Perto de casa,
havia um barbeiro, que me conhecia de vista, amava a rabeca e não tocava
inteiramente mal. Na ocasião em que ia passando, executava não sei que peça.
Parei na calçada a ouvi-lo (tudo são pretextos a um coração agoniado), ele viu-me,
e continuou a tocar. Não atendeu a um freguês, e logo a outro, que ali foram, a
despeito da hora de ser domingo, confiar-lhe as caras à navalha. Perdeu-os sem
perder uma nota; ia tocando para mim. Esta consideração fez-me chegar
francamente à porta da loja, voltado para ele. Ao fundo, levantando a cortina
de chita que fechava o interior da casa, vi apontar uma moça trigueira, vestido
claro, flor no cabelo. Era a mulher dele; creio que me descobriu de dentro, e
veio agradecer-me com a presença o favor que eu fazia ao marido. Se me não
engano, chegou a dizê-lo com os olhos. Quanto ao marido, tocava agora com mais
calor; sem ver a mulher, sem ver fregueses, grudava a face ao instrumento,
passava a alma ao arco, e tocava, tocava...
Divina arte!
Ia-se formando um grupo, deixei a porta da loja e vim andando para casa; enfiei
pelo corredor e subi as escadas sem estrépito. Nunca me esqueceu o caso deste
barbeiro, ou por estar ligado a um momento grave de minha vida, ou por esta
máxima, que os compiladores podem tirar daqui e inserir nos compêndios de
escola. A máxima é que a gente esquece devagar as boas ações que pratica, e
verdadeiramente não as esquece nunca. Pobre barbeiro! perdeu duas barbas
naquela noite, que eram o pão do dia seguinte, tudo para ser ouvido de um
transeunte. Supõe agora que este, em vez de ir-se embora, como eu fui, ficava à
porta a ouvi-lo e namorar-lhe a mulher; então é que ele, todo arco, todo
rabeca, tocaria desesperadamente. Divina arte!
§ § §
(O texto acima foi extraído do livro “Dom Casmurro”,
de Machado de Assis)
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