sábado, 19 de abril de 2014

Pequenos textos da Literatura Árabe


               
“Alguém me perguntou a idade, depois de ver a velhice embranquecer minhas fontes. Respondi-lhe: “Uma hora. Pois, na verdade, não levo em conta o tempo que vivi fora dela.” Retrucou-me: “Que dizes aí? Explica-te. Eis a coisa mais estranha que já ouvi.” Expliquei-lhe então: “Um dia, por surpresa, dei um beijo, um beijo furtivo, naquela que possui meu coração. Por mais numerosos que devam ser meus dias, não contarei senão este curto instante. Pois ele foi, verdadeiramente, toda a minha vida.”
(Ib Ham – escritor árabe 994 a 1064 d. C.)

Se nunca viste uma rosa extenuada ao sol, não me fales do brilho de suas faces. Se nunca viste um lírio regado pela luz, não me fales da brancura de suas pernas. Mas se alguma vez dormiste nos oásis, compara, então, o perfume de sua pele ao aroma que sobe dos jardins antes da alvorada. Se alguma vez desfizeste contra teus dentes os grãos macios da uva, evoca o gosto de sua boca durante o beijo. Se de noite, no deserto, acreditaste ouvir, em raras ocasiões, a música das constelações em marcha, compara, então, a essa harmonia a música de sua voz. Se nunca choraste de amor, não procures conhecer a que amo.

(Jardim das carícias – coletânea de autores árabes desconhecidos)

Dizes que ela não te quer? De nada adianta desesperar-te e invocar a morte. Se, por acaso, fosses atendido, bem sabes que tratarias de apresentar desculpas por tua invocação. Ela não te quer? E que mais desejas desde que te permita compartilhar seu leito e dela gozar a teu capricho? Acaso, pede a chuva à terra que trema de amor? Acaso, pede a lua ao deserto recompensa pela luz que lhe dá? Insensato! Ela oferece-te rosas desarmadas de seus espinhos, e suspiras buscando feridas! Que ela chegue a querer-te como o desejas; então voltarás para falar-me de morrer, e talvez eu te escute.

(Idem)

Se estás cansado de ser amado por tuas riquezas, veste um velho albornoz escuro, raiado de negro, e sai, descalço, pela noite. Teu coração poderá ser igual aos incensários que os mendigos agitam nas encruzilhadas; poderás cantar ternas canções: não haverá mulher que te faça uma esmola de amor. Todas passarão e dirão: “Para quê? Este pobre diabo nem ao menos tem chinelos.” Que o homem rico faça a experiência do albornoz escuro. Poderá considerar-se feliz aquele que, ao regressar à sua morada, encontre uma bem-amada pronta a lhe dar uma esmola de amor, mesmo por causa de suas riquezas.

(idem)

Um sábio sonhou, certa vez, que era uma borboleta que voejava de flor em flor no Éden da Felicidade. Quando acordou, entristeceu-o a realidade e perguntou a si mesmo: Sou um homem que sonha ser uma borboleta ou uma borboleta que sonha ser um homem?

(Amin Ar-Rihani)

Sacia teu coração em doses redobradas, porque muitas doenças são assim curadas, e atira-te à vida como sobre uma presa porque sua duração é efêmera. Mesmo que tua vida durasse mil anos cheios, não seria exato dizer que ela é longa. Deixar-te-ás levar pela tristeza, quando a cítara e o vinho estão à tua espera? Que a preocupação não se apodere de ti, quando a taça é uma espada reluzente em tua mão. Se te conduzires sabiamente, os cuidados te assaltarão até o mais profundo de ti mesmo; ser sábio, para mim, é não o ser.

(Mutamid)

No círculo de joalheiros de Bassora, ouvi um árabe contar esta história: “Uma vez, perdi-me no deserto, sem provisões. Estava prestes a morrer quando subitamente vi de longe um saco. Nunca esquecerei a alegria que senti ao pensar que o saco continha grãos de trigo fritos, e, depois, a minha amargura e desespero quando descobri que só continha pérolas!”

(Saadi)

Hilal, filho de Al-Ala Ar-Raffa, compôs os seguintes versos: A Preguiça casou sua filha, a Indolência, e lhe deu como dote um leito macio. Depois, disse aos esposos: “Agora, deitai-vos: a criança que nascerá de vós dois não poderá ser senão a Pobreza.”

