Todos fomos pés-pretos...
Conseguimos e se não tivéssemos conseguido?...
Talvez eu nunca tenha dado a
devida atenção aos pés-pretos*, militares que não conseguiram sair
paraquedistas. Eu, por não ser um instrutor profissional, nunca me preocupei
com o assunto, agora comecei a me preocupar. Houve injustiças, sim, houve e
muitas. Sei que os militares graduados sofriam até mais que os soldados,
principalmente os sargentos. Todos sofriam, alguns muito mais que os outros: os
pés-pretos!
*Todos os militares de qualquer unidade do Exército brasileiro usam um
coturno preto. A Tropa Paraquedistas, por ser uma da forças de elite do Brasil,
usa um bute marrom. Além disso, pode ostentar um brevê prateado e uma boina
bordô.
O pé-preto**, seja de qualquer
graduação, sofria... e muito. Tinha que fazer com tenacidade todos os
exercícios na Área de Estágios. Sua capacidade física e psicológica era testada
diariamente no limite máximo de suas forças. O cansaço, a dor, a pressão, o
medo, tudo estava presente durante todo o período do curso. O fantasma de sair
pé-preto era o que aterrorizava mais, principalmente para os que vinham de
longe. “Sou gaúcho, vim do Sul, como é que vou voltar para a minha terra!”. Meu
Deus, seria a maior dor da minha vida, a maior vergonha que um ser humano
poderia passar, pelo menos na minha ótica machista.
Então, você tenta fazer tudo o
mais perfeito possível, e parecia que quanto mais você se esforçasse, tudo
estava cada vez mais errado. Havia muitos exageros por aquilo que era pedido.
Você estava sempre pronto a explodir e mandar tudo pra puta que pariu. Quantas
vezes tive vontade de dar uma porrada num instrutor e mandar tudo à merda. Mas
você tem um propósito, uma missão e um sonho a conquistar. Você afina, cala a
boca e faz tudo que lhe mandam fazer.
Lembro da dor que se sente num
equipamento suspenso, vulgo quebra-culhão, se o instrutor não for com a sua
cara, ou achar que você está muito folgado, dando sinais que está levando tudo
na flauta. Então, ele aperta mais as tiras das suas pernas, imprensando mais os
seus testículos. Você tem um período para aguentar isso. Se aguentar, é apenas
um sofrimento que você ultrapassou. Há outros... Sessão de toros, tudo normal,
tudo concatenado, tudo certinho, aí começa a aparecer o cansaço, a
descoordenação, ele vai acima, desce sem amparo e o toro bate com força no seu
ombro, como se fosse uma paulada.
As provas do pavor, a famigerada
torre, o terror de quem até então não sabia que tinha medo de altura. Saltar
confiando num equipamento que você nunca viu na vida. A primeira impressão é a
pior possível. Você não se joga, você cai da torre, o medo está na sua
capacidade natural de sobrevivência. Você é um ser humano, você não é um louco
varrido. Aos poucos, por incentivo dos instrutores, você vai saindo da torre
com mais determinação. O triste, o que incomodava mesmo era olhar o rosto de
quem não saltava da torre. Caras fortes, marrentos, descerem da torre de cabeça
baixa, envergonhados, caminhando para o desligamento. Muitas vezes era um amigo
seu, entusiasmado, louco para ser um PQD, e na torre ele fica sabendo o limite
da sua confiança, do medo até então desconhecido para ele. A sua tristeza,
vendo tal cena, era a mesma do companheiro desligado.
E havia os ajustes de contas com
algum instrutor. Num exercício mal feito no quartel, uma palavra brusca, um
desentendimento banal, um rancor acumulado, uma inveja qualquer, um racismo
disfarçado... Há o encontro na Área de Estágios. Não interessa como você faz o
exercício, como você aterra, como você sai da torre. Tudo que você faz, faz mal
e pronto. Você será um pé-preto, que terá outra chance, em outra oportunidade
sem “aquele” instrutor.
Por isso, tenho que rever alguns
(pré)conceitos que tinha e muito de nós, provavelmente, também tenha, em
relação a algum pé-preto que passou pela nossa vida. Quantos sonhos foram
desfeitos; quantos não ficaram para sempre com a sua auto-estima abalada;
quantos suicídios não ocorreram pela perda de um sonho desfeito?
