As pulgas sonham em comprar um cão, e
os ninguéns com deixar a pobreza, que em algum dia mágico de sorte chova a boa
sorte a cântaros; mas a boa sorte não chova ontem, nem hoje, nem amanhã, nem
nunca, nem uma chuvinha cai do céu da boa sorte, por mais que os ninguéns a
chamem e mesmo que a mão esquerda coce, ou se levantem com o pé direito, ou
comecem o ano mudando de vassoura.
Os ninguéns
Os ninguéns: os
filhos de ninguém, os donos de nada.
Os ninguéns: os
nenhuns, correndo soltos,
morrendo a
vida, fodidos e refodidos.
Que não são,
embora sejam.
Que não falam
idiomas, falam dialetos.
Que não
praticam religiões, praticam superstições.
Que não fazem
arte, fazem artesanato.
Que não são
seres humanos, são recursos humanos.
Que não tem
cultura, têm folclore.
Que não têm
cara, têm braços.
Que não têm
nome, têm número.
Que
não aparecem na história universal,
aparecem nas
páginas policiais da imprensa local.
Os ninguéns,
que custam menos do que a bala que os mata.
Los nadie
Los nadie: los hijos de nadie,
los dueños de nada.
Los nadie: los ningunos, los ninguneados, corriendo la liebre,
muriendo la vida, jodidos, rejodidos.
Que no son, aunque sean.
Que no hablan idiomas, sino dialectos.
Que no profesan religiones, sino supersticiones.
Que no hacen arte, sino artesanía.
Que no practican cultura, sino folklore.
Que no son seres humanos, sino recursos humanos.
Que no tienen cara, sino brazos.
Que no tienen nombre, sino número.
Que no figuran en la historia universal,
Los nadie: los ningunos, los ninguneados, corriendo la liebre,
muriendo la vida, jodidos, rejodidos.
Que no son, aunque sean.
Que no hablan idiomas, sino dialectos.
Que no profesan religiones, sino supersticiones.
Que no hacen arte, sino artesanía.
Que no practican cultura, sino folklore.
Que no son seres humanos, sino recursos humanos.
Que no tienen cara, sino brazos.
Que no tienen nombre, sino número.
Que no figuran en la historia universal,
sino en la crónica roja de la prensa
local.
Los nadie, que cuestan menos que la bala que los mata.
Los nadie, que cuestan menos que la bala que los mata.
Eduardo Galeano - “O Livro dos Abraços”.
Sabemos que "ninguém" é um
pronome indefinido e invariável, então como é que aparece no plural (ninguénS)
contrariando a norma gramatical (aqui no caso, oficial/culta; creio que também
contraria o uso popular/fala; pois nunca ouvi o povo falar
"ninguéns"). Bem, a explicação é simples. Creio que todos já ouviram
falar em "liberdade poética". O escritor/poeta pode
"modelar" a palavra e as frases conforme seu desejo. Preste atenção,
liberdade poética não significa liberação por falta de conhecimento. Pelo
contrário. Só quem entende bastante da norma (leia Gramática) e das variações
dessa (na fala popular) têm capacidade de explorar plenamente a potencialidade
da palavra.
No caso, a palavra
"ninguéns" foi substantivada (derivação imprópria, lembram-se? Quando
uma palavra de uma classe gramatical passa para outro. Aqui: pronome indefinido
tornou-se substantivo). E qual o significado deste estranho substantivo
"ninguéns". Ora, os ninguéns são os excluídos sociais, os miseráveis,
aqueles deixados "a deus-dará" para usar uma expressão coloquial.
Mendigos, crianças de rua, velhos abandonados, trabalhadores explorados; ou
seja, miseráveis de um modo geral. Todo aquele que é considerado um
"joão-ninguém", um ninguém. No plural, os ninguéns são todos os
injustiçados e destituídos de seus direitos de cidadão. Então, por que não usar
a palavra "miseráveis"? Porque a palavra "miseráveis" está
por demais gasta, usada em todo discurso de político corrupto. Usar
"ninguéns" cria um estranhamento no leitor, que vai até o final do
texto tentando desvendar o enigma (quem são eles?). Percebam o uso
repetitivo/reiterado das negativas (não... não... não...) das metonímias e
antíteses para demarcar diferentes valores sociais. Tudo colaborando, portanto,
para o desvendamento do enigma, para estimular o leitor a buscar suas próprias
respostas, e, portanto, conscientizá-lo da existência daqueles que são pobres,
sofrem e são explorados. "Ninguéns" é um acerto, um achado, porque
comove o leitor ao mesmo tempo em que o torna consciente das questões político-sociais.
(Do Blog Redação
Henfil – Professor Eduardo)
Nenhum comentário:
Postar um comentário