(Amin Ar-Rihani)

Aquele que vende e compra é, para mim, um ser bastante bizarro; com efeito, nenhuma necessidade lhe faz vergonha, nem o torna confuso. Não digas que é a inveja que me impele; mas é porque sou um filho de família. Vede, por exemplo, o ofício de açougueiro. Eu não o exerceria, por Allah! Ainda que tivesse que passar fome o ano inteiro. Meu pai não mataria bois. Deus me proteja! Sou um filho de família. E depois, tendes o ofício de padeiro. Aprendemos nos livros que ele é conveniente, porque proporciona alimento aos homens. Mas tenho vergonha dele, pois sou um filho de família. Asseguro-vos que não minto: do fundo do coração, gosto de trabalhar. Em certos momentos, é como se a emulação fosse me surpreender. E logo me digo: “Deus me proteja! Eu sou um filho de família.”

(Rachid Ksentini)

Um requerente apresentou-se a um califa de mau-humor. O califa recebeu-o com grossas injúrias. Disse o sujeito calmamente: “Vossa Majestade é como o céu. Quando lança relâmpagos e trovoadas, é que está prestes a mandar o benefício de sua chuva.” O califa acalmou-se e presenteou o requerente.

(At-Tartuchi)

Disse uma folha de papel branco: – “Pura fui criada e pura permanecerei para sempre. Antes ser queimada e convertida em brancas cinzas, do que suportar que a negrura me toque ou o sujo chegue junto de mim.” O tinteiro ouviu o que a folha de papel dizia, e riu-se em seu escuro coração; mas não ousou aproximar-se dela. E os lápis multicoloridos ouviram-na também e nunca se aproximaram dela. E a folha de papel, branca como a neve, permaneceu pura e casta para sempre, pura e casta – e vazia.

(Gibran)

Três viajantes encontraram, certa vez, um tesouro. Depois, sentiram fome, e um dos três foi comprar-lhes comida. No caminho, pensou: “Por que não colocar veneno na comida? Comerão e morrerão, e ficarei com todo o tesouro.” Entretanto, seus companheiros deliberaram também matá-lo e dividir entre si sua parte. Quando voltou, assassinaram-no, e comeram a comida envenenada e morreram.

(Al-Ghazali)

Fath, um notável de Mossul, encontrava-se numa roda de amigos quando passaram por ali dois meninos, um, pobre, levando um pão untado com “kámej” (salsa e vinagre) e outro, rico, com um pão untado de mel.
- Por que não me deixas provar teu pão? perguntou o menino pobre.
- Deixarei, respondeu o rico, se te fizeres de cão para mim.
- Aceito: agora sou teu cão.
O menino rico tirou uma fatia do pão com mel a deu-a a morder ao companheiro; depois, começou a conduzi-lo como um cão, de quatro patas, em meio de gargalhadas. Vendo esta cena, disse Fath aos amigos:
- Se este menino se tivesse conformado com seu modesto pão, não teria se tornado o cão do menino rico. Fez-se cão por um pão doce. Amanhã, quando for grande, fá-lo-á por um cargo público e até atraiçoará seus pais por uma bolsa de ouro.

Conta Aflahu At-Turki:

Saímos, certa vez, à guerra, levando um companheiro que insistia em ver como é que é a guerra. A primeira flecha caiu-lhe na cabeça.
Chamamos um médico, que, após examiná-lo, explicou: “Posso retirar a flecha; se ela sair com traços de seu miolo, morrerá; se não, curar-se-á.” O ferido abraçou o médico; “Agradeço-lhe a boa nova. Pode retirar a flecha, sem temer qualquer traço de miolo.” “Por quê?”, perguntou o médico. “Porque se houvesse miolo na minha cabeça, não estaria agora aqui.”

(Ach-Charichi)

Um dia, falaram de certo santo a um rei dos israelitas, e este o procurou e pediu-lhe que fosse viver na corte e fazer-lhe companhia. “É um convite muito agradável!”, respondeu o santo, “mas suponhamos que entreis um dia no palácio e me encontreis abusando de vossa filha, que faríeis?”
O rei encolerizou-se e gritou: “Oh, miserável, tu me insultas ao dizeres semelhante coisa!”
E o santo respondeu; “Eu já tenho um generoso Senhor. Quando ele me vê cometer setenta ofensas, não me hostiliza, não me repele, não me recusa o pão de cada dia. Por que eu deixaria sua corte para viver na corte de um rei que se enfurece contra mim antes que eu tenha cometido uma só ofensa?”
Então, deixou o rei e foi-se embora.

(Al-Kaliubi)

Ouvi um homem dizer:
- Se gozasse da saúde do corpo e da lucidez da mente, poderia realizar grandes obras e conquistar grandes vitórias.
Fiquei a meditar nessas palavras, e pareceu-me que resultavam duma lógica invertida, e que seu autor deveria, antes, ter dito:
- Se eu estivesse trabalhando numa obra em que acreditasse, e se procurasse conquistar grandes vitórias, gozaria da saúde corpo e da lucidez da mente.

(Mahmud Taimur)

(Textos do livro: As mais Belas Páginas da Literatura Árabe,
de Mansour Chalita)


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