Augusto Meyer
O pinheiro engalanado acabou
praticamente suplantando no Rio Grande do Sul a tradição portuguesa do
presépio, com bailes pastoris, cheganças e reisados. Quando muito, armado dum
presepe de modestas proporções ao pé da árvore, aliaram-se as duas tradições
num encontro sugestivo de convivência.
Segundo pesquisas de O. Winckelmann
(Fursorgewesen der Stadt Strassburg, I, 146), há notícia de venda de pinheiros
para a festa do Natal já em 1539. Parece comprovada a origem pagã desse
costume. No ato de erigir-se em pleno inverno um pinheiro de ramaria sempre
verde, ainda podemos entrever uma vaga reminiscência de magia propiciatória;
era como assegurar o advento de um "ano verde", com pressuposto de
amenidade e fartura.
No Rio Grande do Sul, os emigrantes
alemães, que introduziram esse costume, adotaram o nosso pinheiro da Serra, a
araucária brasileira com a vantagem inegável de seu esgalhamento regular,
formando uma copa em candelabro ou umbela. Diz o etnólogo Claude Lévi-Strauss
sobre as nossas coníferas: “Superpondo em torno do tronco as bandejas
hexagonais dos seus ramos e alargando-as até à última, que se expande como uma
gigantesca umbela, é árvore que faria as delícias de um Baudelaire”.
Já não vejo os pinheiros do meu
tempo, com suas agulhas esmaltadas e agressivas, a rígida simetria dos seus
ramos, o bom cheiro de resina e pinhão descascado nos longos serões de inverno.
A seu lado, o pinheiro europeu, de galhos descaídos e ramaria verde-negra,
encolhido e murcho, dá uns ares de mendigo friorento. Nos casarões de outros
tempos, com pé-direito elevado, e onde tudo respirava mais espaço, era possível
armar um enorme pinheiro no Natal, que parecia diretamente transplantado da
floresta de Brocelianda por toda uma companhia fervilhante de gnomos barbudos,
da noite para o dia. Esperávamos, na treva do comprido corredor, o sinal da
campainha, a convocar o nosso deslumbramento. Véspera do Natal. Escancarava-se
a porta, e olhos, e pernas, e mãos, para que vos quero? A estrela de Belém,
cimeira, quase tocava no teto. Rutilante de ouropéis e lianas prateadas, a
maravilhosa árvore frutificava em bolas coloridas, com toda uma palpitação de
línguas de fogo na ponta dos ramos... Provocava uma verdadeira paralisia de
espanto a profusão de balas-de-estalo, pequenos brinquedos, fôrmas de maçapão,
chocolate e açúcar, e não hei de esquecer aqueles bastões de goma que vinham da
Inglaterra, suculentas jujubas que os anos não trazem mais...
A tradição do Natal, Entrada do Ano e
Dia de Reis, sob a forma de reisado, ainda sobrevive em certas regiões do Rio
Grande, como observou o meu amigo Paixão Cortes, principalmente o litoral e as
bandas ribeirinhas do Jacuí e Taquari. Dos Pastoris, danças e cantos que, de
Natal a Reis, tomavam a feição de representações em homenagem ao nascimento de
Jesus, diante do presepe, só há notícia muito vaga e parece tradição extinta.
Como nem sempre os cantadores de um
terno também são instrumentistas, é variável o número de participantes, mas
geralmente não vai além de oito figuras obrigatórias: o mestre e o ajudante;
contramestre e ajudante; o tiple; o tambor; o triângulo e a rabeca. O mestre,
em primeira voz, abre o canto, acompanhado de seu ajudante, em segunda voz. O
verso é então repetido pelo contramestre e seu ajudante. O tiple, quase sempre
uma criança, intervém apenas para sustentar as fermatas. Viola, rabeca, violão,
gaita, caixa e triângulo são de tradição e uso mais ou menos continuado.
A comemoração em verso cantado
abrange quatro períodos: véspera de Natal, dia de Natal, de 25 ao Ano Novo e de
1º de janeiro ao dia de Reis. O canto obedece a uma sequência tradicional, com:
Chegada, Entrada, Louvação, Peditório, Agradecimento e Despedida.
