domingo, 16 de fevereiro de 2020

Lixo

Luís Fernando Veríssimo


Encontram-se na área de serviço. Cada um com seu pacote de lixo. É a primeira vez que se falam.
− Bom dia…
− Bom dia.
− A senhora é do 610.
− E o senhor do 612.
− É.
− Eu ainda não lhe conhecia pessoalmente…
− Pois é…
− Desculpe a minha indiscrição, mas tenho visto o seu lixo…
− O meu quê?
− O seu lixo.
− Ah…
− Reparei que nunca é muito. Sua família deve ser pequena…
− Na verdade sou só eu.
− Mmmm. Notei também que o senhor usa muito comida em lata.
− É que eu tenho que fazer minha própria comida. E como não sei cozinhar…
− Entendo.
− A senhora também…
− Me chame de você.
− Você também perdoe a minha indiscrição, mas tenho visto alguns restos de comida em seu lixo. Champignons, coisas assim…
− É que eu gosto muito de cozinhar. Fazer pratos diferentes. Mas como moro sozinha, às vezes sobra…
− A senhora… Você não tem família?
− Tenho, mas não aqui.
− No Espírito Santo.
− Como é que você sabe?
− Vejo uns envelopes no seu lixo. Do Espírito Santo.
− É. Mamãe escreve todas as semanas.
− Ela é professora?
− Isso é incrível! Como foi que você adivinhou?
− Pela letra no envelope. Achei que era letra de professora.
− O senhor não recebe muitas cartas. A julgar pelo seu lixo.
− Pois é…
− No outro dia tinha um envelope de telegrama amassado.
− É.
− Más notícias?
− Meu pai. Morreu.
− Sinto muito.
− Ele já estava bem velhinho. Lá no Sul. Há tempos não nos víamos.
− Foi por isso que você recomeçou a fumar?
− Como é que você sabe?
− De um dia para o outro começaram a aparecer carteiras de cigarro amassadas no seu lixo.
− É verdade. Mas consegui parar outra vez.
− Eu, graças a Deus, nunca fumei.
− Eu sei. Mas tenho visto uns vidrinhos de comprimido no seu lixo…
− Tranquilizantes. Foi uma fase. Já passou.
− Você brigou com o namorado, certo?
− Isso você também descobriu no lixo?
− Primeiro o buquê de flores, com o cartãozinho, jogado fora. Depois, muito lenço de papel.
− É, chorei bastante, mas já passou.
− Mas hoje ainda tem uns lencinhos…
− É que eu estou com um pouco de coriza.
− Ah.
− Vejo muita revista de palavras cruzadas no seu lixo.
− É. Sim. Bem. Eu fico muito em casa. Não saio muito. Sabe como é.
− Namorada?
− Não.
− Mas há uns dias tinha uma fotografia de mulher no seu lixo. Até bonitinha.
− Eu estava limpando umas gavetas. Coisa antiga.
− Você não rasgou a fotografia. Isso significa que, no fundo, você quer que ela volte.
− Você já está analisando o meu lixo!
− Não posso negar que o seu lixo me interessou.
− Engraçado. Quando examinei o seu lixo, decidi que gostaria de conhecê-la. Acho que foi a poesia.
− Não! Você viu meus poemas?
− Vi e gostei muito.
− Mas são muito ruins!
− Se você achasse eles ruins mesmo, teria rasgado. Eles só estavam dobrados.
− Se eu soubesse que você ia ler…
− Só não fiquei com eles porque, afinal, estaria roubando. Se bem que, não sei: o lixo da pessoa ainda é propriedade dela?
− Acho que não. Lixo é domínio público.
− Você tem razão. Através do lixo, o particular se torna público. O que sobra da nossa vida privada se integra com a sobra dos outros. O lixo é comunitário. É a nossa parte mais social. Será isso?
− Bom, aí você já está indo fundo demais no lixo. Acho que…
− Ontem, no seu lixo…
− O quê?
− Me enganei, ou eram cascas de camarão?
− Acertou. Comprei uns camarões graúdos e descasquei.
− Eu adoro camarão.
− Descasquei, mas ainda não comi. Quem sabe a gente pode…
− Jantar juntos?
− É.
− Não quero dar trabalho.
− Trabalho nenhum.
− Vai sujar a sua cozinha?
− Nada. Num instante se limpa tudo e põe os restos fora.
− No seu lixo ou no meu?

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Texto do livro “O analista de Bagé”, L&PM Editora


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