Quintana na praça dos livros, em foto de 1983
O
poeta faleceu em 5 de maio de 1994. Sua memória, porém, permanece intocada
naquele recinto, materializada no bronze em que aparece ao lado do amigo Carlos
Drummond de Andrade.
Passados
28 anos, numa iniciativa da Associação Riograndense de Imprensa, Quintana retorna
ao palco da Feira do Livro através desta entrevista póstuma, com respostas
extraídas de sua vasta obra poética e de uma entrevista (confira, ao final, as
fontes de todas as frases do poeta).
O senhor nasceu no Alegrete, no dia 30 de julho de
1906. Confere?
No
calendário chinês, sou cavalo; no ocidental, leão e, no asteca, chuva. Nasci
prematuramente e fazia um grau abaixo de zero. Eram oito horas da noite quando
meu pai chamou minha irmã e meu irmão para dizer que eu havia nascido. Eles
pediram quatro vinténs para comprar rapadura. Foram ao mercado da esquina, que
estava quase fechando. Por isso souberam da hora. Quer dizer, eu fui saudado
com duas rapaduras de quatro vinténs.
Que lembranças guarda da infância?
Quando
guri, eu tinha de me calar à mesa: só as pessoas grandes falavam. Agora, depois
de adulto, tenho de ficar calado para as crianças falarem.
Como foram seus primeiros anos
escolares?
No
Colégio Militar, só estudava Português, Francês e História. O resto
absolutamente não me interessava. Era sempre reprovado em Matemática porque só
assinava as provas. Afinal de contas, o que eu tinha de ver com a raiz quadrada
e outras bobagens? E a raiz cúbica, então? O estudo da álgebra, sim, é
interessante. A gente lida com letrinhas.
O senhor chegou a trabalhar como
jornalista?
O
jornalismo me permitiu entrar em contato com este mundo, e a poesia, com
outros. Trabalhei no Estado do Rio Grande, de Raul Pilla. Foi o maior patrão
que eu tive. Traduzia telegramas e fazia uma seção intitulada Jornal dos
Jornais. Lia todos os jornais do Rio, de São Paulo e outros de Porto Alegre e
fazia um resumo. Era bem interessante, mas tinha que contar as letras para
fazer o título e subtítulo. Eu achava isso muito chato. Então, resolvi fazer as
coisas ritmadas. Cheguei a fazer um título de três colunas: no alto, um
alexandrino; abaixo, um decassílabo e, depois, um setissílabo. Ficou bonito,
muito bonito. Mas, no outro dia, o Raul Pilla veio perguntar quem tinha feito
aquilo. “Fui eu, doutor.” “Pois olha, seu moço, esse título está em total
desacordo com os meus editoriais. Por que o senhor não lê o Estado do Rio
Grande?” Eu não lia mesmo. Afinal, trabalhava nele.
Quais são suas preferências, em geral?
Sempre
gostei de cidades pequenas, paisagens, ruas, coisas comuns da vida de toda
gente: namorados, amantes, poemas de amor. Não quer dizer que eles sejam para
alguém em especial. As pessoas insistem em saber para quem são os poemas de
amor. Não são para ninguém. A gente ama no ar. Eu gosto é das coisas. As
coisas, sim!... As pessoas atrapalham. Estão em toda parte.
E de Porto Alegre, onde o senhor viveu
por tantos anos, que lembranças guarda?
Sinto
uma dor infinita das ruas de Porto Alegre por onde jamais passarei.
Como o senhor encara a vida?
Uma vida não basta apenas ser
vivida: também precisa ser sonhada.
E a fama atrapalha?
A fama é uma ambígua mescla
de gostosura e chatice.
O senhor pratica algum tipo de esporte?
O único esporte que pratico é
a luta livre com o meu anjo da guarda.
Como é ser poeta?
Poeta
é o que encontra uma moedinha perdida, aquele que empresta palavras loucas à
voz dispersa do vento. Ao poeta é dado por vezes fechar os olhos para ver as
imagens que guarda dentro de si e reconstruí-las no poema. Sonhar é acordar-se
para dentro.
Em 1967, o senhor foi agraciado pela
Câmara de Vereadores com o título de Cidadão Honorário de Porto Alegre. Lembra
a frase que marcou seu discurso de agradecimento?
Antes, ser poeta era um
agravante. Depois, passou a ser uma atenuante. Vejo agora que ser poeta é uma
credencial.
O senhor costuma participar de reuniões
sociais?
O
mais trágico dessas reuniões sociais é que elas são compostas unicamente de
terceiros.
Como classifica os livros?
Há
duas espécies de livros: uns que os leitores esgotam, outros que esgotam os
leitores.
Tem muitos amigos?
Amigo
é a criatura que escuta todas as nossas coisas sem aquela cara que parece estar
dizendo: “E eu com isso?”.
Por que preferiu não deixar filhos?
Os filhos são um subproduto do amor.
Que resposta dá àqueles que atrapalham a sua vida?
