segunda-feira, 24 de outubro de 2022

Confrontos são coisas do dia a dia

 Debate

Claudia Tajes

Começa com um dos debatedores atirado do sofá, vendo o Instagram no celular. A outra debatedora entra na sala. 

− Jorge, amanhã eu quero o teu guarda-roupa arrumado, com tudo dobradinho nas prateleiras e nas gavetas. 

− Amanhã eu tenho outras prioridades. Vou encaixar o quarto no meu plano de ação para os próximos dias. 

− Vou te dar plano de ação. O teu quarto está virado em uma pocilga. A quantidade de meias sem par já passou de todos os limites. Juntei umas 12, todas duras, furadas, fedorentas. E o cheiro de cigarro, então? Tu tem* coragem de fumar dentro do quarto sabendo que o teu irmão pequeno tem asma? Eu nem sabia que tu fumava*! 

− Mãe, em primeiro lugar, eu exijo respeito ao meu espaço. Tu deter* o poder econômico nessa casa não faz de ti minha dona. 

− Aqui eu detenho os meios de produção, também. Porque tu, imprestável, não é* capaz de lavar um prato. Nunca arrumou* nem a tua cama, quanto mais juntar esse monte de copo que deixa* espalhado por aí. 

− Eu estudo, não é esse o combinado? Cada qual com o seu papel, um sem interferir no lugar do outro, todos dando o seu melhor por uma sociedade em equilíbrio. 

− Equilíbrio, menos no meu orçamento, com o tanto de aula particular que eu pago para tu passar* a cada trimestre. Tu pegou* oito recuperações, Jorge. OITO. Até de Educação Física, a única matéria que tu gostava*! 

− Agora eu estou mais ligado nas coisas da filosofia. Meu quarto é o reflexo do meu pensamento, é a tradução da minha preocupação com as minorias. 

− Só pode* estar de brincadeira com a minha cara. Minoria, naquela esculhambação, só as pulgas e as baratas. Isso se já não forem maioria. 

− Eu não vou entrar em uma discussão dialética contigo. 

− Jorge, custa tu arrumar* teu quarto? 

− Acho que nós temos as nossas diferenças mas, no fundo, queremos a mesma coisa: condições de vida melhores para todos. 

− Para a tua vida ficar melhor, só se tu reencarnar* como filho do Luciano Huck. 

− Nós temos que nos unir contra o mal maior, que é o Seu Olavo, o vizinho do bloco B, que chutou o Fidel porque achou que a coleira vermelha dele era uma indireta comunista. Eu estou fazendo um abaixo-assinado para levar na próxima reunião de condomínio. 

− O que o Seu Olavo tem a ver com o teu quarto, Jorge? Tu está* fugindo do assunto. Eu quero saber a que horas tu vai* arrumar aquela espelunca. 

− Os guris estão me chamando para jogar Call of Duty. Depois a gente conversa. 

− Vai* fugir do debate? Não tem* vergonha? Não honra* as calças que tu veste*? 

− Começou a baixar o nível. Não vou aceitar provocações baratas. Fui! 

− Não vai* nem fazer as considerações finais? 

− Preciso da minha camiseta do colégio. Se eu for sem ela amanhã, a diretora disse que eu não entro. Mais uma falta e fico de recuperação em Educação Artística também. Me ajuda a encontrar? 

− Valei-me, meu Paulo Freire. 

− A gente funciona melhor quando une as forças, né? Foi tu quem me ensinou* isso. 

− Amanhã a gente debate esse ponto. Agora tira esse tênis podre do meu sofá e baixa o volume da TV. 

Encerra com Seu Olavo, no bloco B, ouvindo os tiros do videogame e chutando a parede.  

(Do caderno donna de Zero Hora, outubro de 2022) 

* A linguagem utilizada nesta crônica é do porto-alegrês e gauchês puro, onde o “tu” concorda com o verbo na 3ª pessoa do singular, como se usasse o pronome de tratamento “você”, muito comum na linguagem coloquial dos gaúchos do Sul.

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