Noel Rosa por Lan
Noel Rosa é genial, não se discute,
mas precisava sobrecarregar o garçom com tantas ordens? Em Conversa de Botequim
há, por baixo, sete ordens disparadas pelo freguês ao garçom que teve a má
sorte de estar de serviço naquele momento, a saber: (1) que o garçom lhe traga
pão, média, guardanapo e água (consideremos o conjunto uma ordem só); (2) que
feche a porta da direita com muito cuidado; (3) que apure com o freguês do lado
o resultado do futebol; (4) que lhe providencie caneta, tinteiro, envelope e
cartão; (5) que lhe traga palitos e cigarro; (6) que peça ao charuteiro
revistas, isqueiro e cinzeiro; (7) que telefone ao escritório (até isso!)
pedindo um guarda-chuva ao seu Osório.
Não apenas a quantidade é cruel. Pior
ainda é que as ordens são quase simultâneas, disparadas à queima-roupa, na
maioria desencontradas, exigindo o malabarismo de encomendar a média (“que não
seja requentada”) e ao mesmo tempo fechar a porta, perguntar o resultado do
futebol e emendar com um telefonema para o escritório. Se bem cumpridas as
tarefas, o que temos é um garçom obrigado a multiplicar-se em mais pernas do
que num desenho do saudoso Glauco, um pobre coitado que sua, bufa, resfolega,
resmunga, tropeça, se esfalfa, se estropia, se exaure. Para cúmulo dos cúmulos,
no fim o freguês ainda avisa que vai pendurar a conta e pede ao garçom para lhe
emprestar dinheiro. Essa música podia ser rebatizada como Hino do Desespero dos
Garçons. Devia ser entoada nas assembleias e passeatas da categoria.
Conversa de botequim
Seu garçom, faça o favor de me
trazer depressa
Uma boa média que não seja requentada,
Um pão bem quente com manteiga à beça,
Um guardanapo e um copo d'água bem gelada.
Feche a porta da direita com muito cuidado,
Que eu não estou disposto a ficar exposto ao sol,
Vá perguntar ao seu freguês do lado
Qual foi o resultado do futebol.
Uma boa média que não seja requentada,
Um pão bem quente com manteiga à beça,
Um guardanapo e um copo d'água bem gelada.
Feche a porta da direita com muito cuidado,
Que eu não estou disposto a ficar exposto ao sol,
Vá perguntar ao seu freguês do lado
Qual foi o resultado do futebol.
Se você ficar limpando a mesa,
Não me levanto nem pago a despesa.
Vá pedir, ao seu patrão,
Uma caneta, um tinteiro,
Um envelope e um cartão.
Não se esqueça de me dar palitos
E um cigarro pra espantar mosquitos.
Vá dizer ao charuteiro
Que me empreste umas revistas,
Um isqueiro e um cinzeiro.
Não me levanto nem pago a despesa.
Vá pedir, ao seu patrão,
Uma caneta, um tinteiro,
Um envelope e um cartão.
Não se esqueça de me dar palitos
E um cigarro pra espantar mosquitos.
Vá dizer ao charuteiro
Que me empreste umas revistas,
Um isqueiro e um cinzeiro.
Telefone ao menos uma vez
Para três, quatro, quatro, três, três
E ordene ao seu Osório,
Que me mande um guarda-chuva
Aqui pro nosso escritório.
Para três, quatro, quatro, três, três
E ordene ao seu Osório,
Que me mande um guarda-chuva
Aqui pro nosso escritório.
Seu garçom, me empresta algum
dinheiro
Que eu deixei o meu com o bicheiro,
Vá dizer ao seu gerente
Que pendure esta despesa
No cabide ali em frente.
Que eu deixei o meu com o bicheiro,
Vá dizer ao seu gerente
Que pendure esta despesa
No cabide ali em frente.