Sempre agradeci a Deus por ter
conseguido o brevê, o bute e a boina. O sucesso que tive na vida foi fruto do
que passei na Área de Estágio e no RSD. Sou, em tudo que faço, um vencedor. E
se eu não tivesse conseguido? Se eu fracassasse? O que seria da minha vida? No
que eu teria me tornado? E os que não conseguiram? A dor, o desencanto, o sonho
tão perto, e, por alguma bobagem, por uma vingança, ter fracassado... É fogo,
meu irmão!
Nilo da Silva Moraes
– Pqdt 11.779 – C-82, C-119, C-130
** “Pé-preto”, “Pé-de-urubu”,
“Pé-de-cão”: Expressões para se referir a militares que usam coturnos pretos,
que não são paraquedistas.
Pé-preto
A emoção e o temor de cada um de nós:
Plagiando-te, confirmo tudo que
disseste e acrescento: ficar pé-preto é um peso que o sujeito carrega para o
resto da vida, talvez não muito àquele que se acidente durante a fase
pré-básica, como colegas que fraturaram tornozelo, adoeceram fortemente e
outros infortúnios; estes, sabíamos, tinham condições de sair pqdt. Mas àqueles
que negavam a torre, que se encagaçavam, deve ser sido muito doloroso. Quando
eu era monitor da Área de Estágio, me lembro de um soldado que fizemos de tudo
para ele saltar da torre. Explicamos que ele estava seguro, que os tirantes
suportavam peso muito maior que o dele, o convencíamos a subir e tentar e...
nada. Chorava com raiva dele mesmo. “Todo mundo salta, menos eu?” Dizia
chorando. Dava pena. Há o caso, também, de um companheiro nosso, antigão, dos
“ótimos”, que também carrega uma frustração enorme, acho que até hoje. Levou seu
irmão para a Brigada, para a Companhia dele e o irmão ficou pé-preto, pois não
saltou da torre de jeito nenhum, causando um mal-estar e uma decepção imensa. Ele
levou aquele ano todo com a maior vergonha, até mesmo tratando mal o irmão. Por
uma consideração especial, não digo seu nome, pois ele é bem conhecido.
Repetindo. É fogo!
Sergio de Oliveira Mattos
– Pqdt 10.919
Sem dúvida, um texto profundo,
irretocável. Descreve simplesmente o que ocorreu com todos nós: o medo de
perder.
Nossos parentes e vizinhos sabiam
o que estávamos fazendo, embora não soubessem das dificuldades. Vendo-nos de
volta, com as mãos vazias, ficariam surpresos e nos culpariam de incapacidade, falta de tenacidade, de força de vontade, etc.
Eu temia isso.
Na quarta-feira, sofri um
estiramento e o resto da Área de Estágios foi uma tortura, pois a dor era
indescritível. Alguns exercícios demandavam força de vontade inimaginável. É
como se eu estivesse procurando a dor. Fazer sabendo da dor que viria em seguida. Tenho
grande orgulho de ter conseguido.
Sim, foi um ótimo texto. Real.
Clarival Vilaça –
Pqdt 10.313
Militei por onze anos na Área de
Estágios, em todos os cursos que possuo, tenho orgulho de dizer que nunca perdi
um aluno por recusar a torre ou dificuldade na aterragem da plataforma ou plano
inclinado (antigo) ou balanço. Em 1954, um aluno com 16 anos (ele aumentara a
idade para 17), recusou a torre, fui convocado pelo Cap. Dirceu do curso para
convencer o garoto. Deu cinco saltos, deu baixa, e, anos mais tarde, voltou a
servir na Colina Longa como Oficial Pqdt. Foi o meu ápice de vitória como
profissional. Acreditem se quiserem, paro por aqui.
Ly, é disso que às vezes falo
aqui. Da nossa satisfação emocional, dessas conquistas que temos conseguido ao longo
da vida, no encaminhamento de rapazolas que, sem nós, sem instrutores calmos e lúcidos, desistiriam por simples falta de incentivo.
Clarival Vilaça –
Pqdt 10.313.
