Rosinha Desossée, me tire desse quarto
de hotel e de todas as coisas que entram pela janela; me leve para longe das
palmeiras, mais longe e perto das coisas mais macias; me faça esquecer
(depressa) os homens ruins − isto é: os que gostam de cebola crua; me ensine,
Rosinha Desossée, tudo o que eu não aprendi: a cortar com a mão direita, a usar
anel, a tocar piano, a desenhar uma árvore e valsar; e me lembre do que eu
esqueci − raiz quadrada, (as mais ordinárias), frações, latim, geofísica e “Navio
Negreiro”, de Castro Alves; depois, me dê, pelo bem dos seus filhinhos, aquilo
que eu não tenho há quase um ano, carinho − de um jeito que eu não sei dizer
como é, mas que há, por aí ou, pelo menos, já houve; destelhe a casa, deixe a
noite entrar e, juntos, vamos nos resfriar; espirre de lá, que eu espirro de
cá... agora, cada um com a sua bombinha, inalação, inalação; lado a lado,
sentemos, os dois de perfil para o ventilador; minhas mãos e as suas não são de
ninguém, entendido?; se interesse por mim e pergunte o que eu sei, que eu quero
exclamar, no mais puro francês: “oh!"...“comment allez vous”? (...) de um
jeito ou de outro, me tire daqui, pra Pérsia, Sibéria, pro Clube da Chave, pra
Marte, Inglaterra, sem couvert, sem couvert; está vendo o retrato dos meus 20
anos? de lá para cá, cansaço, pé chato, gordura, calvície fizeram de mim essa
coisa ansiosa, insegura e com sono, que pede a você, no auge do manso: você,
Desossée, não saia esta noite e fique, ao meu lado, esperando que o sono me
tome e me mate, me salve e me leve, por amor ao teu andar, assim seja...
(1954)
Antônio Maria: a falta que ele nos faz!
Deonísio da Silva −
Jornal do Brasil
O golpe de estado de 1964 não foi a
única tragédia daquele ano. No dia 15 de outubro morria do coração, em
Copacabana, aos 43 anos, Antonio Maria (Araújo de Morais), um dos maiores
cronistas brasileiros.
Ele escrevia assim: “Meu filho Eleutério se veste mal, porque
quem lhe escolhe as roupas é o pai”.
“E o nome, foi a senhora quem escolheu?”.
Jocosa é também a carta do leitor
Lopes Miranda: “Sou idoso, estou doente e
gostaria que o senhor pedisse aos
seus leitores que me mandassem auxílio em dinheiro. Cem cruzeiros
de cada um, não mais”. “Vamos dizer, Lopes, que eu tenha na pior das
hipóteses 10 mil leitores. Se cada um
lhe mandasse cem cruzeiros, você receberia 1 milhão de cruzeiros. Sendo assim, adoeço
eu, Lopes”.
Foi vizinho de Abelardo Barbosa, o Chacrinha,
e de Aracy de Almeida. Moravam no mesmo prédio. Certa vez pediu à famosa
cantora que o ajudasse a introduzir um supositório em si mesmo: tentara todas
as posições e não conseguira.
Uma vez, ele e Vinicius de Moraes
precisavam compor um jingle para uma empresa que ia lançar um regulador de
menstruação. Batiam a cabeça e não saía nada que prestasse. Procuraram Aracy de
Almeida, que lhes sugeriu parodiarem uns versos já famosos de Noel Rosa,
substituindo orvalho por ovário: “O
orvalho vem caindo, vai molhar o meu chapéu/ e também vão sumindo, as estrelas lá do céu/ Tenho passado tão mal/ A minha cama
é uma folha de jornal”.
Evidentemente, Aracy de Almeida é
mais lembrada por sucessos como Fita Amarela: “Quando eu morrer/ não quero choro nem vela/ quero uma fita amarela/
gravada com o nome dela”.
Antônio Maria obteve seu primeiro
emprego aos 17 anos, na Rádio Clube de Pernambuco, como apresentador de
programas musicais. O Brasil vivia a Era do Rádio. Em 1940, aos 19 anos, toma
um ita e vem para o Rio, onde vai trabalhar como locutor esportivo na Rádio
Ipanema.
A cidade tinha 1.764.411 habitantes,
como informava com precisão o censo. No moderno prédio do Ministério da
Educação e Cultura (MEC) trabalhavam ilustres intelectuais, entre os quais o
mineiro Carlos Drummond de Andrade e o paulista Sérgio Buarque de Holanda. No
mundo profano, pontificavam outras referências, como Elvira Pagã e Assis
Valente.
Levando Vinicius de Moraes para
casa certa noite, foi cantarolando os versos que fizera para consolá-lo de uma
dor de corno: “É muito tarde para esperar por ela/ Ela não vem ouvir a tua voz/
Esquece, amigo porque a vida é bela/ A noite é grande e nela cabem todos
nós...”.
*****
O cronista era muito popular e
está presente também em muitas histórias, umas verdadeiras, outras lendárias. O
escritor Carlos Heitor Cony conta o seguinte: “Um dia, Maria me telefona: −
Carlos Heitor, Carlos Heitor, você nunca me enganou.”
