sábado, 20 de junho de 2020

Quando não se dá importância a uma pandemia



Febre verde-amarela

Eduardo Bueno

Como se fosse uma bofetada − ao mesmo tempo irônica e trágica − da mão do destino, o navio, embora norte-americano, chamava-se... Brazil. Havia zarpado de New Orleans, onde um pequeno surto de febre amarela já fora identificada, e logo fez escala em Cuba − sempre Cuba! −, onde a doença grassava solta. O vapor então seguiu seu rumo para Salvador, na Bahia. Chegou lá em 30 de setembro de 1849.

Como dois marujos haviam morrido a bordo − sendo sepultado no mar −, o Brazil não poderia aportar. Mas, suspeita-se, teria subornado as autoridades portuárias e obtido carta branca − a então chamada “carta de saúde” −, para desembarcar sua carga. E seus contaminados tripulantes circularam livremente pela cidade.

E foi assim que a febre amarela chegou ao Brazil, ops, ao Brasil. Febre verde-amarela, no caso.

Só que chegou e foi solenemente ignorada. Dois médicos ingleses, os irmãos Alexander e John Patterson, e um alemão, Otto Wucherer, de imediato perceberam a gravidade da situação e, três dias depois, emitiram o alerta: a terrível, contagiosa e mortífera febre amarela estava de volta ao Brasil, 200 anos depois de ter sido erradicada do país. Qual o resultado de sua ação? Bem, os três foram quase linchados.

Sim, pois, após uma reunião com o então presidente da província, o emérito visconde de São Lourenço, foram afrontados pelos não menos eméritos membros do Conselho de Salubridade Pública em pleno palácio. E, no dia 4 de dezembro, o governo emitiu nota afirmando que “a opinião de nossos facultativos está em oposição à dos médicos estrangeiros” e “a presente febre nada tem em si de contagiosa nem de assustadora, sendo os casos graves ou fatais que agora se registram meramente devidos à predisposição dos doentes a outras moléstias, ou aos sustos de que os doentes têm se deixado apoderar ou finalmente a tratamentos contrários à razão”. Assim, uma rígida medida profilática foi tomada: proibiu-se o dobrar dos sinos, “pois eles incutem nos doentes a ideia da morte, que muito agrava seu estado e pode até causá-la nos indivíduos mais nervosos”.

De Salvador, a febre amarela espalhou-se por todo o Brasil e calcula-se que tenha vitimado mais de 30 mil pessoas, 5 mil delas só em Salvador, quem sabe se não pelo letal dobrar dos sinos.

(...)

(Do jornal Zero, junho de 2020)

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Eduardo Bueno (Peninha), Porto Alegre, 30 de maio de 1958, é um jornalista, escritor e tradutor brasileiro.

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