Sófocles
Millôr usou Sófocles
para atirar em Collor,
e acertou em cheio nos políticos atuais!
e acertou em cheio nos políticos atuais!
O livro “O humor nos tempos do Collor”
(L&PM, 1992) traz uma coletânea de textos de Millôr Fernandes, Jô Soares e
de Luís Fernando Veríssimo sobre o governo desse presidente que, pela primeira
vez na história brasileira, foi apeado do cargo por vias rigorosamente
constitucionais. O texto de que eu mais gosto nesse livro não é humorístico,
porém. Trata-se de Antígona, de Sófocles, no qual Millôr reproduz uma passagem
dessa famosa peça teatral.
Na cena em questão, o profeta
Tirésias, que é cego, vai com seu guia até a presença de Creonte, rei de Tebas,
para avisar que as lutas entre os pássaros do “rochedo dos augúrios”, assim
como as vísceras dos animais sacrificados aos deuses, vaticinaram a aproximação
de tempos sombrios. Millôr não acrescenta qualquer comentário ao texto, e nem
precisa: o paralelo entre a arrogância do tirano de Tebas e o estilo do
presidente deposto fica evidente. Além disso, é fácil ver como as críticas do
rei ao vidente simulam muito bem as críticas de Collor à imprensa e à oposição.
(Entra Tirésias, o
adivinho cego, guiado por um menino.)
(...)
CREONTE – Velho, você e todos
juntos atiram dardos contra mim como se não houvesse outro alvo no universo. E
usam sobre mim, também, o anátema de todas as feitiçarias. A tribo dos videntes
há muito que me usa, é uma raça que não me tem poupado. Conheço muito bem esses
teus pássaros. Eles voam ao sabor do teu interesse. Sei que se abrir meus
cofres eles voarão também de acordo com a minha vontade. Enche tua bolsa com o
ouro branco de Sardes ou com o ouro das Índias, se preferes. Presta atenção,
carcomido Tirésias; mesmo os mais espertos falham desgraçadamente quando enfeitam
propósitos ignóbeis com belas palavras, inspiradas pelo amor do lucro.
TIRÉSIAS – Ai de mim! Na minha idade já não posso ter a
ambição de que me acusas.
CREONTE – Há os que morrem roubando e amealhando, como se a
vida fosse eterna.
TIRÉSIAS – Ofendes porque não temes punições.
CREONTE – Que disse eu que não fosse verdade?
TIRÉSIAS – Que profetizo com intuitos baixos.
CREONTE – Todos sabem que a tribo dos profetas não resiste
ao suborno.
TIRÉSIAS – Todos sabem que a raça dos tiranos só pensa em subornar.
(...)
TIRÉSIAS – É difícil imaginar, na
minha escuridão, a escuridão de tantos, mais cegos do que eu. Os fornos não
pararam, ouço as bigornas cantando noite e dia, fabricando lanças e carros de
guerra.
CREONTE – Que estás dizendo? Não
percebes que sais do respeitado campo do profeta e penetras na área mortal da
traição? Falas como adivinho ou como espião?
TIRÉSIAS – Sei que te atingi
terrivelmente – e duplamente. Como vidente e como cidadão de Tebas. Mas, tu me
provocaste a dizer aquilo para que não tens resposta. O grande homem de punho
de ferro sente, subitamente, que as mãos lhe estão tremendo. O avanço de uma
guarnição obriga a outra. A violência gera a violência. Do inimigo morto nascem
mil inimigos. Fere com o ferro. E o ferro se volta contra ele. Não tarda,
Creonte. Não tarda. Já chega a tua hora. Vamos menino, já disse o que tinha que
dizer, me leva para casa para que ele possa descarregar sua fúria sobre outros,
enquanto aprende que o poder também tem seu limite.
Anfiteatro grego
→ Sófocles nasceu em Atenas,
provavelmente em 495 a .C.,
e morreu na mesma cidade, no ano 406
a .C. Ele foi contemporâneo da grande época de Atenas, o
período no qual a cidade viveu sob a liderança de Péricles,
que se estende das vitórias dos gregos sobre os persas
até quase o fim da Guerra do Peloponeso.
→ De sua primeira vitória no concurso teatral ateniense, em
→ A peça mais antiga de Sófocles, Ájax, ainda apresenta influências de Ésquilo e uma estrutura dramática muito simples. A seguir, temos Antígona, a tragédia da mulher que enfrenta as leis e o governo para respeitar os mandamentos divinos e morais, mas acaba massacrada pelo Estado.
→ Sua obra-prima, contudo, é Édipo rei, a tragédia do homem perseguido pela fatalidade do destino: transformado em rei, busca um assassino que, na verdade, é ele mesmo, descobrindo, ao final, ter matado seu próprio pai e desposado a própria mãe.
