Ivan Angelo*
Desde o Natal passado, a pequena Vivian
guarda um segredo maior do que poderia acomodar, tanto que o dividiu em dois:
esconde parte no coração e parte no cerebrozinho esperto. Não pensou nele o ano
inteiro, nem poderia; na verdade esqueceu-o, mas no início de dezembro, ao
perceber nas cores, nas luzes, nas músicas, na televisão, na escolinha, nos
shoppings e no rebuliço geral os sinais de um novo Natal, o segredo voltou a
deixá-la intensa, porque possuidora de um conhecimento que as outras crianças
não tinham.
Na escolinha, coleguinhas diziam bem
alto:
– Papai Noel
não existe!
Como se soubessem do que estavam
falando! Ouvi-los era a confirmação íntima de que só ela sabia o segredo. Se vinham
dizer-lhe pessoalmente que Papai Noel não existia, iluminava-se poderosa,
única, não conseguia esconder um quase sorriso de superioridade, e rebatia com
firmeza:
– Claro que
existe! Eu conheço ele.
Tanta segurança numa criança de nem 4
anos abala certezas. Os meninos, que confiam e desconfiam mais depressa do que
as meninas, queriam saber detalhes, para decidir se tomavam nova posição nessa
questão. Mesmo aquelas crianças cujas certezas vinham de pais que não estimulam
mitos e encantos, mesmo essas ficaram acesas, atentas. Saber ou não saber é
crucial na infância. Quem nada sabe subordina-se; quem sabe é general.
– Conhece
ele? Como é que conhece, se ele não existe?
– Conheço e pronto – afirmou Vívian
como se não pudesse dizer mais nada, como se tivesse chegado a um limite.
– Você viu
ele? – perguntou umazinha, coadjuvante natural.
– Vi e vejo
– confirmou Vívian, inabalável em sua segurança.
– Vê nada! Vê onde? Todos são de
mentira – desafiou o mais atrevido, apresentando um dado concreto para
desmentir a impostora.
– Sei muito
bem que esses do shopping são de mentira. Não é desses que estou falando.
– De qual,
então?
– Não posso contar – disse Vívian, e
diante dos muxoxos de dúvida acrescentou com inquebrável ética: – Ele pediu
para eu não contar. Disse que é o nosso segredo.
Entre
crianças, estava explicado. Segredo é segredo.
Vívian vivera intensamente aquele
segredo nos dias que se seguiram ao Natal passado. Sorria para o Papai Noel,
que continuava em sua casa disfarçado de pai, sem que ninguém adivinhasse, e
ele sorria de volta, confirmando, pensava ela, confirmando o compromisso.
"É o nosso segredo", ele havia dito. Que poderia fazer senão calar-se
maravilhada, se havia descoberto contra a vontade dele o seu mistério? Naquele
mágico Natal passado, entre músicas e primos, quando recebeu das mãos do Papai
Noel exatamente o presente que havia pedido e o abraçou, sentiu nele aquele cheiro
bom de todas as noites, olhou primeiro intrigada, depois devassadora e
inescapável, olhou o homem por trás dos óculos, da barba, do bigode, abriu os
olhos de espanto e falou ainda presa ao abraço:
– Papai
Noel, você é o meu...
– Psiu!
Ninguém sabe! É segredo. É o nosso segredo!
Guardou com fervor o segredo.
"Ninguém sabe" foram palavras mágicas. Então aquele era o Papai Noel
de verdade! Ninguém sabe. Se alguém mais soubesse, se fosse uma coisa que todos
soubessem, ele seria como os outros! E era em sua casa que ele vivia! Ninguém
sabia, nem a mãe, nem o irmão, nem os primos, nem os amiguinhos da escola – só
ela! O segredo inundou-a de uma responsabilidade enorme e de medo de se trair.
Tinha de prestar muita atenção para não errar. Esteve tensa e cansada durante
muitos dias, mas aos poucos esqueceu.
E então veio dezembro novamente, e
trouxe de volta prenúncios de Natal e a responsabilidade insuportável. Não,
não, não! Não queria viver aquilo de novo, decidiu. Pensou, secreta e
maliciosa: naquele Natal, ia contar para todo mundo.
Do livro “Crônica
Brasileira Contemporânea”,
organização e seleção de Manuel da Costa Pinto
*Ivan Ângelo (Barbacena, 4 de
fevereiro de 1936) é um jornalista, cronista e romancista
brasileiro.
achei maneiro e legal
ResponderExcluir