Parabéns, Nilo! Lendo esse
excelente e realista texto, transportei-me apara os idos da década de 60. Após
vários anos lidando na formação de paraquedistas, orgulho-me de não está
incluído no rol dos que, possuidores de má índole, despejavam nos “pés-pretos”
seus recalques subalternos.
Mais uma vez, meus parabéns.
JB Rodrigues – Pqdt 5.113
Nobres Companheiros!
Extraordinariamente oportuna a bem circunstanciada
descrição. Parabéns ao mestre Nilo.
Agora que já passou a fase de
distribuição do “nosso” modesto trabalho, estou debruçado em novos Perfis /Depoimentos – como já informei – e tenho colhido alguns de “pés-pretos”, levando em conta o
alto significado no contexto da Área de Estágios e de toda a História da GU
Pqdt.
Domingos Gonçalves –
Pqdt 2.696
Combatentes, bom dia!
Em nome da classe dos “pés-pretos” agradeço...
Deixem-me relatar um “assucedido”.
Em dezembro passado, participei de um treinamento de desenvolvimento ao ar
livre na área de RH na cidade de Gramado... Até aí tudo bem, palestras
soporíferas, conversa para levantar a auto-estima... altamente sedativas, mas o
melhor ficou para o período da tarde!
Dentre as atividades ao ar livre,
tivemos uma de arvorismo, ou seja, escalar um tronco de árvore e ficar na
plataforma metálica, devidamente preso por cintos e cabos de segurança. A
surpresa era que tínhamos que saltar de uma altura próxima dos 15 metros e bater em um
sino distante uns 3 metros
de onde ficávamos... Bueno, lhes digo, saltei uma, duas, três vezes e, se o
instrutor não tivesse me obrigado a sair, creio que estaria saltando até agora!
Minimizou o grande desejo de saltar
de uma aeronave, não é muita coisa, mas as fotos ficaram para a posteridade. É
uma sensação indescritível!
Gracias a todos!
André Matzembacher -
Grafonense
Posso desabafar?
Diferente de outras classes, as
turmas de 82 a
86 foram convocadas no III Exército. Éramos sulistas sim, Gaúchos, Barrigas-Verdes
e Coxas-Brancas. Quando chegamos à Brigada, fomos recebidos como animais, fomos
lesados em patrimônio e sofremos lesões, eram eles (travestidos de paraquedistas)
revoltados contra nós, havia oficiais, sargentos, cabos e, principalmente, soldados
obcecados em fazer nosso pessoal desistir. Éramos quase 200, chegaram à boina
apenas 142. Quem perdeu?
Temos pessoas a lembrar: Capitão
Caçadini, Capitão Luiz Celso, Tenente Viana, Sargentos Borlani, Dubois, Lara; Cabos
Neto, Pedro, André, entre um monte de grandes pqdts, mas sabíamos que eles (aqueles
obcecados) tinham, como principal objetivo, não deixar a gente sair pqdt. Na
serra de Madureira, lá estavam os renegados, violentos e boçais soldados do
Santos Dumont (26 BIPqdt) de antigo, que com varas na mão agrediam nossas costas
e nos davam na cara.
Após a vitória, tristes com os desligados,
mas mesmo assim vitoriosos. Queriam nos abraçar e nos chamar de irmão: Pro
inferno eles! Conseguimos vencê-los engajando na própria unidade, fazendo os
cursos de graduação. A melhor forma de recebê-los em 5 de dezembro é... com um
abraço.
Nós vencemos,
pessoal. Somos homens do Grafonsos!
Sérgio de Mello
Queiroz – Pqdt 38.937
C-95-B, C-115, C-130, MAC 130-USA
C-95-B, C-115, C-130, MAC 130-USA
Mestre Nilo, você tem
sensibilidade. Quando se tratava de um 1º Sargento, antigão, era de estarrecer.
Este pé-de-urubu vai tirar minha vaga de promoção, é aventureiro só quer é nos
prejudicar, e outras sandices.
No meu curso, o 1º Sargento Flávio
Ribeiro Santos, Febiano, herói ferido em combate, na sua unidade em Curitiba,
PR, não me lembro qual, mas era de Engenharia, numa conversa entre os colegas,
ele declara que para completar sua vida de militar, só lhe faltava ser paraquedista.