E contou-lhe que, vindo de São
Paulo, veio a conhecer no avião uma mulher muito bela e atraente. Ela lia o
livro Matéria de Memórias, de Cony. Antônio Maria apresentou-se a ela como o
autor do livro que ela lia. A moça admirava muito o verdadeiro Cony. E o falso
Cony passou ao terreno pantanoso da confidência, dizendo-lhe que era um pobre
coitado, que jamais tinha sido amado por uma mulher, que as mulheres o
desprezavam. Era a típica cantada do cafajeste, que tanto sucesso faz, ou
fazia, entre as mulheres, que têm o instinto maternal de proteger os que
sofrem.
Cony estava desconcertado com a
história e só sabia dizer “mas, Maria!”. E o cronista: “Fica tranquilo, Cony,
fica tranquilo porque em seguida nós fomos pra cama. Ou melhor, você foi pra
cama.”
Curioso, Cony perguntou:
− “E ai?”.
− “E aí foi que aconteceu o problema”, gargalhou Maria, “e aí
você broxou, Cony, você broxou!”
*****
Antônio
Maria era cardiopata desde menino e morreu de enfarte do miocárdio na madrugada
de 10 de outubro de 1964. Estava a caminho do restaurante Le Rond Point. Foi
socorrido por amigos que estavam na boate O Cangaceiro, que ficava em frente,
mas morreu ali mesmo.
Teríamos perdido as crônicas de
Antônio Maria, se não houvesse quem se interessasse por reuni-las. Hoje nós as
encontramos apenas em sebos os seus livros, todos esgotados nas editoras que os
publicaram.
Frases de Dezembro
Antônio Maria
Dezembro é o mês de uma infinidade de frases, que se repetem em todos os anos, sempre as mesmas.
Vamos lembrar algumas, que estão sendo ditas, desde o dia 1º.:
“O ano passou num abrir e fechar de olhos.”
“Você reparou quanta gente conhecida morreu este ano?”
“E todas quando a gente menos esperava.”
“Eu espero que o ano que vem seja um pouquinho melhor.”
“Pois eu, minha filha, não tenho nada que me queixar. Luís Mário passou de
ano.”
“Nunca houve um ano tão ruim para negócios.”
“Vocês já viram quanto está custando um quilo de castanhas?”
“Minha filha, com a vida pelo
preço que está, nós não vamos fazer nada. Mas, se você quiser aparecer lá em
casa, com as crianças, só nos dará prazer.”
“Eu tenho horror a datas... se não fossem as crianças...”
“Natal de pobre é no dia 26.”
“Se o Dagoberto não estivesse tão
atropelado, eu ia pedir para ir, com as crianças, passar Natal nos Estados
Unidos.”
“Olhe, Daniel, como eu sei que os
seus negócios não vão bem, vou deixar os brincos de e esmeraldas para o ano que
vem.”
“Mamãe, o Luís Otávio falou que Papai Noel é o pai da
gente.”
“Olhe, se você não comer o ovinho todo, Papai Noel vai ficar tão triste que é
capaz de não vir.”
“Deixa passar esse negócio de
Natal e Ano-Bom, que eu vou estudar uma maneira de ir pagando devagarzinho.”
“Bom, o regime eu só vou começar depois do ano.”
“Você não vai encontrar banco nenhum que desconte este título, a não ser depois
do dia 1º.”
“Eu quero ver se, de janeiro em diante, paro de fumar e de beber.”
“Este ano só quem mandou presente
foi o armazém e, assim mesmo, uma garrafinha de vinho do Porto.”
“Eu já avisei a todo mundo, que não quero nada, porque não
tenho para dar a ninguém.”
“Logo que as crianças terminarem
os exames, eu boto tudo num automóvel e levo lá para um sitiozinho que eu tenho
em Thiago de Melo.”
“Vocês sabiam que, no Norte, eles chamam rabanadas de fatias
paridas?”
“O que é que você mais desejaria que o Ano Novo lhe trouxesse?”
“Minha filha, eu e as crianças estando com saúde, não preciso de mais nada.”
“Minha mulher é uma santa. Ela
falou que tudo o que eu tivesse de dar de Natal, desse às crianças.”
“Falaram tanto dessas cestas! Você viu o que veio dentro?”
“Pois olhe, lá em Portugal, um quilo de castanhas custa três escudos.”
“Mas, hoje em dia, qual é a diferença que existe entre o champagne nacional e o
francês?”
“Com este, faz não sei quantos natais que eu não como uma fatia de peru.”
“Você acha que, com as coisas como estão, este Governo aguenta até o fim do ano?”
Rio, 14/12/59 -
Texto extraído do livro “O Jornal de Antônio Maria”,
Editora Saga - Rio de
Janeiro, 1968.
Antônio Maria se tornou um nome comum quando falo dos meus textos favoritos. Gosto muito de 'Oração' e 'Despedida', e fiquei surpreso em saber que ele também compôs o Frevo n. 2.
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