segunda-feira, 6 de março de 2023

Subtextos

 Cláudia Laitano

Nas provas de português dos meus tempos de escola, as questões eram divididas basicamente em duas partes. 

Na primeira, éramos convidados a demonstrar nosso domínio sobre a gramática. É verdade que entender os humores da crase e as idiossincrasias da concordância podia ser penoso, mas as regras estavam lá, disponíveis para quem se dispusesse a entender a lógica por trás da decoreba. 

O problema era a segunda parte da prova, aquela que atacava o estudante quando ele já estava esgotado pela gramática: a interpretação de textos. 

Você podia ser já um projeto de leitor, daqueles que ganham livros “inspiradores” da madrinha de crisma, mas nada garantia que diante de um poema ou de um parágrafo de um romance seu repertório incipiente de leitura daria conta de metáforas e metonímias. 

A interpretação de textos podia aproximar o preguiçoso e o aluno nota 10, ambos igualados na dificuldade para entender o que, afinal, o poeta queria dizer quando lastimava a partida da primeira pomba despertada (“outra mais... mais outra... enfim dezenas”).* 

Isso porque a interpretação de textos coloca a subjetividade do leitor para trabalhar, exigindo não apenas repertório de leituras, mas capacidade para distinguir o que está dito e o que não está. 

Para entender por que as pombas saíam em disparada e o que o autor estava querendo nos dizer com isso, era preciso, antes de mais nada, ler o texto até o fim. 

E depois voltar, reler, contextualizar − coisa que o aluno, mais apressado do que as pombas, nem sempre estava disposto a fazer. 

É dramático perceber como a dedicação à leitura crítica nos tempos de escola (ou depois) pode fazer diferença em vários aspectos da vida digital nos dias de hoje, quando passamos boa parte do tempo interpretando textos: nas redes, nos serviços de mensagens, nos e-mails de trabalho, no xaveco virtual. 

A julgar pelos comentários apressados e julgamentos precipitados que se leem todos os dias, os alunos de hoje não são muito diferentes dos alunos dos meus tempos de escola e também não têm paciência para ler textos até o fim. 

Isso talvez explique boa parte da confusão e da dificuldade para tolerar o contraditório da nossa época. 

Na vida real/virtual, onde tudo é texto e contexto, você é o que você lê. 

Ou acha que lê. 

(Do jornal Zero Hora, março de 2023) 

*As Pombas – soneto de Raimundo Correia 

Vai-se a primeira pomba despertada...
Vai-se outra mais... mais outra... enfim dezenas
Das pombas vão-se dos pombais, apenas
Raia sanguínea e fresca a madrugada.
 

E à tarde, quando a rígida nortada
Sopra, aos pombais, de novo elas, serenas,
Ruflando as asas, sacudindo as penas,
Voltam todas em bando e em revoada...
 

Também dos corações onde abotoam
Os sonhos, um a um, céleres voam,
Como voam as pombas dos pombais;
 

No azul da adolescência as asas soltam,
Fogem... Mas aos pombais as pombas voltam,
E eles aos corações não voltam mais.

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