sábado, 27 de junho de 2020

A cidade guardada na memória



Histórias e personagens de Porto Alegre 
nas lembranças do poeta
que mais escreveu sobre a cidade, nos seus 85 anos.

Mário Quintana*

Encomendaram-me um texto sobre Porto Alegre antigo, logo para mim que não sou o tipo de velho rememorativo, não sou daqueles que vive suspirando: − Ah! Os bons velhos tempos!... − os tempos são sempre bons, os velhos é que não prestam mais. E temo também o perigo das falsas recordações, embora não acredite na observação direta. Acontece que tenho tal poder de visualização que às vezes não sei se aquilo que evoco eu vi mesmo, ou foi algo que me contaram, ou apenas imaginei.

Quando ginasiano vim para Porto Alegre interno no Colégio Militar. Aos sábados, eu ia para a Biblioteca Pública e lia até o anoitecer. O pessoal de casa começou a estranhar minhas ideias, meu pai, em uma de suas vindas a Porto Alegre, foi até a biblioteca descobrir que livros eu costumava ler, e descobriu: poetas franceses e filósofos russos. Frequentei a Biblioteca Pública por muitos anos, amigos meus foram seus diretores − o Augusto Meyer em 1930 e o Reynaldo Moura em 1939. No tempo do Reynaldo, quando a gente queria mesmo um livro e não tinha, fazia-se a solicitação por escrito e eles providenciavam diretamente de Paris. A gente só lia em francês, pois naquele tempo Paris era a capital do espírito humano, um autor para ser conhecido tinha que ser traduzido primeiro para o francês.

Voltando ao Colégio Militar estudei lá até 1924. Não completei os estudos porque só estudava Português, Francês e História. O resto absolutamente não me interessava. Era sempre reprovado em Matemática. Como via que não iria adiante por culpa da raiz quadrada, raiz cúbica e outras bobagens, resolvi me empregar como caixeiro na Livraria do Globo. Meu pai veio me buscar, de nada adiantou o Mansueto Bernardi dizer que eu era um bom caixeiro e que gostava de livros. Meu pai ficou indignado. Imagina, o filho, um bom caixeiro. Ele era extraordinário, mas como todos os burgueses queria um filho doutor.

Depois de três anos como prático de farmácia em Alegrete voltei a Porto Alegre. Me estabeleci em uma pensão. Sempre morei em pensões ou hotéis. Onde eram as pensões? Sei lá! − Na Barros Cassal, na Rua do Rosário, na Dona Laura... As pensões sempre eram casas antigas e seus donos eram velhos e, portanto, muito morredores e quando eles morriam os herdeiros vendiam as casas e nos seus lugares construíam-se arranha-céus. As pensões não existem mais. Morei treze anos no Hotel Majestic. Hoje é a Casa de Cultura que leva meu nome, e eu considero isto uma conquista da poesia no Rio Grande do Sul. Portanto me sinto orgulhoso, não vaidoso. Por volta de 1929 ingressei na redação do jornal O Estado do Rio Grande, órgão da oposição, dirigido por Raul Pilla. Nesta época Porto Alegre era uma cidade pequena onde todos, ou quase todos se conheciam e as diversões eram os bares, os cafés, as galerias de arte e o Theatro São Pedro. Uma vez, o Telmo Vergara e eu fomos a um vernissage na Galeria do Grande Hotel, que ficava na Rua da Praia, próximo à Caldas Júnior. Lá encontramos o Flores da Cunha, que era o presidente do Estado, frente a frente nos cumprimentamos e ele disse:

− Que pena rapazes tão inteligentes estarem do outro lado.

O Telmo respondeu:

− O mesmo pensamos nós do senhor.

Havia muita educação entre as pessoas, tanto que quando o Ovídio Chaves e eu, completamente altos, queríamos entrar no Cabaré Oriente − era um cabaré dançante − o porteiro nos chamou a atenção:

− Os senhores não devem entrar, os senhores estão visivelmente...

Naquele tempo todo mundo usava chapéu... Na Rua da Praia, entre a Marechal Floriano e Praça da Alfândega, passeavam as moças, sempre acompanhadas. Era um desfile de modas, e a gente ficava de um lado para o outro. Já na zona do Mercado Público ficavam o meretrício e os homossexuais.

O Theatro São Pedro já era tradicional quando eu, moço, comecei a frequentá-lo e foi envelhecendo com a gente. − Somos da SAB! − Assim entrávamos no Theatro São Pedro. O porteiro nos deixava passar pensando que a SAB era uma sociedade muito importante, mas SAB queria dizer: Sociedade dos Amigos do Barone. O Dante Barone, diretor do Theatro São Pedro naquela época, era nosso amigo e conforme o público, se havia lugares, ele nos fazia um sinal. Assim a gente assistia a peças locais, vindas de fora e operetas. Gostávamos muito de operetas, tínhamos pavor à ópera. Foi aí que eu inventei que dueto de ópera parecia namoro de gato que nunca chegava às vias de fato e não deixava a gente dormir.

Foi no final de um espetáculo que eu e várias pessoas fomos parar em uma mesa da Confeitaria Central, que ficava no Largo dos Medeiros, com o Procópio Ferreira. Ia e vinha gente. Quando ficamos sozinhos e faltou assunto, ele fez o ar de quem esperava que eu pedisse autógrafo a uma figura tão importante, mas eu tinha orgulho dos 17 anos e fiquei quieto. Ele então, com um sorriso interior, pediu o meu autógrafo. Naquela tarde o Procópio Ferreira comeu dezenove pastéis de Santa Clara.

