domingo, 9 de outubro de 2022

Um poema de Mário Quintana

 De Gramática e de Linguagem

E havia uma gramática que dizia assim:

“Substantivo (concreto) é tudo quanto indica

Pessoa, animal ou cousa: João, sabiá, caneta”.

Eu gosto é das cousas. As cousas, sim!...

As pessoas atrapalham. Estão em toda parte. Multiplicam-se em excesso.

As cousas são quietas. Bastam-se. Não se metem

com ninguém.

Uma pedra. Um armário. Um ovo. (Ovo, nem sempre,

Ovo pode estar choco: é inquietante...)

As cousas vivem metidas com as suas cousas.

E não exigem nada.

Apenas que não as tirem do lugar onde estão.

E João pode neste mesmo instante vir bater

à nossa porta.

Para quê? não importa: João vem!

E há de estar triste ou alegre, reticente ou falastrão,

Amigo ou adverso... João só será definitivo

Quando esticar a canela. Morre, João...

Mas o bom, mesmo, são os adjetivos,

Os puros adjetivos isentos de qualquer objeto.

Verde. Macio. Áspero. Rente. Escuro. Luminoso.

Sonoro. Lento. Eu sonho

Com uma linguagem composta unicamente de adjetivos

Como decerto é a linguagem das plantas e dos animais.

Ainda mais: eu sonho com um poema

Cujas palavras sumarentas escorram

Como a polpa de um fruto maduro em tua boca,

Um poema que te mate de amor

Antes mesmo que tu lhe saibas o misterioso sentido:

Basta provares o seu gosto... 

Mário Quintana 

(1906-1994) 

Em: “Novos Poemas” (1966)

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