Histórias e personagens de Porto Alegre
nas lembranças do poeta
nas lembranças do poeta
que mais escreveu sobre a cidade, nos seus 85 anos.
Mário Quintana*
Encomendaram-me um texto sobre
Porto Alegre antigo, logo para mim que não sou o tipo de velho rememorativo,
não sou daqueles que vive suspirando: − Ah! Os bons velhos tempos!... − os
tempos são sempre bons, os velhos é que não prestam mais. E temo também o
perigo das falsas recordações, embora não acredite na observação direta. Acontece
que tenho tal poder de visualização que às vezes não sei se aquilo que evoco eu
vi mesmo, ou foi algo que me contaram, ou apenas imaginei.
Quando ginasiano vim para Porto
Alegre interno no Colégio Militar. Aos sábados, eu ia para a Biblioteca Pública
e lia até o anoitecer. O pessoal de casa começou a estranhar minhas ideias, meu
pai, em uma de suas vindas a Porto Alegre, foi até a biblioteca descobrir que
livros eu costumava ler, e descobriu: poetas franceses e filósofos russos.
Frequentei a Biblioteca Pública por muitos anos, amigos meus foram seus
diretores − o Augusto Meyer em 1930 e o Reynaldo Moura em 1939. No tempo do
Reynaldo, quando a gente queria mesmo um livro e não tinha, fazia-se a
solicitação por escrito e eles providenciavam diretamente de Paris. A gente só
lia em francês, pois naquele tempo Paris era a capital do espírito humano, um
autor para ser conhecido tinha que ser traduzido primeiro para o francês.
Voltando ao Colégio Militar
estudei lá até 1924. Não completei os estudos porque só estudava Português,
Francês e História. O resto absolutamente não me interessava. Era sempre
reprovado em
Matemática. Como via que não iria adiante por culpa da raiz
quadrada, raiz cúbica e outras bobagens, resolvi me empregar como caixeiro na
Livraria do Globo. Meu pai veio me buscar, de nada adiantou o Mansueto Bernardi
dizer que eu era um bom caixeiro e que gostava de livros. Meu pai ficou
indignado. Imagina, o filho, um bom caixeiro. Ele era extraordinário, mas como
todos os burgueses queria um filho doutor.
Depois de três anos como prático
de farmácia em Alegrete voltei a Porto Alegre. Me estabeleci em uma pensão.
Sempre morei em pensões ou hotéis. Onde eram as pensões? Sei lá! − Na Barros
Cassal, na Rua do Rosário, na Dona Laura... As pensões sempre eram casas
antigas e seus donos eram velhos e, portanto, muito morredores e quando eles
morriam os herdeiros vendiam as casas e nos seus lugares construíam-se
arranha-céus. As pensões não existem mais. Morei treze anos no Hotel Majestic.
Hoje é a Casa de Cultura que leva meu nome, e eu considero isto uma conquista
da poesia no Rio Grande do Sul. Portanto me sinto orgulhoso, não vaidoso. Por
volta de 1929 ingressei na redação do jornal O Estado do Rio Grande, órgão da oposição, dirigido por Raul Pilla.
Nesta época Porto Alegre era uma cidade pequena onde todos, ou quase todos se
conheciam e as diversões eram os bares, os cafés, as galerias de arte e o
Theatro São Pedro. Uma vez, o Telmo Vergara e eu fomos a um vernissage na
Galeria do Grande Hotel, que ficava na Rua da Praia, próximo à Caldas Júnior.
Lá encontramos o Flores da Cunha, que era o presidente do Estado, frente a
frente nos cumprimentamos e ele disse:
− Que pena rapazes tão inteligentes
estarem do outro lado.
O Telmo respondeu:
− O mesmo pensamos nós do senhor.
Havia muita educação entre as
pessoas, tanto que quando o Ovídio Chaves e eu, completamente altos, queríamos
entrar no Cabaré Oriente − era um cabaré dançante − o porteiro nos chamou a
atenção:
− Os senhores não devem entrar,
os senhores estão visivelmente...
Naquele tempo todo mundo usava
chapéu... Na Rua da Praia, entre a Marechal Floriano e Praça da Alfândega,
passeavam as moças, sempre acompanhadas. Era um desfile de modas, e a gente
ficava de um lado para o outro. Já na zona do Mercado Público ficavam o
meretrício e os homossexuais.
O Theatro São Pedro já era
tradicional quando eu, moço, comecei a frequentá-lo e foi envelhecendo com a
gente. − Somos da SAB! − Assim entrávamos no Theatro São Pedro. O porteiro nos
deixava passar pensando que a SAB era uma sociedade muito importante, mas SAB
queria dizer: Sociedade dos Amigos do Barone. O Dante Barone, diretor do
Theatro São Pedro naquela época, era nosso amigo e conforme o público, se havia
lugares, ele nos fazia um sinal. Assim a gente assistia a peças locais, vindas
de fora e operetas. Gostávamos muito de operetas, tínhamos pavor à ópera. Foi
aí que eu inventei que dueto de ópera parecia namoro de gato que nunca chegava
às vias de fato e não deixava a gente dormir.
Foi no final de um espetáculo que
eu e várias pessoas fomos parar em uma mesa da Confeitaria Central, que ficava
no Largo dos Medeiros, com o Procópio Ferreira. Ia e vinha gente. Quando
ficamos sozinhos e faltou assunto, ele fez o ar de quem esperava que eu pedisse
autógrafo a uma figura tão importante, mas eu tinha orgulho dos 17 anos e
fiquei quieto. Ele então, com um sorriso interior, pediu o meu autógrafo. Naquela
tarde o Procópio Ferreira comeu dezenove pastéis de Santa Clara.
