segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

Uma carta e o Natal*



Por Carlos Heitor Cony,
na Folha de S. Paulo, em 31.12.2017

Este será o primeiro Natal que enfrentaremos, pródigos e lúcidos. Até o ano passado conseguimos manter o mistério − e eu amava o brilho de teus olhos quando, manhã ainda, vinhas cambaleando de sono em busca da árvore que durante a noite brotara embrulhos e coisas. Havia um rito complicado e que começava na véspera, quando eu te mostrava a estrela onde Papai Noel viria, com seu trenó e suas renas, abarrotado de brinquedos e presentes.

Tu ias dormir e eu velava para que dormisses bem e profundamente. Tua irmã, embora menor, creio que ela me embromava: na realidade, ela já devia pressentir que Papai Noel era um mito que nós fazíamos força para manter em nós mesmos. Ela não fazia força para isso, e desde que a árvore amanhecesse florida de pacotes e coisas, tudo dava na mesma. Contigo era diferente. Tu realmente acreditavas em mim e em Papai Noel.

Na escola te corromperam. Disseram que Papai Noel era eu − e eu nem posso repelir a infâmia e o falso testemunho. De qualquer forma, pediste um acordeão e uma caneta − e fomos juntos, de mãos dadas, escolher o acordeão.

O acordeão veio logo, e hoje, quando o encontrar na árvore, já vai saber o preço, o prazo de garantia, o fabricante. Não será o mágico brinquedo de outros Natais.

Quanto à caneta, também a compramos juntos. Escolheste a cor e o modelo, e abasteceste de tinta, para “já estar pronta” no dia de Natal. Sim, a caneta estava pronta. Arrumamos juntos os presentes em volta da árvore. Foste dormir, eu quedei sozinho e desesperado.

E apanhei a caneta. Escrevi isto. Não sei, ainda, se deixarei esta carta junto com os demais brinquedos. Porque nisso tudo o mais roubado fui eu. Meu Natal acabou e é triste a gente não poder mais dar água a um velhinho cansado das chaminés e tetos do mundo.
*****
*A última crônica de Carlos Heitor Cony, que faleceu no dia 5 de janeiro de 2018. Ele tinha 91 anos. (14.03.1926 – 05.01.2018)

→ Abaixo, uma crônica de Carlos Heitor Cony, publicada pela Folha de S. Paulo no dia 5 de março de 2017. O grande escritor e jornalista carioca, que já vinha muito doente há vários anos, praticamente estava se despedindo, naquele seu estilo irônico e rascante.

Se eu morrer amanhã
Carlos Heitor Cony


Carlos Heitor Cony por Osvalter
  
Se eu morrer amanhã, não levarei saudade de Donald Trump. Também não levarei saudade da operação Lava Jato nem do mensalão. Não levarei saudade dos programas do Ratinho, do Chaves, do Big Brother em geral. Não levarei nenhuma saudade do governador Pezão e do porteiro do meu prédio.

Se eu morresse amanhã, não levaria saudade do rock, dos sambas-enredo do Carnaval, daquela águia da Portela nem dos discursos do Senado e da Câmara, incluindo principalmente as assembleias estaduais e a Câmara dos Vereadores.

Se eu morrer amanhã, não levarei saudades dos buracos da rua Voluntários da Pátria, das enchentes do Catumbi, dos técnicos do Fluminense, dos juízes de futebol, da Xuxa e das piadas póstumas do Chico Anysio. Não levarei saudade do Imposto de Renda e demais impostos, e muito menos levarei saudade das multas do Detran.

Não levarei saudade da vizinha que canta durante o dia uma ária de Puccini (“oh mio bambino caro”) que ela ouviu num filme do Woody Allen. Aliás, também não levarei saudade do rapaz que mora ao meu lado e está aprendendo a tocar bateria.

Não levarei saudade das cotações da Bolsa, das taxas de inflação e das dívidas externas do Brasil. Não levarei saudade dos pasteis das feiras livres nem das próprias feiras livres, também não levarei saudade dos blocos de índio que geralmente fedem mais do que os verdadeiros índios.

Não levarei saudade dos lugares em que não posso fumar, das lanchas de Paquetá e dos remédios feitos com óleo de fígado de bacalhau. Não terei saudades das mulheres que usam silicone e blusas compradas no Saara.

Enfim, não levarei saudade de mim mesmo, dos meus fracassos e dívidas. Finalmente, não terei saudades dos milagres dos pastores evangélicos nem de um mundo que cada vez fica mais imundo.



Nenhum comentário:

Postar um comentário