domingo, 2 de outubro de 2022

É primavera, Mirica

 Paulo Mendes  

   

Foto de Guilherme Almeida

No galho da velha laranjeira, ao lado das taquareiras, onde os guaxos costumavam se juntar mugindo ao final do dia, um sabiá piou: “triri, triri, triri...piuu, piuu, piuu, piuu, piuu...”, depois bateu asas e alçou voo no rumo das ruínas do velho matadouro do finado Maboni, mas no piquete, impulsionado por uma aragem que vinha lá dos lados da sanga, com cheiro de amoras roxas, desviou a rota e veio em direção a nós que estávamos dentro do bolicho. Era uma manhã ensolarada de setembro, havia um cheiro de rosas no ar, e o pássaro irrompeu pela porta, pousou no balcão engraxado, sujo de fumo em corda e querosene, olhou desconfiado como guri novo em baile e, de novo, largou o grito: piuu, piuu, piuu, piuu... Dona Mirica, bolicheira e minha mãe, deixou o que estava fazendo na cozinha, arremangou as mangas de sua velha camisa xadrez e veio ver o que estava acontecendo. Ao se dar de cara com o ousado sabiá nem se perturbou, apenas virou-se para mim e disse fazendo um muxoxo com desdém: “É primavera...” 

Ah, Mirica, é primavera de novo. Lembra? Tu enchias a casa de flores silvestres, tu que tinhas as mãos calejadas de lida na casa, na mangueira e na lavoura, era uma mulher tão delicada por dentro. Eu sempre soube, Mirica. Naquela época, o que mais queria era sentir tua mão me penteando antes de ir para a parada esperar o Amarelão, o Gemada, o ônibus que nos levava para o colégio. Depois cresci, paraste de me pentear, mas não de me cobrar o asseio, de andar limpo e bem apresentado. “Pobreza não quer dizer sujeira”, me ensinava. Olhava se tinha me lavado direito, examinava as orelhas, as unhas, se os sapatos estavam limpos. Depois dizia: “Vá, meu filho.” Eu ia, convicto de que estava preparado, porque tinha uma pessoa que me orientava. Uma “personal stylist” campeira. 

Mirica era minha mãe adotiva, mas foi o que melhor poderia ter me acontecido. Tão sensível e amorosa, tanto que gostava que minha mãe biológica, Anália, fosse sempre me visitar. “Mirica, quando tu vais me devolver o Paulinho?”, brincava Anália. “Sou mãe por querer.” Era verdade. Ela foi de trem a Cacequi e ajudou Anália, que me pariu quando era apenas uma menina e não tinha condições de me criar, e levou o guri pela mão para a Vila Rica. Era uma primavera, eu acho, porque lembro do campo florido de maria-mole em frente às casas, e neste dia outro sabiá piava quando cheguei...piuu, piuu, piuu, piuu, triri, triri, triri, triri, triri. Sempre que estou feliz penso na infância e ouço ao longe o piar alegre de um sabiá. 

Foi numa primavera que escrevi um poema para Belinha, a guria que me apaixonei no colégio. Ela era linda, seus longos e esvoaçantes cabelos dourados pareciam um trigal maduro, um par de olhos de açudes, além de um jeito gracioso de sorrir e olhar o mundo, assim de revesgueio. Já tive meus quentes verões, meus amenos outonos e meus invernos tristes, mas a estação das flores me traz uma vontade tão forte de viver que penso na Mirica, nos amores perdidos, no pai, no irmão e nos amigos. Em tudo. Parece um potro que galopa no infinito. Como um sábado com cheiro de flores e com um sabiá piando sobre um balcão esquecido. Porque sempre haverá uma primavera para cantar doce e feliz dentro de nós. 

(Da coluna Campereadas, no Correio do Povo,

1° de outubro de 2022)


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