domingo, 22 de maio de 2022

Campereada

 Alma andante de tropeiro 

Paulo Mendes

O mundo, meus amigos, gira, gira e gira, roda, roda e roda, passam os dias, as noites, meses e anos, mas continua sempre igual. Minto? Não, não minto, o senhor e a senhora sabem disso. O que muda somos nós, o nosso corpo, às vezes, nossos pensamentos. Tenho a impressão de que nunca mudei, apesar de tantos anos já terem se passado desde aqueles longínquos anos em que fui bolicheiro na Vila Rica. Parece que foi ontem. Havia tardes que seu Neto, o tropeiro, passava pelo bolicho, ele e seu filho, um tal de Pelado, um guri que havia ficado careca precocemente, e que ele criara como filho desde pequeno. O Pelado fora “cria enjeitada”, os pais o abandonaram dentro de uma caixa de papelão na porta de um colégio de freiras. O caso ganhou repercussão e seu Neto se apiedou e se apresentou para assumir a criança. Era um homem conhecido, pobre, mas honesto e trabalhador. O juiz homologou a adoção. 

Apeavam, atavam os cavalos nos cinamomos e entravam na bodega. Eu os esperava na porta, faceiro, pois eram alegres e brincalhões. Seu Neto pedia um aperitivo de canha, um copo pequeno e o filho, um guaraná. Eu os servia e ficávamos conversando, os dois me contando suas aventuras com as tropas que costumavam repontar para a “Charqueada”, como chamávamos o frigorífico. Muito tempo atrás era mesmo uma charqueada, mas ficara o costume e o nome. Viviam juntos, os dois, pelos caminhos ermos do Planalto, pelos corredores sem fim, dia e noite. Seu Neto tinha uma casinha simples no arrabalde da Vila Rica, onde morava a esposa, dona Antônia. O casal de filhos já adultos, tinha batido as asas, “se foram” como dizia, para outros pagos, ganhar a vida. O tropeiro fora morar na cidade justamente para que os filhos pudessem estudar “e não passar os sacrifícios de um tropeiro”. 

O Pelado não quis estudar de jeito nenhum, preferiu seguir o ofício do pai, como se precisasse pagar um favor. No segundo ano primário, pediu para acompanhar o pai nas lides. “Esse guri nasceu pra viver comigo mesmo”, conformou-se o velho tropeiro e, assim, fizeram uma vida juntos. Um ajudando o outro. O velho, ensinando ao guri as artimanhas da atividade, o guri ensinando ao velho que ainda era possível ser guri de novo. E, apesar de parecer o contrário, o Pelado era flor de sabido. Gostava de ver as figuras em meus livros escolares que mostrava a ele nas horas em que seu Neto proseava com meu pai nas tardes domingueiras. Ele se animava , indagava o nome dos lugares, das cidades grandes, das imagens de botânica, de ciências e do corpo humano. Depois emudecia, mirava vazio e eu, sem saber o que fazer, guardava os livros e ficava sentado ao seu lado, solidário em seu mutismo campeiro. 

Seu Neto e o Pelado foram criaturas raras que conheci no tempo de bodegueiro. Foram felizes na culatra das tropas até serem engolidos pelo progresso e pelos caminhões boiadeiros. Seu Neto morreu de velho, sentado em frente da casa escutando Gildo de Freitas. O Pelado se empregou num aviário e aos finais de semana participa de rodeios. Na última vez que o vi, abraçou-me com os olhos encharcados e pediu: “Conte no jornal um pouco do que fizemos”. Conto sim, Pelado, porque jurei que faria isso e porque há muito me tornei um tropeiro das palavras. 

(Do Correio do Povo, 26 de dezembro de 2016)

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