Todos
esses que aí estão atravancando o meu caminho, eles passarão... Eu passarinho.
Detesta alguma coisa, assim reservadamente?
Não gosto de estar dormindo
nem de estar morto perto de ninguém.
Alguma coisa lhe chamou a atenção na sua juventude?
Quando
completei quinze anos, meu compenetrado padrinho me escreveu uma carta, muito,
muito séria: tinha até ponto-e-vírgula! Nunca fiquei tão impressionado na minha
vida.
Aprecia o Carnaval?
Não gosto do Carnaval porque parece filme histórico italiano.
Costuma ser bem compreendido pelos seus leitores?
Quando
alguém pergunta a um autor o que ele quis dizer é porque um dos dois é burro.
O senhor vê qualidade no que se escreve hoje?
Uma página em branco é a virgindade mais desamparada que existe. Só por isso é
que abusam tanto dela, que fazem tudo dela...
O senhor costuma reler o que escreve?
Nunca
me releio. Tenho um medo enorme de me influenciar. É verdadeiramente
catastrófico quando um autor se transforma no seu discípulo.
Tem leitores fiéis, que sempre vão atrás de seus
livros?
Às vezes eu pesco um leitor. Outras vezes o leitor me pesca. Entre uma coisa e
outra, as águas vão passando.
O senhor trata da mesma forma todas as
pessoas que o procuram?
A indiferença é a mais refinada forma de polidez.
Que conselho dá a um poeta iniciante?
É preciso escrever um poema várias vezes para que dê a impressão de que foi
escrito pela primeira vez.
Sua opinião sobre os críticos literários?
Nunca
me acertei bem com os padres, os críticos e os canudinhos de refresco. O
crítico é um camarada que contorna uma tapeçaria e vai olhá-la pelo lado
avesso.
O livro é uma boa companhia?
O livro traz a vantagem de a
gente poder estar só e ao mesmo tempo acompanhado.
O senhor acredita em tudo o que escreve?
Se eu fosse acreditar mesmo
em tudo o que penso, ficaria louco.
O que recomenda a quem aprecia a bebida?
Quem bebe por desgosto é um
cretino: só se deve beber por gosto.
O que recomenda aos chamados formadores de opinião?
Quando dês opinião, nunca
deixes de escrever a data.
O senhor é do tempo dos antigos relógios
de parede. Guarda alguma lembrança deles?
O
mais feroz dos animais domésticos é o relógio de parede: conheço um que já
devorou três gerações da minha família.
Como o poeta está encarando a velhice?
Estou
nessa idade em que o juiz consulta o relógio e as arquibancadas já vão se
esvaziando.
O senhor já foi homenageado como estátua. Como se
sente?
O que há de mais triste em virar estátua é que a gente não pode coçar-se.
Como encara os chatos?
Há
duas espécies de chatos: os chatos propriamente ditos e os amigos, que são os
nossos chatos prediletos.
O que pensa da preguiça?
A
preguiça é a mãe do progresso. Se o homem não tivesse preguiça de caminhar, não
teria inventado a roda.
Como guardar segredo?
Não te abras com teu amigo.
Que ele um outro amigo tem. E o amigo do teu amigo possui amigos também.
O senhor acredita em Deus?
Se
eu acredito em Deus? Mas que valor poderia ter minha resposta, afirmativa ou
não? O que importa é saber se Deus acredita em mim.
Como define os analfabetos?
Os verdadeiros analfabetos
são os que aprenderam a ler e não leem.
O que pensa do autodidata?
O autodidata é um ignorante
por conta própria.
Acha que vale a pena viver?
Vale a pena viver – nem que seja para dizer que não vale a pena.
A esta altura da vida, como é o seu começo de cada
dia?
Quando abro cada manhã a
janela do meu quarto, é como se abrisse o mesmo livro, numa página nova.
O que sente quando olha para algum velho retrato?
Eis
que descubro um retrato meu, aos 10 anos. Escondo, súbito, o retrato. Sei lá o
que estará pensando de mim aquele guri! A recordação é uma cadeira de balanço
embalando sozinha.
Para finalizar, poeta. Já tinha passado
pela sua cabeça que um dia iria dar uma entrevista póstuma?
Por
vezes, quando estou escrevendo estes cadernos (Caderno H), tenho um medo idiota
de que saiam póstumos. Mas haverá coisa escrita que não seja póstuma? Tudo que
sai impresso é epitáfio.
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Fontes
das respostas:
“Caderno H”, “Sapato Florido”, “Apontamentos de História
Sobrenatural”, “A Vaca e o Hipogrifo”, “Da Preguiça como Método de Trabalho”,
“Porta Giratória”, “A Cor do Invisível”, Caderno de Sábado do jornal Correio do
Povo e “Quintana, Poeta” (perfil da série “Autores Gaúchos”, IEL, l988).
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Jornalista, escritor, diretor da Associação Riograndense de Imprensa (ARI).
(Do caderno DOC de Zero Hora, 30 de outubro de 2022)