O maior prazer meu e do Sérgio
Gouvêa era tomar um bonde, ir até o fim da linha e voltar a pé. Chegamos à
perfeição de um dia vir a pé do fim da linha do Menino Deus até o centro. E o
mais engraçado é que pelo caminho vínhamos tomando um chope em cada boteco, e
Porto Alegre nesse tempo, como em toda cidade que se preze, tinha um boteco em
cada esquina. Não foi por falta de descuido que cheguei a esta idade, mas
atribuo isto a estas caminhadas diárias...
Quando o Rei Eduardo VIII da
Inglaterra abdicou para casar-se com Madame Simpson frequentamos o Clube da
Chave, fundado por Ovídio Chaves. Ficava na Vasco da Gama numa esquina onde
havia um chorão. Funcionava da seguinte maneira: a gente pagava um tanto por
mês de aluguel de uma chave e podia levar quem quisesse, mas não era nada de
suspeito. Lembro do salão de danças com mesas em volta, era frequentado por
gente da sociedade. Além de dançar podia-se ouvir poesias. Havia a Pérola
Paganelli que recitava admiravelmente. Um destes recitais chamou-se Dezenove Poemas Dentro da Noite. Não me
esqueço dele porque uns amigos meus foram sentar na escada e me abandonaram na
mesa com uma jornalista argentina, uma velhota maluca, destas que fazem versos
eróticos e que pegavam as minhas mãos e dizia:
− Yo quisiera ser antropófaga y
devorar tus carnes palpitantes...
Um dia o Clube da Chave foi à
falência porque todos eram amigos...
Mas a vida não era só os bares.
Nós todos tínhamos fôlego, passávamos as noites em claro e depois
trabalhávamos. Foi nessa época que traduzi para a Editora Globo obras de
autores de peso como Proust, Virginia Woolf, Molière e outros. Eu tradutor do
francês, os tradutores trabalhavam em espaços delimitados por divisórias que
chamávamos de “baias”. Devo o fato de ser tradutor de francês a um hábito do
tempo da minha infância, todos os rapazes aprendiam francês, e todas as moças
aprendiam piano, minha mãe lecionava francês.
Um dia eu estava na Globo,
trabalhando na minha “baia” quando chegou um figurão que me disse com um ar protetor:
− Tenho gostado muito dos seus
versinhos.
Respondi:
−.Eu fico-lhe grato, doutor, pela
sua opiniãozinha.
Sou conhecido como poeta, mas
poeta não é uma profissão. A poesia não é uma profissão, é um estado, assim
como o estado de graça ou o estado de coma, conforme a poeta. Minha profissão é
jornalista, trabalhei muitos anos na redação do Correio do Povo. Para falar sobre isso prefiro transcrever um
depoimento do secretário do jornal Adail Borges Fortes da Silva:
“... Corri os olhos pela sala da
redação e vi, na sua mesa, em atitude contemplativa, olhando para a tela
apagada da televisão e fumando fleumaticamente, Mario Quintana. Deu-me, então,
o estalo. Apresentei-lhe o texto e pedi-lhe: − Dá uma ʽpenteadaʼ nesta página
histórica...
“O que voltou à minha mesa foi
uma coisa primorosa, um trabalho enxuto, conservando, ainda, todo o conteúdo
original. É que Mario, com poucas e simples emendas, mas colocadas com precisão
e onde deveriam, deu à reportagem o colorido e a leveza de que precisava.
“Foi assim que ʽlanceiʼ o Mario
na ʽcopidescagemʼ da redação, isto é, no trabalho de reescrever matérias de
importância. E era exatamente uma das poucas coisas que ele ainda não tinha
feito, porque tudo o mais já fizera.”
Passei muito do meu tempo na
redação do Correio do Povo. Muitos
dos meus amigos vivos e mortos são de lá...
Mas foi no Chalé da Praça XV onde
todos − Augusto Meyer, Athos Damasceno Ferreira, Reynaldo, os irmão Gouvêa: o
Sérgio e o Paulo, e vou parar por aqui para não cometer nenhuma omissão − nos
conhecemos porque poeta é uma raça estranha, a gente se reconhece. A nossa
principal “aguada” era o Chalé. O chalé fazia parte da gente. Me lembro do
“Bilu”, com o seu perfil perpendicular de cegonho sábio, o longo bico
mergulhado − não no gargalo do gomil da fábula, não propriamente no canecão de
chope, que era de fato o que estava acontecendo − mas no poço artesiano de si
mesmo.
Me lembro de Reynaldo, redondo,
pacato, amável, tão amável, pacato e redondo que parecia um desses personagens
de romance policial que ninguém desconfia que seja o autor do último crime da
mala. Me lembro do Cavalcanti, com sua cara silenciosa e receptiva de
mata-borrão. Me lembro de mim, silencioso. Sim, a determinada hora éramos todos
silenciosos... essa hora em que não é preciso dizer nada, nem mesmo o verso
inesquecível de Valéry: “Oh mon bon
compagnon de silence!”
Esse silêncio era apenas quebrado
quando chegava o Athos, o Athos centrífugo e pirotécnico. Mas isto não
perturbava o nosso silêncio, nem o próprio silêncio do Athos... pois havia um
profundo e misterioso rio de silêncio que corria subterraneamente a todas as
nossas palavras.
Era o rio da poesia?
O rio da harmoniosa confusão das almas?
Agora é apenas o rio do tempo que passou.
(Da Veja Rio Grande
do Sul, julho de 1991)
*Quando, em julho 1991, o poeta
completou 85 anos.
Mário de Miranda Quintana (Alegrete, 30 de julho
de 1906
− Porto Alegre,
5 de maio
de 1994)
foi um poeta,
tradutor
e jornalista
brasileiro.
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