segunda-feira, 16 de maio de 2022

O lanche do tropeiro*

 Paulo Mendes

As memórias vêm e vão como essas andorinhas de dezembro que chegam em bandos, fazendo piruetas e desenhos alongados no céu do verão. Ah, meus amigos e minhas amigas, quando passo em frente a essas lancherias no Centro de Porto Alegre e sinto o cheiro dos sanduíches, dos salgados, torradas e outros lanches rápidos, logo recordo do meu tempo de bolicheiro lá na saudosa Vila Rica. Era uma época verdejante, de infância e adolescências junto à natureza, ao canto da passarada pela manhã, ao berro dos terneiros na mangueira no final das tardes compridas de janeiro. Sempre que me lembro do balcão penso na gauchada que chegava cansada, ávida por um trago longo e “forrar a barriga”. Para isso, tínhamos na prateleira a tradicional sardinha com molho de tomate e, para acompanhar, biscoitos comprados na padaria da cidade, ou bolachões doces, em pacotes, que dona Mirica, minha mãe, adquiria dos antigos vendedores viajantes de Santa Maria. 

Foi o colega Alfredo Possas, que viveu parte de sua infância na Zona Sul do Estado, que dia desses tocou no assunto das sardinhas. Era o “lanche do tropeiro”, e naquele tempo, armazém ou bolicho que tivesse essa refeição era considerado “sortido”. Seu Neto, antigo tropeiro que participava de jornadas com meu pai José Mendes, era um dos que se preparava todo para degustar se “lanche” preferido. Pedia duas latas, meia dúzia de biscoitos e um guaraná frisante Polar, garrafa de 600 ml. Um prato, garfo e faca, e um pano de prato que usava como toalha sobre o balcão engraxado de banha e recendendo a querosene. Comia e de tanta satisfação dava umas pequenas tossidas, para limpar a garganta. E, alegre, me dizia: “Seu Paulinho, um homem pobre tem poucas alegrias nesta vida guapa. Eu sou feliz quando reponto tropa e quando me sento para comer.” Largava o garfo, empinava o copo de guaraná, e soltava uma gargalhada. 

São essas imagens e lembranças que trago daquela gente humilde e simples. Povo sofrido, pobre mas lutador, que nunca perdia a esperança de dias melhores. A peonada chegava cansada, assoleada, com dores pelo corpo, desmontava, atava os cavalos nas tramas debaixo dos cinamomos e já estampava um sorriso de orelha a orelha, dizendo versos, improvisando uma trova, declamando partes de poemas conhecidos. Só para não desanimar perante suas jornadas duras, longas e incertas que sempre estavam de tocaia na curva da estrada. 

Hoje, tranço os dedos e faço uma prece para os campeiros que já se foram e estão campereando na estância grande da eternidade. Para os novos funcionários de granjas, empresas rurais e citadinas que trabalham de sol a sol, machucando mãos e braços, entortando a coluna, fazendo força dias e noites por esses confins da querência. É para essa gente sem voz nem vez que faço o meu canto de gratidão e solidariedade. Que todos possam trabalhar alegres, felizes e tenham a mesma satisfação que os tropeiros da Vila Rica quando apeavam no bolicho. E que possam, de vez em quando, destapar um guaraná fresquinho, abrir uma lata de sardinha e degustar com um biscoito recém saído do forno. E gritar como fazia seu Neto ao final do “banquete”. “Não te mixa, lagartixa”. 

******* 

* Da coluna de crônicas Campereada, do Correio do Povo, maio de 2022

Nenhum comentário:

Postar um comentário