Orestes Barbosa *
Era madrugada alta quando o rapaz magro e pálido bateu o portão largo do palacete e caminhou, com as mãos nos bolsos do capote, olhando a calçada na rua Conde de Bonfim.
De repente, o rapaz magro ouviu o ruído de ferro de um bonde e parou num poste.
Fez, à distância, o sinal para o motorneiro. Mas o motorneiro não respeitou o sinal e o veículo passou num clarão veloz.
Os vendedores ambulantes que àquela hora se dirigiam para o centro da cidade − quitandeiros, peixeiros e jornaleiros que sobraçavam o encalhe da opinião − ficaram indignados com a atitude do motorneiro cujo veículo não parava. Corria sempre, numa alucinação.
Os fiscais da Light, habituados à meia-marcha que os motorneiros sempre fazem, mesmo fora dos postes de paradas, mostrava-se surpresos com a desatenção do subalterno e gesticulavam seus protestos para o condutor.
Este fazia uns gestos nervosos, como quem dizia:
“Que posso fazer?”
E o bonde, com a figura do motorneiro, ereto, que segurava vigorosamente com a mão direita o volante e com a esquerda o freio de ar − corria, louco, uivando, nos trilhos de aço.
Até o largo do Estácio, o condutor vinha entre os dois últimos bancos, olhando o relógio, a conferir os algarismos da féria.
Do largo do Estácio em diante, atentou mais no procedimento do motorneiro e foi para a plataforma pensar.
A tabuleta estaria em branco?
Mas, se estivesse em branco, os mercadores que se dirigiam às “Barcas” não mandariam o carro parar.
Quis ir perguntar ao motorneiro por que motivo desobedecia assim.
Mas era condutor.
A sua responsabilidade era pelos sinais de saída.
Além disso, tivera, na véspera, uma discussão com o motorneiro por causa da abertura de chaves.
O motorneiro não queria parar, não parasse.
E o bonde continuava na vertigem, iluminado e vazio, com o motorneiro impassível.
Entrava e saía ruas.
Chegou à Cidade.
Atravessou, como um risco de fogo, a avenida Rio Branco.
E desceu, num silvo, a reta da rua da Assembleia.
Quando chegou à linha circular da praça Quinze, ganhou um impulso de fúria.
Com o choque violento da curva, o corpo do motorneiro recuou.
E, recuando, puxou, com o braço duro, o volante do motor, tombando longo, de bruços, no freio de ar.
O carro parou instantaneamente.
O motorneiro vinha morto desde a Muda. **
(Aldeia Campista, 1923 e de O pato preto, 1927)
No livro “As vozes da Metrópole”, de Ruy Castro)
* Orestes Barbosa (1883 – 1966) é o letrista da antológica canção “Chão de Estrelas”, que Sylvio Caldas musicou e gravou em 1937, pela Odeon.
Observador atento da cidade, frequentador do quartel general do samba, o Café Nice, divulgou em suas crônicas e colunas a vida musical da cidade e foi um dos primeiros, junto com Francisco Guimarães, o Vagalume, a inaugurar uma historiografia sobre o samba com o livro “Samba, sua história, seus poetas, seus músicos, seus cantores” em 1933. No livro, assume categoricamente “O samba é carioca. A emoção da cidade está musical e poeticamente definida no samba”. E assim fez escola.
** Muda: bairro localizado entre na porção oeste da Tijuca, entre a região da Praça Saens Peña e o sub-bairro da Usina.
O nome “Muda” adviria da época em que os cavalos, que subiam o Alto da Boa Vista em direção às fazendas na Zona Oeste, precisavam mudar as ferraduras, por enfrentarem os lamaçais frequentes da Tijuca.
Glossário
Condutor: cobrador
Motorneiro: motorista do bonde
Fiscal: funcionário que
controlava o número de passageiros de cada viagem
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