Foto de Noel Rosa antes de morrer
É quase noite. As pessoas que
entram e saem o fazem na ponta dos pés, comunicam-se por sussurro. Em frente,
no número 385, acertam os últimos detalhes da festa que Vicente Gagliano – o
Vicente Sabonete das serenatas de antigamente – faz questão de dar pelo
aniversário da mulher, Emília. Enfeita-se a mesa de doces, fura-se o bolo com
as quarenta velinhas, manda-se entrar o chope. Heitor Bateria – um negro alto e
magro, tocador de pandeiro, surdo e tamborim, cuja jazz band costuma
alegrar as festas do bairro em troca apenas de comida e bebida – chega com seus
músicos. Os convidados também. Pouco depois de oito da noite, a casa de Vicente
Sabonete está cheia e animada.
O silêncio e a penumbra do chalé
contrastam com a barulhenta e iluminada residência em frente. Alguns
amigos veem ver Noel, entram devagar, olham da porta do quarto para o corpo
consumido, cansado, a palidez disfarçada pela pouca luz. Depois se afastam em
silêncio, trocam palavras com Dona Martha e Hélio, saem como entraram,
mansamente. Orestes Barbosa e o Dr. Renato Baptista, bons amigos, estão entre
as visitas cautelosas. A dança na casa de Vicente Sabonete fica mais animada, a
música se espalha, todos homenageando Emília. Dorica, que não perde uma festa
nas vizinhanças, desta vez faz diferente: vem ver Noel. Martha pede-lhe o favor
de ferver a seringa. O filho está prostrado, talvez uma injeção o reanime. A
música atravessa a rua, chega até o chalé.
- Seu Vicente, ouvi
dizer que o Noel está muito mal aí defronte – alguém avisa, voz baixa, ao
dono da casa.
Vicente sabonete manda um de
seus filhos saber se é verdade. Talvez a música esteja incomodando o doente.
Dona Martha diz que não, a música nunca incomodou Noel, seu Vicente que se
tranquilize, que prossiga com a festa. Heitor Bateria comanda compenetrado a
sua jazz band. É ele quem sugere, como próximo número, um samba de Noel
Rosa.
“De babado,
sim,
Meu amor
ideal,
Sem babado,
não.”
Noel, provavelmente, já não
ouve. Tem a cabeça pousada no colo de Lindaura, os olhos semicerrados. Dorica
ferveu a seringa, Hélio vai até a sala buscar a caixa de Canphydral. No portão,
Martha despede-se de Orestes Barbosa e do Dr. Renato. Do outro lado, a música
continua:
“Passeando
a meu lado,
Você
sobe de valor.
Seu
vestido sem babado
É
você sem meu amor
(É
assistência sem doutor...)”
Hélio prepara a injeção. Dorica
vem da cozinha com uma xícara de café bem quente. Noel, a cabeça no colo de
Lindaura, parece dormir um sono calmo, profundo. Um fio de respiração é todo o
vestígio de vida que há nele. Por pouco tempo, porém. A mãe já se despediu das
visitas, e está agora de pé à porta do quarto. Chega a tempo de ver aquele fio
de respiração se extinguir. Pouco antes das onze da noite (de 4 de maio de
1936), no mesmo quarto em que veio ao mundo há exatamente vinte e seis anos,
quatro meses e vinte e três dias, morre Noel Rosa.
Do livro "Noel Rosa uma biografia",
de João Máximo e Carlos Didier*
*Este livro, lamentavelmente,
está proibido por alguns parentes de uma das esposas de Noel Rosa.
O livro “Noel Rosa, uma
biografia”, de Carlos Didier e João Máximo, só pode ser encontrado em sebos e
por mais de R$ 400,00 (ou muito mais) Isso porque sua única edição – lançada
pela editora da Universidade de Brasília, em 1990 – virou uma raridade.
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