos ingleses, os irmãos Alexander e John Patterson, e um alemão, Otto Wucherer, de imediato perceberam a gravidade da situação e, três dias depois, emitiram o alerta: a terrível, contagiosa e mortífera febre amarela estava de volta ao Brasil, 200 anos depois de ter sido erradicada do país. Qual o resultado de sua ação? Bem, os três foram quase linchados.

Sim, pois, após uma reunião com o então presidente da província, o emérito visconde de São Lourenço, foram afrontados pelos não menos eméritos membros do Conselho de Salubridade Pública em pleno palácio. E, no dia 4 de dezembro, o governo emitiu nota afirmando que “a opinião de nossos facultativos está em oposição à dos médicos estrangeiros” e “a presente febre nada tem em si de contagiosa nem de assustadora, sendo os casos graves ou fatais que agora se registram meramente devidos à predisposição dos doentes a outras moléstias, ou aos sustos de que os doentes têm se deixado apoderar ou finalmente a tratamentos contrários à razão”. Assim, uma rígida medida profilática foi tomada: proibiu-se o dobrar dos sinos, “pois eles incutem nos doentes a ideia da morte, que muito agrava seu estado e pode até causá-la nos indivíduos mais nervosos”.

De Salvador, a febre amarela espalhou-se por todo o Brasil e calcula-se que tenha vitimado mais de 30 mil pessoas, 5 mil delas só em Salvador, quem sabe se não pelo letal dobrar dos sinos.

(...)

(Do jornal Zero, junho de 2020)

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Eduardo Bueno (Peninha), Porto Alegre, 30 de maio de 1958, é um jornalista, escritor e tradutor brasileiro.

sexta-feira, 19 de junho de 2020

Recordar é reviver

O tempo levou: um roteiro dos anos 1980

Jorge Luiz Bledow*


Vindo de Três Passos, cheguei à Capital, para morar, em 1980. Faz 40 anos. Eu achava que não me adaptaria, mas vivo em Porto Alegre até hoje.

Ia ao supermercado Castelão, do Menino Deus. Havia o Cine Marrocos, na avenida Getúlio Vargas, a Companhia do Sanduíche e a Pizzaria Chuca. Ali, mandávamos ver quem comia mais fatias. Acho que foi um dos primeiros rodízios de pizza. Era bom! Às vezes, jantava no Zepelim, na Getúlio com a Ipiranga. Abastecia no posto do Touring Club e frequentava o centro Comercial João Pessoa (o primeiro da cidade). A novidade era o cinema e, depois, ir ao café Paris, bem romântico. Estive lá muitas vezes, depois de assistir a um filme.

No primeiro ano, me matriculei no Instituto Pré-Vestibular (IPV), na Salgado Filho. Fiz o supletivo e pré-vestibular e consegui vaga no curso de Engenharia Civil da UFRGS, na qual ingressei em 1981. Ainda no centro, fui várias vezes à CRT para fazer ligações interurbanas (DDD). Não era como hoje. Precisava ir aonde houvesse cabine telefônica.

Também frequentei o inferninho Peter Pan. Lá, tinha uma jukebox, daquelas que se vê em filmes americanos antigos, em que se põe uma ficha e ela toca a música escolhida. Era um barato.

Comprei livros na Globo, da Rua da Praia, e na Sulina, da Borges de Medeiros, em frente ao Capitólio. Uma vez, fui ao Le Club. Nunca fui ao Água na Boca, que não era para o meu contracheque. Eu tinha um Fiat 147, azul-noite, e ia ao Taba, que ficava em Ipanema, na beira do rio. Era tempo da discoteca.

Frequentei o Rose Place, o Clube da Saudade, o Sandália de Prata, o Chippʼs e Fascinação. Tive um Passat Pointer 1983, baita carro! Vi show do Noel Guarany, na Reitoria, e também de um guri chamado Borghettinho, que tocava gaita-ponto no CTG 35.

Algumas vezes, almocei na Paçoquinha, em Canoas, mas, quando estudava na UFRGS, era no RU. Tomei café no Ribʼs, da Andradas. Ia à Pulperia, no Largo da Epatur. Ao Tio Flor, da Getúlio, e, algumas vezes, jantei no Vinha DʼAlhos. De madrugada, o lanche era no Cachorro do Rosário ou no Mac Dinhos, da São Luís, e no Jacaré, da Lima e Silva. Sopa era no Van Gogh, da República, ou no Luanda, na José do Patrocínio. Caipirinhas no Bate-Bate, de Ipanema. Pedalinho no lago da Redenção. Aniversários infantis com Tio Tôni.

Cheguei a viajar de Transbrasil e de Varig várias vezes.

Comíamos xis na Rótula do Papa. Aliás, estive na missa que ele rezou onde hoje há uma cruz em sua homenagem, perto do antigo Estádio Olímpico, hoje em ruínas.

Ainda se usava calças boca de sino. Comprei roupas na Mesbla, no Alfred, no Saco & Cuecão, na Escosteguy e na Hipo Imcosul. Eletrodomésticos na J.H. Santos e na Manlec. Material esportivo na Cauduro, na Couro Esporte e na Courolândia. Já tive poupança no Bando Sulbrasileiro e na Caixa Econômica Estadual. Revelei muitas fotografias, tiradas com minha Olympus Trip 35, na Cambial.