O João Valentão de Dorival Caymmi
abriga na mesma personalidade o bruto e o sensível, o impiedoso e o lírico. É
um bruto que para dar bofetão não pensa na vida, e faz coisas que até Deus
duvida; mas tem seu momento na vida, o que acontece “quando o sol vai quebrando
lá pro fim do mundo” e “se ouve mais forte o ronco das ondas”. Eis que o cair
da tarde o transfigura. Se até por volta das 18 horas era um, agora é outro. O
João Valentão é no final das contas um homem equilibrado e bem-sucedido –
depois da batalha do dia, em que cansou de dar sopapos, restaura-se à noite,
deitado na areia da praia, naquele momento supremo em que “a morena se encolhe
e chega pro lado querendo agradar”.
João Valentão
João Valentão é brigão,
Pra dar bofetão
Não presta atenção
Pra dar bofetão
Não presta atenção
E nem pensa na vida.
A todos João intimida,
Faz coisas que até Deus duvida,
Mas tem seu momento na vida...
A todos João intimida,
Faz coisas que até Deus duvida,
Mas tem seu momento na vida...
É quando o sol vai quebrando
Lá pro fim do mundo
Pra noite chegar
É quando se ouve mais forte
O ronco das ondas na beira do mar.
É quando se ouve mais forte
O ronco das ondas na beira do mar.
É quando o cansaço da lida da
vida
Obriga João se sentar.
Obriga João se sentar.
É quando a morena se encolhe
E chega pro lado querendo agradar.
E chega pro lado querendo agradar.
Se a noite é de lua,
A vontade é contar mentira,
É se espreguiçar.
Deitar na areia da praia
Que acaba onde a vista não pode alcançar.
Que acaba onde a vista não pode alcançar.
E assim adormece esse homem.
Que nunca precisa dormir pra sonhar,
Porque não há sonho mais lindo
Do que sua terra não há!
Desenho de João
Valentão por Dorival Caymmi
Mas o auge da música ainda não
chegou. O melhor, em versos tão inesquecíveis quanto o “tu pisavas nos astros
distraída”, de Chão de Estrelas (que Manuel Bandeira considerava dos mais belos
da língua), é quando Caymmi informa que “se a noite é de lua a vontade é contar
mentira, é se espreguiçar”. Os braços do Valentão agora trocam os bofetões
pelas espreguiçadas; e a vida de verdade, mansamente, malandramente, se refaz
na delícia das mentiras.
O personagem do Trem das Onze, de
Adoniran Barbosa, é um angustiado, um torturado, um estressado, um tipo ferido
pela dúvida e fulminado pela divisão entre duas lealdades. Ele não pode ficar
mais nem um minuto com a namorada porque senão perde o trem. E se perde o trem,
desgraça! – é filho único, tem uma mãe que não dorme enquanto ele não chega.
Estamos diante do oposto acabado do João Valentão. Durante o dia, no trabalho,
longe de casa (ele mora em Jaçanã!), as pressões não foram tão fortes quanto à
noite, quando se estabelece o horrendo conflito.
A música não conta a história até o
fim. Não ficamos sabendo se ele realmente se despregou da namorada e correu
para o trem ou fraquejou na última hora. Os mais românticos tenderiam para a
opção pela namorada – vamos lá, coragem, ouse ser feliz. Mas, ao que tudo
indica, venceu a mãe. E a namorada, como ficou? Ofereceu-lhe uma segunda
chance? Adoniran não julgou necessário nos dizer, mas é forte a desconfiança de
que seu personagem está destinado a morrer solteiro.
Trem das Onze
Não posso ficar
nem mais um minuto com você.
Sinto muito, amor,
Sinto muito, amor,
mas não pode ser.
Moro em Jaçanã,
Se eu perder esse trem
Que sai agora às onze horas,
Só amanhã de manhã.
Moro em Jaçanã,
Se eu perder esse trem
Que sai agora às onze horas,
Só amanhã de manhã.
Mas além disso, mulher,
Tem outras coisas,
Minha mãe não dorme
Enquanto eu não chegar.
Sou filho único,
Tenho minha casa para olhar
E eu não posso ficar.
Parte do Texto
(sem letras das músicas)
de Roberto Pompeu de Toledo,
na revista Veja.
(sem letras das músicas)
de Roberto Pompeu de Toledo,
na revista Veja.
Nenhum comentário:
Postar um comentário