sábado, 29 de fevereiro de 2020

O Rio diferente


Leonardo Pataca, por Belmonte.

O que se passou ontem à tarde com o cronista* parece coisa de difícil explicação. Ia ele pela Rua do Ouvidor quando reparou que a rua não era a mesma. À esquina de Quitanda havia um ajuntamento diverso das habituais reuniões de curiosos em torno de um camelô. Sujeitos sentados em cadeiras de couro, na calçada, conversavam, com alarido uns com outros, enquanto um deles, extremamente gordo, se deixava ficar de pernas estendidas, queixo grudado ao bengalão. Suas vestes eram tão estranhas que requeriam exame. Foi quando, percebendo pasmo do cronista, alguém se aproximou:

− Pois não conhece? É o Leonardo Pataca. O nosso meirinho mais velho, e por sinal que maluco por um rabo de saia...

Nisto, um rumor maior se fez ouvir, e uma velha traquitana, puxada por um matungo, perdendo uma das rodas, foi enguiçar no meio da rua. Dela saiu um senhor todo de preto − casaca e calções de seda, sapatos de entrada baixa com fivela de prata, espadim e chapéu de pasta. O mesmo informante explicou:

− É o senhor José Manuel, que seguia cheio de nove-horas para um casamento na Sé, e agora tem de ir no calcante.

A essa altura nada mais era estranho, e foi mesmo com uma sensação de bem-estar que o cronista viu aproximar-se um grupo de pretos de água, o que demonstrava na cidade um certo interesse prático pela solução do seu imortal problema. Enfim, tinha-se tomado uma providência: havia homens que iam apanhar água não se sabe aonde, para vendê-la a quem dela precisasse.

O cronista foi andando e viu já agora figuras tão integradas na paisagem urbana que era como se conhecesse de sempre. Na Rua dos Ourives, passou a Maria Regalada*, seguida a pequena distância pelo capitão Buonaparte; também era fácil de identificar, pelas chufas dos moleques, a Maria Doida. Já o músico Policarpo, esse, à porta da barbearia, se esforçava por tirar no oficleide* o verdadeiro lundu “Dizem que sou borboleta”. Passaram mascates e carregadores de café, e como era ágil o ritmo desses últimos! Gente sobraçando esteiras e tabuleiros de comida rumava para o Campo de Santana, onde ia festejar-se o Divino. De repente, como um rastilho, o sussurro atravessou os grupos, fez cerrar as portas, provocou uma louca debandada. Alguém dissera:

− Foge, gente, que o Vidigal vem aí!

Vidigal, Rio de Janeiro, 1942, por Belmonte.

O Vidigal apareceu logo depois, alto e terrível, precedido de uma guarda de granadeiros com chibatas. Haviam soado as ave-marias, e ele percorria as ruas para recolher quem estivesse praticando ou pensando algum malfeito. A cidade se esvaziou num instante. Vidigal era um homem de descer a lenha sem piedade; ele prendia, ele julgava, ele punia. E seu nome espalhava um terror sagrado. O próprio cronista, homem pacato...

Quem quiser sentir essas e outras emoções, basta ir ali no saguão da Biblioteca Nacional e ver a bela exposição de gravuras, livros e autógrafos com que Eugênio Gomes assinala o centenário da publicação de Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida. Através da iconografia habilmente escolhida, reconstituiu-se o “tempo do rei”, em que se passou a história, e o tempo do escritor, de que nos falam outras litografias. Romance tão vivo que nos transporta para um Rio diferente e nele nos sentimos viver. De resto, nem tudo é visão do passado. Vidigal, por exemplo, ainda existe.

C.D.A.

(Do livro “A Biblioteca Nacional na crônica da cidade”, 
de Iuri Lapa e Lia Jordão)

*Cronista: o autor da crônica que se assina: C.D.A. (Carlos Drummond de Andrade) que volta ao século XIX, no tempo do livro Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antonio de Almeida.  Surgiu como um romance de folhetim, ou seja, em capítulos, publicados semanalmente no jornal Correio Mercantil, do Rio de Janeiro, entre junho de 1852 e julho de 1853. Os folhetins não indicavam quem era o autor. A história saiu em livro em 1854 (primeiro volume) e 1855 (segundo volume), com autoria creditada a “Um Brasileiro”. O nome de Manuel Antônio de Almeida aparecerá apenas na terceira edição, já póstuma, em 1863.

*Maria Regalada: uma das personagens secundárias do romance “Memórias de Um Sargento de Milícias”.

*Chufas: gracejos impertinentes.

*Oficleide: ou oficlide, também conhecido popularmente como figle é um instrumento musical de sopro da família dos metais. 


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