quinta-feira, 22 de junho de 2023

Uma deusa moderna

 Deusa T 

Nilson Souza

Como aqueles ciganos que periodicamente apareciam na Macondo de Garcia Márquez com novidades que pareciam mágicas aos locais, de vez em quando a deusa da Tecnologia desce do Olimpo do Metaverso para tentar a Humanidade. 

Que tal uma máquina que encurtará distâncias e possibilitará que vocês viajem com mais rapidez e conforto do que vêm fazendo há séculos na sua montarias e carruagens? 

− Quanto nos custará? − perguntaram os homens. 

− Pouco: vocês só terão que extrair petróleo do chão, construir longas estradas asfaltadas, desenvolver microchips e, de vez em quando, sacrificar algumas vidas. 

− Fechado! − respondeu a mais ambiciosa das criaturas. 

E o automóvel chegou. Trouxe, realmente, rapidez, conforto, status e sensação de poder. Facilitou os deslocamentos. Mas também alterou para sempre a superfície do planeta, poluiu o ar, disseminou a pressa e nos cobra cerca de 1 milhão e 300 mil vidas por ano (segundo a OMS), sem contar os mutilados do trânsito. 

Em outra visita aos terráqueos, a Deusa T ofereceu: 

− Tenho um aparelhinho maravilhoso, que mostra imagens coloridas em movimento, transforma suas casas em cinema e serve de diversão para toda a família. 

− E o que teremos que pagar? − perguntaram. 

− Pouco, quase nada. Apenas o preço da obsolescência programada, energia elétrica, espaços na sala e no quarto, e algumas horas diárias de inércia. 

− Topamos! − responderam, ansiosos pela novidade. 

E a televisão invadiu os lares, distraiu o povo com novelas, filmes, programas de humor e desenhos animados, mas também alterou hábitos, virou babá eletrônica, atiçou o consumo desmesurado e estimulou o sedentarismo. 

Mais recentemente, a Deusa T desembarcou no Planeta T com outra novidade espetacular: 

− Uma telinha fantástica, que cada pessoa poderá carregar na palma da mão e usá-la para se comunicar com quem quiser, em qualquer lugar da Terra, e que também proporciona acesso ao conhecimento. 

− Qual será o nosso custo? − perguntaram os humanos, apenas por perguntar, pois já estavam aceitando. 

− O valor dos aparelhos, as taxas das operadoras, tomadas para a bateria e toda a atenção que puderem dispensar ao brinquedinho. 

O celular cumpre sua missão, mas, em troca, apropria-se do tempo e da vontade dos usuários. 

A visitante volta agora com outra irresistível oferta: 

− A IA* é uma coisa maravilhosa, que vos poupará de pensar e tomar decisões. 

********** 

(Do jornal Zero Hora, junho e 2023) 

* IA (Inteligência Artificial)

Nenhum comentário:

Postar um comentário