O maior prazer meu e do Sérgio Gouvêa era tomar um bonde, ir até o fim da linha e voltar a pé. Chegamos à perfeição de um dia vir a pé do fim da linha do Menino Deus até o centro. E o mais engraçado é que pelo caminho vínhamos tomando um chope em cada boteco, e Porto Alegre nesse tempo, como em toda cidade que se preze, tinha um boteco em cada esquina. Não foi por falta de descuido que cheguei a esta idade, mas atribuo isto a estas caminhadas diárias...

Quando o Rei Eduardo VIII da Inglaterra abdicou para casar-se com Madame Simpson frequentamos o Clube da Chave, fundado por Ovídio Chaves. Ficava na Vasco da Gama numa esquina onde havia um chorão. Funcionava da seguinte maneira: a gente pagava um tanto por mês de aluguel de uma chave e podia levar quem quisesse, mas não era nada de suspeito. Lembro do salão de danças com mesas em volta, era frequentado por gente da sociedade. Além de dançar podia-se ouvir poesias. Havia a Pérola Paganelli que recitava admiravelmente. Um destes recitais chamou-se Dezenove Poemas Dentro da Noite. Não me esqueço dele porque uns amigos meus foram sentar na escada e me abandonaram na mesa com uma jornalista argentina, uma velhota maluca, destas que fazem versos eróticos e que pegavam as minhas mãos e dizia:

− Yo quisiera ser antropófaga y devorar tus carnes palpitantes...

Um dia o Clube da Chave foi à falência porque todos eram amigos...

Mas a vida não era só os bares. Nós todos tínhamos fôlego, passávamos as noites em claro e depois trabalhávamos. Foi nessa época que traduzi para a Editora Globo obras de autores de peso como Proust, Virginia Woolf, Molière e outros. Eu tradutor do francês, os tradutores trabalhavam em espaços delimitados por divisórias que chamávamos de “baias”. Devo o fato de ser tradutor de francês a um hábito do tempo da minha infância, todos os rapazes aprendiam francês, e todas as moças aprendiam piano, minha mãe lecionava francês.

Um dia eu estava na Globo, trabalhando na minha “baia” quando chegou um figurão que me disse com um ar protetor:

− Tenho gostado muito dos seus versinhos.

Respondi:

−.Eu fico-lhe grato, doutor, pela sua opiniãozinha.

Sou conhecido como poeta, mas poeta não é uma profissão. A poesia não é uma profissão, é um estado, assim como o estado de graça ou o estado de coma, conforme a poeta. Minha profissão é jornalista, trabalhei muitos anos na redação do Correio do Povo. Para falar sobre isso prefiro transcrever um depoimento do secretário do jornal Adail Borges Fortes da Silva:

“... Corri os olhos pela sala da redação e vi, na sua mesa, em atitude contemplativa, olhando para a tela apagada da televisão e fumando fleumaticamente, Mario Quintana. Deu-me, então, o estalo. Apresentei-lhe o texto e pedi-lhe: − Dá uma ʽpenteadaʼ nesta página histórica...

“O que voltou à minha mesa foi uma coisa primorosa, um trabalho enxuto, conservando, ainda, todo o conteúdo original. É que Mario, com poucas e simples emendas, mas colocadas com precisão e onde deveriam, deu à reportagem o colorido e a leveza de que precisava.

“Foi assim que ʽlanceiʼ o Mario na ʽcopidescagemʼ da redação, isto é, no trabalho de reescrever matérias de importância. E era exatamente uma das poucas coisas que ele ainda não tinha feito, porque tudo o mais já fizera.”

Passei muito do meu tempo na redação do Correio do Povo. Muitos dos meus amigos vivos e mortos são de lá...

Mas foi no Chalé da Praça XV onde todos − Augusto Meyer, Athos Damasceno Ferreira, Reynaldo, os irmão Gouvêa: o Sérgio e o Paulo, e vou parar por aqui para não cometer nenhuma omissão − nos conhecemos porque poeta é uma raça estranha, a gente se reconhece. A nossa principal “aguada” era o Chalé. O chalé fazia parte da gente. Me lembro do “Bilu”, com o seu perfil perpendicular de cegonho sábio, o longo bico mergulhado − não no gargalo do gomil da fábula, não propriamente no canecão de chope, que era de fato o que estava acontecendo − mas no poço artesiano de si mesmo.

Me lembro de Reynaldo, redondo, pacato, amável, tão amável, pacato e redondo que parecia um desses personagens de romance policial que ninguém desconfia que seja o autor do último crime da mala. Me lembro do Cavalcanti, com sua cara silenciosa e receptiva de mata-borrão. Me lembro de mim, silencioso. Sim, a determinada hora éramos todos silenciosos... essa hora em que não é preciso dizer nada, nem mesmo o verso inesquecível de Valéry: “Oh mon bon compagnon de silence!”

Esse silêncio era apenas quebrado quando chegava o Athos, o Athos centrífugo e pirotécnico. Mas isto não perturbava o nosso silêncio, nem o próprio silêncio do Athos... pois havia um profundo e misterioso rio de silêncio que corria subterraneamente a todas as nossas palavras.

Era o rio da poesia?

O rio da harmoniosa confusão das almas?





Agora é apenas o rio do tempo que passou.


(Da Veja Rio Grande do Sul, julho de 1991)

*Quando, em julho 1991, o poeta completou 85 anos.

Mário de Miranda Quintana (Alegrete, 30 de julho de 1906 − Porto Alegre, 5 de maio de 1994) foi um poeta, tradutor e jornalista brasileiro.

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