domingo, 20 de janeiro de 2019

Um Tipo do Rio Grande do Sul

 Do folk poético recolhido por Carlos Von Kozeritz e publicado em 1880,
encontramos esta interessante estrofe:

Olha, ilustre Mingote,
Sei que vais para a fronteira;
Cuidado com a brincadeira
Com gente de certo lote;
Ali há muita aruá
Que café nunca trocou
O antigo chiripá;
Se vires algum clinudo,
Barbacena, cor tostada
Que troteia pela estrada
Com feições de botocudo
E franjas no chiripá,
Deixa andar o cabeçudo.

Os “Gaúchos”


A quem estaria se referindo − ao falar em “ferocidade e falta de civilização de muitos habitantes desse vasto e ainda despovoado território” − a Carta Régia criadora da Comarca de São Pedro?

Provavelmente aos gaúchos, no seu andar errante pelas planícies e coxilhas, em evidente desdém para com a civilização direitinha. Gente capaz de jogar a vida ou a morte nas duas únicas alternativas do jogo do osso ou tava: “culo” e “suerte”.

Dessa gente deixou-nos um eloquente relato o viajante Nicolau Dreys:*

“Os gaúchos, nômades, estão em todas as partes onde há estâncias ou charqueadas, em que servem de peões. Parecem pertencer a uma sociedade agine, isto é, sem mulheres, tais como os antigos tártaros. Pelo menos, aparecem geralmente sem mulheres e manifestam mesmo pouca atração para elas (felizmente para seus vizinhos). Formaram-se originariamente do contato da raça branca com os indígenas. Sem chefes, sem leis, sem polícia, não têm da moral social senão as ideias vulgares, e, sobretudo, uma espécie de probidade condicional que os leva a respeitar a propriedade de quem lhes faz benefício ou de quem os emprega ou neles deposita confiança.”

“Convencido de que não lhe faltará mantimentos enquanto o laço não lhes faltar, o gaúcho veste-se com o estritamente necessário. Com o chiripá − pedaço de baeta amarrado em redor do corpo, da cintura para baixo. Por cima do chiripá, o cingidor − espécie de avental de couro cru destinado a receber a fricção do laço quando o animal faz força sobre ele. Uma camisa, se a tem. Uma jaqueta sem mangas. Um par de ceroulas com franjas compridas nas extremidades inferiores, e às vezes uma par de calças por cima. Um lenço, quase sempre amarrado à cabeça. Um chapéu roto. Raras vezes um poncho completo; em lugar desse, um pedaço de baeta vermelha.”

“O gaúcho parece apreciar o dinheiro, menos para suprir suas precisões, que são poucas, do que para satisfazer suas paixões ou alguns gostos instantâneos. Ele quer dinheiro principalmente para jogar ou para adquirir a posse de qualquer brinquedo que, como nas crianças, excitou sua cobiça passageira. Por isso, enquanto tem dinheiro ele pouco trabalha. O tempo passa-se em jogar, tocar ou escutar uma guitarra nalguma pulperia, e, às vezes, porém com raridade, dançar uma espécie de chula grave, que vimos praticar por alguns deles. Quanto ao mais, pouca propensão parecem ter para os licores espirituosos, e a embriaguez é coisa quase nunca aparecida entre esses homens cujas disposições taciturnas e apáticas pouco se conciliam com a loquacidade e movimentos desordenados da bebedice.”

(Do livro “Rio Grande do Sul, prazer em conhecê-lo”, de Barbosa Lessa)

Jogo do osso, de Glênio Biancheti

*Nicolau Dreys (França, 1781 - Rio de Janeiro, Brasil, 1843) foi um militar, comerciante e viajante francês que percorreu o Rio Grande do Sul no início do século XIX. Chegou no Brasil em 1817, estabelecendo-se no comércio no Rio de Janeiro. Em dezembro do mesmo ano viajou para Porto Alegre onde estabeleceu comércio até 1828.

Em 1839, o comerciante francês Nicolau Dreys publicou no Rio de Janeiro o livro Notícia descritiva da Província do Rio Grande de São Pedro do Sul, considerado, pelo próprio autor, como parte de uma obra bem maior, que descrevia observações de sua longa estada no Brasil meridional e que ficara inédita devido aos altos custos tipográficos. Esse escrito é de considerável importância, pois traça um quadro descritivo, rico em informações, do Rio Grande do Sul à época da formação do Estado nacional brasileiro e da fomentação revolucionária que resultou na Guerra Civil de 1835. Dreys permaneceu dez anos na Província, aproximadamente entre 1818 e 1828, boa parte desse tempo na Vila do Rio Grande. Emigrado político, serviu no seu país natal como militar e funcionário público; “em 1815 a denominada Santa Aliança provocou o exílio dos bonapartistas, que procuraram abrigo em outros países” (FLORES, 1990: 9), como Dreys, que veio para o Brasil com a família em 1817. Ficou pouco tempo no Rio de Janeiro, de onde se deslocou para o Rio Grande do Sul. “O fato de haver sido militar em seu país teria facilitado o ingresso nas forças rio-grandenses que (...) combatiam as tropas de Artigas, na fronteira do Uruguai” (BARRETO, 1973: 453), porém Dreys dedicou-se basicamente ao comércio.

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