→ O tema de Sófocles é o destino
humano - o destino do herói que sofre e é destruído. A tragédia apresenta a
crise desse destino individual, imposto pelas forças sobrenaturais. Sófocles
acredita que o homem está no centro do mundo, mas também crê no poder irresistível
dos deuses (ainda que não tenha fé na justiça divina).
Antígona: Direito Positivo versus Direito Natural –
Quem ganhou?
Por George Marmelstein Lima*
Quase todo estudante de direito é
apresentado à peça “Antígona”, de Sófocles logo no início do curso, geralmente
na disciplina “Introdução ao Estudo do Direito”, pois a obra é uma das
primeiras a retratar o eterno embate entre o direito natural e o direito
positivo, melhor dizendo, entre a justiça e a lei.
O enredo da peça todos conhecem: um
sujeito chamado Polinície tenta realizar um golpe de Estado para tomar o poder
em Tebas, no que foi assassinado. Quebrando as tradições da época, Creonte, o
governante, determina que o morto não poderá ser enterrado e que quem
descumprir a sua ordem também será assassinado.
Antígona, que era irmã de Polinície,
não se conforma com aquela medida. Para ela, seria uma desonra inaceitável não
enterrar o irmão. Por isso, em claro descumprimento da ordem de Creonte,
Antígona resolve realizar todos os rituais fúnebres devidos em favor do morto.
Creonte, puto da vida, chama Antígona
para uma conversinha em
particular. O diálogo daí resultante é uma sinfonia para
aqueles que defendem o direito natural. Ei-lo:
“Creonte – ô Antígona. Que parte da minha
ordem “não pode enterrá-lo” você não entendeu? Vai dizer que não sabia?
Antígona: Estaria mentindo se
dissesse que não conhecia a ordem. Como poderia ignorá-la? Ela era muito clara.
Creonte – Portanto, tu ousaste infringir a minha lei? Tá
maluca?
Antígona – Descumpri mesmo. Quer
saber por quê? Porque não foi Zeus que a proclamou! Não foi a Justiça, sentada
junto aos deuses inferiores; não, essas não são as leis que os deuses tenham
algum dia prescrito aos homens, e eu não imaginava que as tuas proibições
fossem assaz poderosas para permitir a um mortal descumprir as outras leis, não
escritas, inabaláveis, as leis divinas! Estas não datam nem de hoje nem de
ontem, e ninguém sabe o dia em que foram promulgadas. Poderia eu, por temor de
alguém, qualquer que ele fosse, expor-me à vingança de tais leis?”
Eis, nesse diálogo, com algumas
licenças poéticas, um bom exemplo do sentimento de indignação que surge toda
vez que o ordenamento jurídico encontra-se fora de sintonia com o espírito de
justiça presente na sociedade. Por isso, costuma-se dizer que a resposta de
Antígona é uma das mais remotas defesas do direito natural.
No entanto, há outro diálogo, na
mesma peça, que não é citado nos livros de introdução ao direito, que demonstra
que o grande vitorioso desse embate entre direito positivo autoritário versus
direito natural não foi nem um nem outro. Quem venceu foi o direito
democrático.
O outro diálogo foi travado entre
Creonte e Hémon, seu filho, que tinha uma quedinha por Antígona. Hémon, de
forma até meio petulante, questiona a ordem do pai. O pai não arreda pé: disse
que o que decidiu está decidido e ponto final. Antígona, portanto, deveria ser
punida, conforme previsto na sua ordem.
Eis um
trecho do diálogo:
“Creonte: Não está Antígona violando a lei?
Hémon: O povo de Tebas não concorda com você.
Creonte: Querias que a cidade me dissesse que ordens devo
dar?
Hémon: Agora é você que fala como
um menino. [Pouco antes, Creonte havia perguntado se cabia a seu filho
ensinar-lhe sabedoria.]
Creonte: Deverei reinar conforme julgam os outros ou segundo
meu próprio discernimento?
Hémon: Uma pólis governada por um só homem não é uma pólis.
Creonte: Então o Estado não pertence àquele que o governa?
Hémon: Sem dúvida, num deserto desabitado poderia governar
sozinho”.
(apud STONE, I. H. O
julgamento de Sócrates.
Companhia das Letras: São Paulo, 2005).
No final da peça, a vontade popular
vence, levando o público ao delírio, pois foi uma clara vitória da democracia.
Normalmente, dá-se pouca atenção a essa lição política contida na “Antígona”.
No fundo, a moral da peça é que o povo não apenas tem o direito de se
expressar, mas também o de ser ouvido: o governante que despreza as opiniões do
povo põe em risco a cidade e a si próprio também. Logo, não foi o direito
natural que venceu, mas o direito democrático.
*Juiz Federal e Professor de Direito Constitucional
Escrito em Porto Alegre /RS
(Do Blog Direitos Fundamentais)
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