Os seus colegas, gargalhando, disseram:
- Você jamais vai
conseguir, aquilo lá é uma panelinha e um Sargento igual a você, com tantos
pontos para promoção, não tem chance.
- Mas eu não quero tirar a
vaga de ninguém, só pretendo ser PQD. Tiro o curso e volto para a minha
unidade e acabou!
-
Duvidamos que os paraquedistas acreditem em você.
- Bem, acreditando ou não,
vou fazer minha inscrição agora e voltarei PQD para queimar a língua de vocês.
Quero ressaltar que foi no ano de
1951, não havia Curso Especial para os militares acima de 35 anos. Muito justo
este curso idealizado pelo Major Demócrito e seu oficial, Capitão Granja, se
não me trai a memória.
Em maio de 1951, tem início do Curso
Básico de Pqdt 1951/03, estamos matriculados Sgt Ly Adorno , Sgt Flávio Ribeiro
Santos e outros Sgts. Bem, o restante do curso é só lerem no livro Ser
Pára-quedista, página 99 e saberão a intensidade do nosso curso.
Em 04/06/1951, somos brevetados
Pqdt 503, Sgt Ly Adorno
e 1º Sgt Flávio, Pqdt 513. Na semana seguinte, o Cel. Penha Brasil manda chamar
Sgt Flávio e insiste para ele ficar na Escola, pois a Cia Eng tinha deficiência
no quadro de Sargentos, o que era verdade; em 1952, eu dei instruções de ordem
unidade e organização do terreno para os soldados naquele ano... O Cel Penha
Brasil insiste e até pergunta se era problema de avião...
- Meu Coronel, para nós
dois, que lutamos na Itália, enfrentando os tedescos, saltar de avião é um
simples meio de transporte para a luta! Disse aos meus colegas, no Paraná, que
só queria ser paraquedista para completar minha vida militar.
E o meu digno colega, que pagou
um preço alto, cumpriu sua palavra. Igual a qualquer audaz Pqdt.
Caríssimo amigo Fagundes:
Gostei muito do e-mail sobre os
“pés-pretos”. É a pura realidade. O nosso amigo Nilo disse tudo e nos anos
sessenta é que era pior.
A maioria dos contingentes
incorporados era de recrutas vindos de longe como do RS, SC, PR, SP, MG e de
outros Estados ou cidades, como no meu caso, vindo de Nova Friburgo-RJ. Fiquei
três meses sem ir em casa, morando no quartel, sofrendo todo tipo de
humilhação. Pergunta ao Sérgio Chaves e ao Clarival Vilaça. Nós éramos da mesma
CAR/RSD. E, se falhássemos...
Sinceramente, esta matéria
deveria ser enviada ao Comando da Brigada para uma profunda reflexão.
Um forte abraço:
Paulo Sérgio Salerno,
Pqdt 10.207, 1963/3
MS do 1966/2,
dos aviões: C-82,
C-119, C-115, C-95 e C-130.
Caro Salerno, saudações Aeroterrestre/Pqdt.
Permita-me, a guisa de enriquecimento quanto às origens dos bravos paraquedistas, acrescentar nossos irmãos sergipanos que, em grande número, incorporaram no BSD (Batalhão Santos Dumont) quando ainda era nas dependências do 2º RI, onde, “lata de goiabada” (vazia) servia para suas alimentações.
Lembro-me, com saudades, dos
companheiros Gervásio Dantas Sobrinho, Hércules Capibaribe e Raimundo Machado,
este último apelidado de “Três Quinas” (todos nordestinos).
Abraços, JB
Rodrigues, Pqdt 5113, 58/6
TIBAét.
C-82, C-130 (1960),
C-119 e C-115.
Os obstáculos de um pé-preto
Apresentação Área de
Estágios: o sonho perto e distante...
Equipamento suspenso:
o terrível quebra-culhão.
Sessão de cordas, uma parte do problema.
Sessão de barras: subir
e descer ao comando do instrutor.
Os incontáveis
pulos-de-galo, para fortalecer os tornozelos.
Sessão de toros, o sofrimento sem limites.
O arrasto, lição para domar o paraquedas no solo.
A torre, o limite do
medo desconhecido.
Por fim, com os pais, o dia da brevetação!
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