Debate
Claudia Tajes
Começa com um dos debatedores atirado do sofá, vendo o Instagram no celular. A outra debatedora entra na sala.
− Jorge, amanhã eu quero o teu guarda-roupa arrumado, com tudo dobradinho nas prateleiras e nas gavetas.
− Amanhã eu tenho outras prioridades. Vou encaixar o quarto no meu plano de ação para os próximos dias.
− Vou te dar plano de ação. O teu quarto está virado em uma pocilga. A quantidade de meias sem par já passou de todos os limites. Juntei umas 12, todas duras, furadas, fedorentas. E o cheiro de cigarro, então? Tu tem* coragem de fumar dentro do quarto sabendo que o teu irmão pequeno tem asma? Eu nem sabia que tu fumava*!
− Mãe, em primeiro lugar, eu exijo respeito ao meu espaço. Tu deter* o poder econômico nessa casa não faz de ti minha dona.
− Aqui eu detenho os meios de produção, também. Porque tu, imprestável, não é* capaz de lavar um prato. Nunca arrumou* nem a tua cama, quanto mais juntar esse monte de copo que deixa* espalhado por aí.
− Eu estudo, não é esse o combinado? Cada qual com o seu papel, um sem interferir no lugar do outro, todos dando o seu melhor por uma sociedade em equilíbrio.
− Equilíbrio, menos no meu orçamento, com o tanto de aula particular que eu pago para tu passar* a cada trimestre. Tu pegou* oito recuperações, Jorge. OITO. Até de Educação Física, a única matéria que tu gostava*!
− Agora eu estou mais ligado nas coisas da filosofia. Meu quarto é o reflexo do meu pensamento, é a tradução da minha preocupação com as minorias.
− Só pode* estar de brincadeira com a minha cara. Minoria, naquela esculhambação, só as pulgas e as baratas. Isso se já não forem maioria.
− Eu não vou entrar em uma discussão dialética contigo.
− Jorge, custa tu arrumar* teu quarto?
− Acho que nós temos as nossas diferenças mas, no fundo, queremos a mesma coisa: condições de vida melhores para todos.
− Para a tua vida ficar melhor, só se tu reencarnar* como filho do Luciano Huck.
− Nós temos que nos unir contra o mal maior, que é o Seu Olavo, o vizinho do bloco B, que chutou o Fidel porque achou que a coleira vermelha dele era uma indireta comunista. Eu estou fazendo um abaixo-assinado para levar na próxima reunião de condomínio.
− O que o Seu Olavo tem a ver com o teu quarto, Jorge? Tu está* fugindo do assunto. Eu quero saber a que horas tu vai* arrumar aquela espelunca.
− Os guris estão me chamando para jogar Call of Duty. Depois a gente conversa.
− Vai* fugir do debate? Não tem* vergonha? Não honra* as calças que tu veste*?
− Começou a baixar o nível. Não vou aceitar provocações baratas. Fui!
− Não vai* nem fazer as considerações finais?
− Preciso da minha camiseta do colégio. Se eu for sem ela amanhã, a diretora disse que eu não entro. Mais uma falta e fico de recuperação em Educação Artística também. Me ajuda a encontrar?
− Valei-me, meu Paulo Freire.
− A gente funciona melhor quando une as forças, né? Foi tu quem me ensinou* isso.
− Amanhã a gente debate esse ponto. Agora tira esse tênis podre do meu sofá e baixa o volume da TV.
Encerra com Seu Olavo, no bloco B, ouvindo os tiros do videogame e chutando a parede.
(Do caderno donna de Zero Hora, outubro de 2022)
* A linguagem utilizada nesta crônica é do porto-alegrês e gauchês puro, onde o “tu” concorda com o verbo na 3ª pessoa do singular, como se usasse o pronome de tratamento “você”, muito comum na linguagem coloquial dos gaúchos do Sul.
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