terça-feira, 4 de dezembro de 2018

O caso da Neca*

Luiz Bacellar


“Eu juro, senhor juiz,
não fui eu quem a matou,
que a pior fera do mundo
me agarre se assim não for!
Juro! Por São Jorge eu juro,
que é meu santo protetor!”
E o juiz acreditou...
..........................................

Estava lavando roupa
quando o seu crime pagou
(ainda há pouca tornara
a jurar.) Por toda a margem
do igarapé do Educandos
lavadeiras conversavam
suas roupas enxaguando.

Todo mundo comentava
a morte misteriosa
da irmã da Neca, coitada!
a infeliz era leprosa,
mas juntara algum dinheiro
na esperança de sarar.

(Dinheiro amaldiçoado,
porque Neca o cobiçara
e no inferno foi parar.)
estava batendo roupa
na beira do igarapé.
Todo mundo comentava
(o corpo fora encontrado
no quintal, semienterrado,
quase à flor da terra, pelas
folhas secas disfarçado)
e a Neca ainda jurava
por São Jorge protetor:
“Quero que o dragão me pegue
se agora mentindo estou.”
E São Jorge Ogum mandou...

Saiu das águas um bicho
coberto de limo negro
que com a Neca carregou.
Ninguém vira um jacaré
tamanho daquele jeito
mas todos viram quando ele
com a Neca arrebatou.

E com a Neca nas mandíbulas
três vezes ele boiou
pra que todo mundo visse
a falsa que perjurou.

Três vezes por toda a margem
do igarapé a mostrou.
Depois, com o corpo sangrento
da Neca preso nos dentes,
no fundo negro das águas
para sempre mergulhou.

*Do livro “Frauta de barro”, de 1963.


Luiz Franco de Sá Bacellar (Manaus, 4 de setembro de 19289 de setembro de 2012) foi um poeta brasileiro. Considerado um dos poetas mais expressivos da literatura amazonense ganhou com sua estreia literária Frauta de barro (publicado em 1963) o Prêmio Olavo Bilac da Prefeitura do Rio de Janeiro em 1959.

Luiz Bacellar é um dos escritores mais significativos da literatura que se produz no Amazonas. Nascido em Manaus, no dia 4 de setembro de 1928, o poeta viveu sua infância numa época marcada pela crise econômica que se seguiu ao fausto do "ciclo da borracha". Sua obra é perpassada por elementos de forte componente erudito, ao mesmo tempo em que retrata temas e motivos da cultura popular, do folclore, em particular as vivências de sua infância no bairro dos Tocos, hoje Aparecida.

O universo poético retratado por Bacellar, sobretudo em Frauta de Barro, constrói-se sobre o plano da memória. Tece seus versos com os fios das lembranças, reminiscências de seu mundo infantil. Constrói um mapa esmaecido de uma cidade corroída pelo tempo e pelas transformações econômicas – Manaus. Não a que conhecemos hoje, surgida sob as determinações da Zona Franca, mas a Manaus provinciana da segunda metade do século que se encerra.

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