A praga dos selfies
Walcyr Carrasco*
(Nem o Papa escapou dos selfistas...)
Nada mais útil que o celular. Mudou a
forma de as pessoas se relacionarem. Criou negócios. Sou um fã incondicional,
desde os tempos em que o conheci em Miami, bem antes de chegar ao Brasil. Sim,
demoramos. Só com a privatização aconteceu a revolução telefônica. Meu primeiro
era um tijolão. Era difícil dar linha. Pesado, seria uma boa arma em caso de
assalto. Celulares evoluíram. Substituíram as câmeras fotográficas em grande
escala. Esse é meu horror. Qualquer um com um mínimo de exposição pública, como
eu, passa boa parte do tempo fazendo fotos com pessoas que não conhece. Alguém
vê e se aproxima:
– Faz uma
foto comigo?
A maior parte das vezes digo que sim.
A pessoa é simpática, eu escrevo novelas, livros, por que não? Mas nem sempre
dá. Outro dia, eu estava falando ao telefone, no aeroporto. Uma mulher se
aproximou. Pediu a foto. Fiz sinal para esperar que eu terminasse a ligação.
Saiu xingando. Esse é o problema. Muita gente acredita que é obrigação da
pessoa conhecida tirar fotos a qualquer momento. Recentemente, no aeroporto de
Belo Horizonte, chamaram para o meu voo. Mas eu tinha uma necessidade urgente
de ir ao toalete. Voei naquela direção. Uma senhora entrou na frente com a
filha pequena.
– Minha
filha leu seu livro na escola. Faz uma foto?
Como
recusar? Aterrorizado pelo tempo, sorri. Ela clicou.
– Ah, não
sei o que aconteceu. Acho que apertei errado. Faz outra?
Eu, a menina e a mãe posamos de novo,
enquanto meu voo chamava e eu trançava as pernas. Outra vez:
– Não ficou
boa! Vamos fazer outra?
– Minha
senhora, não dá. Preciso ir ao toalete.
Ficou
paralisada, ofendida, enquanto eu corria.
Na recente Bienal do Livro, em São Paulo , estava numa
das esquinas. Uma senhora pediu a foto. Topei. Formou-se uma roda em torno de
mim. Era uma foto atrás da outra. Eu me sentiria um ídolo pop se não soubesse a
verdade. Boa parte das pessoas não tinha ideia de quem eu era. Quando alguém vê
um grupo em torno de alguém fazendo fotos, quer também. Sente que é uma
oportunidade que não pode perder. Já ouvi a pergunta, após o clique.
– O senhor
quem é mesmo?
Afinal fugi,
deixando umas 50 pessoas ofendidas. Diziam:
– Só mais
uma!
Sei de casos com atores, mais
conhecidos que eu, incapazes de conversar num local público. Sempre alguém
interrompe, celular na mão.
– Faz uma
foto.
O sujeito pode estar se
separando da mulher, na conversa mais séria de sua vida. É obrigado a
interromper. Muitas vezes, quando leio uma reportagem onde a prova é que fulano
aparece numa foto com um criminoso, penso:
– Mas e se
ele fez aquela foto sem saber quem era?
Foto de celular deixou de ser prova
de relacionamento. Já devo ter sido fotografado com traficantes e foragidos.
Como saber? E em todas apareço sorrindo, sem ter a menor ideia de quem se
trata. Evito, sim, ser fotografado com políticos. Posso aparecer numa campanha
anos depois, como se desse aval.
Minha grande curiosidade é: o que as
pessoas fazem com essa infinidade de fotos? Vão para alguma nuvem? Daqui a
séculos um estudioso terá acesso e tentará compreender o que significam esses
milhares de sorrisos? Penso que as pessoas tiram as fotos, deixam na memória do
celular e nunca mais veem. Exatamente como eu faço. Às vezes abro a memória sem
querer e me vejo com meus dois gatos, que já se foram. Ou com amigos com quem
nem falo mais. É até um susto.
De uma coisa tenho certeza. A foto
pelo celular vale apenas pelo momento. Não será feito um álbum de fotografias,
como no passado, onde víamos as imagens, lembrávamos da família, de férias, de
alegrias. As imagens ficarão esquecidas em um imenso arquivo. Talvez uma ou
outra, mais especial, seja revivida. Todas as outras, que ideia. Só valem pelo
prazer de fazer o selfie. Mostrar a alguns amigos. Mas o significado original
da foto de família ou com amigos, que seria preservar o momento, está perdido.
Vale pelo instante, como até grandes amores são hoje em dia. É o sorriso,
o clique, e obrigado. A conquista: uma foto com alguém conhecido.
Tento não recusar nenhuma foto. É uma
questão de respeito com quem gosta do que escrevo. Outras pessoas, até mais
famosas, pensam como eu. Virou um vício social. Uma praga. Sei que minha imagem
um dia será apagada para ceder espaço a outras e outras. Mas tudo hoje é assim:
volátil. O que vale é o sorriso e o momento.
*Walcyr Carrasco é
jornalista, autor de livros, peças teatrais e novelas de televisão.
(Da revista Época,
setembro de 2016)
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