(Excerto* de um conto
de:)
Monteiro Lobato
* Excerto: fragmento, extrato, parte do texto.
(...)
Havia em Itaoca um pobre moço que
definhava de tédio no fundo de um cartório. Escrevente. Vinte e três anos.
Magro. Ar um tanto palerma. Ledor de versos lacrimogêneos e pai duns acrósticos
dados à luz no “Itaoquense”, com bastante sucesso.
Vivia em paz com as suas
certidões quando o frechou venenosa seta de Cupido. Objeto amado: a filha mais
moça do coronel Triburtino, o qual tinha duas, essa Laurinha, do escrevente,
então nos dezessete, e a do Carmo, encalhe da família, vesga, madurota,
histérica, manca da perna esquerda e um tanto aluada.
Triburtino não era homem de
brincadeira. Esguelara um vereador oposicionista em plena sessão da câmara e
desd’aí se transformou no tutu da terra. Toda gente lhe tinha um vago medo; mas
o amor, que é mais forte que a morte, não receia sobrecenhos enfarruscados nem
tufos de cabelos no nariz.
Ousou o escrevente namorar-lhe a
filha, apesar da distância hierárquica que os separava. Namoro à moda velha, já
se vê, pois que nesse tempo não existia a gostosura dos cinemas. Encontros na
igreja, à missa, troca de olhares, diálogos de flores − o que havia de inocente
e puro. Depois, roupa nova, ponta de lenço de seda a entremostrar-se no
bolsinho de cima e medição de passos na rua d’Ela, nos dia de folga. Depois, a
serenata fatal à esquina, com o
Acorda, donzela...
Sapecado a medo num velho pinho de empréstimo. Depois,
bilhetinho perfumado.
Aqui se estrepou...
Escrevera nesse bilhetinho,
entretanto, apenas quatro palavras, afora pontos exclamativos e reticências:
Anjo adorado!
Amo-lhe!
Para abrir o jogo bastava esse movimento de peão.
Ora, aconteceu que o pai do anjo
apanhou o bilhetinho celestial e, depois de três dias de sobrecenho carregado,
mandou chamá-lo à sua presença, com disfarce de pretexto − para umas certidõezinhas,
explicou.
Apesar disso o moço veio um tanto ressabiado, com a pulga
atrás da orelha.
Não lhe erravam os
pressentimentos. Mas o pilhou portas aquém, o coronel trancou o escritório,
fechou a carranca e disse:
− A família Triburtino de
Mendonça é a mais honrada desta terra, e eu, seu chefe natural, não permitirei
nunca − nunca, ouviu? − que contra ela se cometa o menor deslize.
Parou. Abriu uma gaveta. Tirou de dentro o bilhetinho cor de
rosa, desdobrou-o.
− É sua esta peça de flagrante delito?
O escrevente, a tremer, balbuciou medrosa confirmação.
− Muito bem! Continuou o coronel em tom mais sereno. Ama,
então, minha filha e tem a audácia de o declarar... Pois agora...
O escrevente, por instinto, ergueu o braço para defender a
cabeça e relanceou os olhos para a rua, sondando uma retirada estratégica.
− ... é casar! Concluiu, de improviso, o vingativo pai.
O escrevente ressuscitou. Abriu
os olhos e a boca, num pasmo. Depois, tornando a si, comoveu-se e com lágrimas
nos olhos disse, gaguejante:
− Beijo-lhe as mãos, coronel!
Nunca imaginei tanta generosidade em peito humano! Agora vejo com que injustiça
o julgam aí fora!...
Velhacamente o velho cortou-lhe o fio das expansões.
− Nada de frases, moço, vamos ao que serve: declaro-o
solenemente noivo de minha filha!
E, voltando-se para dentro, gritou:
− Do Carmo! Venha abraçar o teu noivo!
O escrevente piscou seis vezes e, enchendo-se de coragem, corrigiu
o erro.
− Laurinha, quer o coronel dizer...
O velho fechou de novo a carranca.
− Sei onde trago o nariz, moço.
Vassuncê mandou este bilhete à Laurinha dizendo que ama-“lhe”. Se amasse a ela
deveria dizer amo-“te”. Dizendo “amo-lhe” declara que ama a uma terceira
pessoa, a qual não pode ser senão a Maria do Carmo. Salvo se declara amor à
minha mulher...
− Oh, coronel...
− ...ou a preta Luzia, cozinheira. Escolha!
O escrevente, vencido, derrubou a
cabeça, com uma lágrima a escorrer rumo à asa do nariz. Silenciaram ambos, em
pausa de tragédia. Por fim o coronel, batendo-lhe no ombro paternalmente,
repetiu a boa lição da sua gramática matrimonial.
− Os pronomes, como sabe, são
três: da primeira pessoa − quem fala, e neste caso vassuncê; da Segunda pessoa −
a quem fala, e neste caso Laurinha; da terceira pessoa − de quem se fala, e
neste caso do Carmo, minha mulher ou a preta. Escolha!
Não havia fuga possível.
O escrevente ergueu os olhos e
viu do Carmo que entrava, muito lampeira da vida, torcendo acanhada a ponta do
avental. Viu também sobre a secretária uma garrucha com espoleta nova ao
alcance do maquiavélico pai, submeteu-se e abraçou a urucaca, enquanto o velho,
estendendo as mãos, dizia teatralmente:
− Deus vos abençoe, meus filhos!
(Do livro; “O Melhor
do Humor Brasileiro”.
Organização de Flávio
Moreira da Costa)
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