Vi filmes no Victória, Lido, Guarani, Cacique, Baltimore, Marrocos, Capitólio, Avenida, Roma e em outros. Até no Bailão do Cardoso eu já fui. Brinquei de festa do chope na Cristóvão e assisti a muitos audiovisuais do Flávio Del Mese no Stúdio, da Cidade Baixa. Ali perto, eu ia no Bar do Miro, onde, para não fazer barulho, aplaudia-se estalando os dedos. Aos domingos, às 19 h, começava Os Trapalhões. Depois, no Fantástico, o Chico Anysio fazia sua crônica engraçada e inteligente e, em vez dos cavalinhos, a Zebrinha anunciava o resultado da Loteria Esportiva. Uma vez, fiz 13 pontos. Deu a lógica. Ganhei o equivalente a meio salário mínimo e foi-se com isso toda a minha sorte de ficar rico.

Assisti à primeira temporada de Bailei na Curva, no Teatro do IPE, e a O Cabaré de Maria Elefante, no Renascença. Conheci o grupo Oi Nóis Aqui Traveiz. Aos domingos, dava uma passada no Brique, comia frango assado com polenta no Bom Fim e passeava na Redenção. Ali, uma cigana me disse: “Vejo uma morena na tua vida”.

Comprei apartamento, financiado em 25 anos, na Lima e Silva, em frente à antiga Cooban, que depois virou o Zaffari, que ainda existe. O resto... o tempo levou!

*****

*Jorge Luiz Bledow, engenheiro militar, que acaba de lançar o livro “Prende o Velhinho e Outras Trapaças”, com crônicas escritas durante a quarentena.

(Do Almanaque Gaúcho, de Zero Hora, junho de 2020)


quinta-feira, 18 de junho de 2020

Eu acuso

Jʼaccuse

Gilberto Schwartsmann, médico


Eu sonhei que estava em Paris. Era 13 de janeiro de 1898. Não era o intelectual Émile Zola quem assinava, na capa do jornal LʼAurore, a carta aberta ao presidente francês, intitulada Jʼaccuse − Eu Acuso. O signatário era eu. E o caso não era o Dreyfus.

Dirigia-me ao meu presidente. Alguém perguntou quem era eu para tal atrevimento. Respondi que um brasileiro, médico e professor, com uma vida dedicada a ensinar, pesquisar e cuidar da saúde das pessoas.

E sem qualquer vinculação partidária. Era por respeito ao meu país que o acusava de imprudência. Não se troca um ministro da Saúde que segue com rigor as recomendações dos órgãos competentes, em meio a uma terrível pandemia e por motivo fútil.

Eu o acusava de desrespeitar o distanciamento social e não usar máscara de proteção, medidas recomendadas no mundo inteiro para reduzir o contágio pelo vírus. Isto deixava a população confusa, sem saber o que fazer.

Eu o acusava de não exercer a liderança que se espera de um presidente num momento tão grave. Até pegar no sono, mais de 40 mil* brasileiros haviam morrido na pandemia. Mil mortes por dia.

Eu o acusava de questionar recomendações da OMS, instituição que é patrimônio da humanidade. Acabou com a varíola e a poliomielite, enfrentou a aids e promove a saúde em quase 200 países. E de comprometer a reputação da saúde pública brasileira, reconhecida no mundo pelo controle da tuberculose, o combate ao tabagismo, o tratamento da aids e por criar um sistema público de saúde, o SUS, num país de mais de 200 milhões de habitantes.

Eu o acusava por desqualificar recomendações das mais prestigiadas entidades médicas, contrárias ao uso empírico da cloroquina na covid-19, fazendo a sua apologia. Quando um presidente decide sobre medicamento?

E que ele não permitisse que seus apoiadores promovessem ataques a hospitais, jogassem fogo nas instituições da República e deixassem em paz as universidades, últimos rincões das liberdades democráticas.

Como no LʼAurore, eu reconhecia que era por livre vontade que eu publicava este manifesto. E, por minha formação familiar, era incapaz de cultivar por alguém sentimentos menores, como ódio ou rancor. Movia-me somente o amor à pátria.

No JʼAccuse, Zola dizia: “Receba, senhor presidente, minhas manifestações de mais profundo respeito”. Em meu sonho, eu pedia respeito aos direitos e liberdades do povo brasileiro. E que, no exercício da Presidência, ele não usasse termos de baixo calão. Fere a liturgia do cargo.

Acordei quando pedia que seu filho número tal − ele os chama assim − parasse de nos ameaçar com a volta do AI-5 e o fim da democracia. Ficava feio fazer isto na presença de um homem tão corajoso. Afinal, no sonho eu era Émile Zola.

(Do jornal Zero Hora, 16 de junho de 2020)

*40 mil mortos na data da publicação do texto. A cada dia o número de mortos e contaminados aumentarão muito mais...

P.S. Hoje já passou dos 100 mil...

P. S. Quando uma pessoa não tem empatia pelos ser humano, ela não se importa com ninguém!