sexta-feira, 4 de abril de 2014

A Flauta e o Sabiá

Coelho Neto






Em rico estojo de veludo, pousado sobre uma mesa de xarão, jazia uma flauta de prata. Justamente por cima da mesa, em riquíssima gaiola suspensa ao teto, morava um sabiá. Estando a sala em silêncio e descendo um raio de sol sobre a gaiola, eis que o sabiá contente modula uma ária.
Logo a flauta escarninha, põe-se a casquinar no estojo como a zombar do módulo cantor silvestre.
- De que te ris? – indaga o pássaro. E a flauta em resposta:                                              
- Ora esta! pois tens coragem de lançar guinchos diante de mim?
- E tu quem és? ainda que mal pergunte.
- Quem sou? Bem se vê que és um selvagem. Sou a flauta. Meu inventor, Marsias, lutou com Apolo e venceu-o. Por isso o deus despeitado o imolou. Leio os clássicos.
- Muito prazer em conhecer... Eu sou um mísero sabiá da mata, pobre de mim! Fui criado por Deus muito antes das invenções. Mas deixemos o que lá foi. Dize-me: que fazes tu?
- Eu canto.
- O ofício rende pouco. Eu que o diga que não faço outra coisa. Deixarei, todavia, de cantar – e antes nunca houvesse aberto o bico porque, talvez sendo mudo, não me houvessem escravizado – se, ouvindo a tua voz, convencer-me de que és superior a mim. Canta! Que eu aprecie o teu gorjeio e farei como for de justiça.
- Que eu cante?!...
- Pois não te parece justo o meu pedido?
- Eu canto para regalo dos reis nos paços: a minha voz acompanha hinos sagrados nas igrejas. O meu canto é a harmoniosa inspiração dos gênios ou a rapsódia sentimental do povo.
- Pois venha de lá esse primor. Aqui estou para ouvir-te e para proclamar-te, sem inveja, a rainha do canto.
- Isso agora não é possível.
- Não é possível! por quê?
- Não está cá o artista.
- Que artista?
- O meu senhor, de cujos lábios sai o sopro que transformo em melodia. Sem ele nada posso fazer.
- Ah! é assim?
- Pois como há de ser?
- Então, minha amiga – modéstia à parte – vivam os sabiás! Vivam os sabiás e todos os pássaros dos bosques, que cantam quando lhes apraz, tirando do próprio peito o alento com que fazem a melodia. Assim da tua vanglória há muitos que se ufanam. Nada valem se os não socorre o favor de alguém; não cantam se lhes não dão sopro; não sobem se os não empurram. O sabiá voa e canta – vai à altura porque tem asas. Gorjeia porque tem voz. E sucede sempre serem os que vivem do prestígio alheio os que mais alegam triunfos. Flautas, flautas... cantam nos paços e nas catedrais... pois venha daí um duelo comigo.
E, ironicamente, a toda a voz, pôs-se a cantar o sabiá, e a flauta de prata, do estojo de veludo... moita.
Faltava-lhe o sopro.

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