Na Chegada, o terno canta uma saudação ao dono
da casa, justificando a visita:
Agora mesmo cheguei,
Botei o pé na calçada.
Vim fazer uma visita
Aos donos desta morada.
Botei o pé na calçada.
Vim fazer uma visita
Aos donos desta morada.
Meu senhor, dono da casa,
Com licença do senhor
Querem entrar nesta casa
Baltazar, Gaspar, Melchior.
Com licença do senhor
Querem entrar nesta casa
Baltazar, Gaspar, Melchior.
Se o dono da casa, que ouvia até esse
momento a saudação no mais profundo silêncio, de portas e janelas cerradas e
inteiramente às escuras, manda acender as luzes, é o sinal do convite: pode
entrar. E rompe então o segundo movimento, o canto da Entrada:
Pelo buraco da chave
Vejo a vela reluzir.
Eu já tenho féem Deus
Que a porta nos vem abrir.
Vejo a vela reluzir.
Eu já tenho fé
Que
Porta aberta, luz acesa.
Sinal de muita alegria.
Entro eu, entra meu terno.
Entra toda a companhia.
Sinal de muita alegria.
Entro eu, entra meu terno.
Entra toda a companhia.
Só então, acolhidos todos na casa, e
quase sempre depois de uma breve adoração do presepe, começa a desenvolver-se o
tema natalino propriamente dito, envolvendo o seguinte ciclo: Anunciação,
Nascimento, Estrela-guia, Reis Magos, Adoração, Oferendas. A cada passo,
corresponde uma “cantoria” adequada. O texto, acompanhado de anotação musical,
foi recolhido em várias localidades pelo infatigável pesquisador do populário
gaúcho J. C. Paixão Cortes, e vem reproduzido em seu trabalho Terno de Reis,
cantigas do Natal gaúcho (Porto Alegre, 1960).
Depois de ouvir a Louvação, isto é, o
desenvolvimento completo do tema natalino, o dono da casa oferece comes e
bebes, encerrando-se a comemoração com o Agradecimento e a Despedida.
Não sobra espaço aqui para amostra
menos apressada e incompleta desse registro; só a Louvação perfaz o total de
152 quadrinhas. Quero deixar apenas constando que a recusa de algum pão-duro em
acender as luzes foi avisadamente prevista. Como esclarece o pesquisador: “Nem
sempre os tiradores têm a sorte de um belo acolhimento. É o caso que acontece
quando o dono da residência não abre a porta do seu lar, deixando o terno a
cantar para as estrelas e a refrescar o lombo com o sereno da noite”. Dá-se a
princípio uma derradeira tentativa:
Acordai, se estais dormindo,
Neste sono tão profundo.
Os anjos do céu não dormem
Para que dormir no mundo?
Neste sono tão profundo.
Os anjos do céu não dormem
Para que dormir no mundo?
Mas, se a
resposta não vem, retira-se o terno, cantando ainda ao retirar-se:
Meu povo, vamos embora
Para a consciência eu apelo.
Jesus Cristo que compense
Este barba-de-farelo.
Para a consciência eu apelo.
Jesus Cristo que compense
Este barba-de-farelo.
Este terno cantou agora
E não para de cantar.
Este barba-de-farelo
Não tem nada pra nos dá.
E não para de cantar.
Este barba-de-farelo
Não tem nada pra nos dá.
Como aproveitamento literário, o
"tema do presépio" sugeriu ao nosso grande regionalista João Simões
Lopes Neto uma das obras-primas do conto natalino, essa prova de engolir fogo,
especialmente armada para desafiar a originalidade dos escritores. É, sem
dúvida, assunto que não perdoa, e acaba quase sempre no inevitável e
melancólico: Mudaria o Natal ou mudei eu?
(Meyer, Augusto.
"Natal no Sul". Correio da Manhã,
22 de dezembro de 1962)
22 de dezembro de 1962)
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