O príncipe não estava nada bem. Teria
sido a água salobra de Santos ou algum prato condimentado na noite anterior?
Não se sabe − nem ele o sabia. O fato é que uma diarreia o atacara, e a árdua
cavalgada pelas curvas da estrada de Santos até o platô de São Paulo em nada
contribuíra para a recuperação do combalido ventre principesco. Assim, quando o
correio real Paulo Bregaro, que havia partido feito raio do Rio de Janeiro em
direção a Santos, chegou às margens do Riacho Ipiranga com um maço de cartas
urgentes para Dom Pedro, ele logo avistou os membros da guarda de honra parados
numa colina. Dom Pedro estava à beira do córrego, “quebrando o corpo” − de
calças arriadas, “a responder a mais um chamado da natureza”. O oitavo daquele
dia.
As missivas lhe foram entregues
enquanto ele abotoava a braguilha. As circunstâncias não eram, portanto, as
mais apropriadas para a “perpetração da notável façanha”. Ocorre que as
notícias que lhe chegavam eram de tal forma perturbadoras, que, após ler,
amassar e pisotear as cartas, Dom Pedro montou em sua mula, trotou meio sem
jeito até o topo da colina e dali gritou para seu séqüito: “Amigos, as Cortes
de Lisboa nos oprimem e querem nos escravizar. Nossas relações estão rompidas”.
Então, após arrancar a insígnia
lusitana de seu uniforme, ele sacou a espada e ouviu-se do Ipiranga às margens
plácidas de um príncipe heroico brado retumbante: “Por meu sangue, por minha
honra e por Deus: farei do Brasil um país livre”. Aí, erguendo-se dos estribos
e com a espada a riscar os céus que anunciavam a primavera, o bom Pedro
asseverou: “Brasileiros, de hoje em diante nosso lema será: Independência ou
morte!” Eram quatro horas da tarde de 7 de setembro de 1822 e o sol, em raios
fúlgidos, brilhou no céu da pátria naquele instante.
As cartas, com se vê, desempenharam
papel preponderante na trama − e não só as enviadas pelas autoritárias Cortes,
mas também as da futura imperatriz, dona Leopoldina, a brilhante esposa
austríaca do príncipe, e as do não menos brilhante José Bonifácio, o único
gênio a exercer a política no Brasil. E também, é claro, as cartas escritas
pelo próprio Dom Pedro − incluindo as explicitas odes eróticas que ele tecia
para a amante, a Marquesa de Santos.
Mas fico cá pensando com meus
desabridos botões: sabe que, no fundo, talvez tenha sido bom Dom Pedro não ter
usado aquelas cartas ardentes para limpar o traseiro em tão ardido momento?
Pois, assim, os papéis que sobraram para registrar aqueles feitos puderam arder
na pira da incúria e da ignorância, acesa junto às chamas que devoraram o Museu
Nacional. Além disso, por não ter se limpado com papel, mas nas águas do
Ipiranga, Dom Pedro ajudou a deixar o riacho tão pútrido, fétido, viscoso e
nojento quanto ele está correndo hoje às margens plásticas.
E no fim da contas, que símbolo
poderia afeiçoar-se mais ao Brasil do que um esgoto a céu aberto?
Eduardo Bueno, 7.9.2018, em Zero Hora
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