quinta-feira, 13 de julho de 2023

Rimas

 Luis Fernando Veríssimo

O homem chegou em casa assustado:

− Está por toda a cidade, é uma sina: todo mundo falando com rima.

− O quê? − perguntou a mulher.

− Uma compulsão, um vírus, algo no ar. Não se diz mais nada sem rimar.

− Que absurdo − disse a mulher − um vírus da rima. Ninguém é obrigado a falar o que não quer, seja homem ou mulher. Nenhuma lei... Meu Deus, peguei!

− É na rua, é em casa, é em todo lugar. Não se fala sem rimar.

− Mas é uma barbaridade, ser poeta contra a vontade!

− Concordo, é um abuso. Mas o que fazer? Estou confuso.

− Só há um jeito de se rebelar, resistir e não rimar...

− Como?

− Não falar.

− Mas como nos comunicaremos, se não com as vozes que temos?

− Escrevendo, por que não? Ninguém manda em nossa mão.

− Sei não, será que muda? E se eu escrever como o Neruda?

− Não é hora pra chilique. Pega um papel, e olha a Bic.

O homem experimenta escrever uma frase no papel. Depois recua, horrorizado.

− Estou quase tendo um ataque. Escrevi como o Bilac!

− Será uma coisa generalizada, que atingiu até a empregada?

− Vamos ver se é ou não é. Chame a Nazaré.

A mulher chama a empregada.

− Nazaré, vem aqui um minutinho?

A empregada responde da cozinha:

− Já vou indo, um instantinho. Estou fazendo ensopadinho.

O homem e a mulher se abraçam. É uma epidemia. A rima tomou conta do país. Mas por quê? A mulher tenta racionalizar.

− Tem que haver explicação. Um motivo, uma razão.

− Terá sido a eleição?

− Mas como, de que jeito? O que foi que mudou com o pleito?

− Elegeu-se o maravilhoso...

− Quê?

− ...Fernando Henrique Cardoso

− O Cardoso, maravilhoso? Me admira você, que votou no PT!

− Você não está entendendo? Eu não sei o que estou dizendo!

− Calma, não se apoquente. Fale outra vez, pausadamente.

O homem faz um esforço, mas não consegue.

− Elegeu-se. O. Maravilhoso. Fernando. Henrique. Cardoso.

− Tente outra rima, com urgência. Quem sabe 'seboso', pra manter a coerência?

− Não consigo, não vê? Tente você.

− Elegeu-se o...

− Sim?

− Elegeu-se o...

− Sim?

− Gostoso...

− Não!

− Fernando Henrique Cardoso.

− Já vi, é uma perfídia. Tudo culpa da mídia. Nós não estamos enfeitiçados, estamos é condicionados.

− Quando ele se elegeu, foi nisso que deu. Há uma rima oficial no Brasil − pelo menos até abril.

− Quem variar é exótico, até impatriótico.

− Paciência, relaxemos. Isso passa, esperemos.

− Eu até diria assim: rima melhor quem rima no fim.

Aparece a Nazaré na porta da cozinha.

− A senhora chamou. Aqui estou.

− Nada, nada, Nazaré. O ensopadinho, de que é?

− De vitela cortadinha. Batata, vagem e cebolinha.

− Parece uma beleza, pode botar na mesa. 

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 (Do caderno Revista de Zero Hora, 16 de outubro e 1994)

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